A crise da água poderá ganhar as ruas em manifestações mais frequentes e de maior vulto sobretudo no início de 2015, quando poderá aumentar a gravidade do problema, acreditam estudiosos de mobilizações sociais. Mas há dúvidas se esses protestos poderão ser equiparados em magnitude às mobilizações que existiram em torno dos transportes em 2013.

Parte dos sociólogos acredita que a escassez de água - caso ocorra um racionamento generalizado na capital paulista - por si só teria capacidade de induzir manifestações de grande vulto, cujo principal mote seria a omissão por parte de autoridades públicas em prover um serviço essencial.

Outros pesquisadores acreditam que somente associada a outros problemas, como a um grande avanço da inflação ou a um ajuste fiscal severo do governo que rebata no aumento do desemprego, haveria manifestações de maior porte. Para esses, o problema da água não teria fôlego por si só para mobilizações grandes, somente movimentos de menor porte, uma vez que para parte da população estaria associado a fenômenos climáticos, não havendo a quem exatamente culpar.

"A crise hídrica de São Paulo tem um potencial socialmente explosivo", diz Ruy Braga, sociólogo da Universidade de São Paulo (USP), que está entre os que enxergam potencial por si só na crise hídrica.

Segundo Braga, a questão da água é representativa de problemas estruturais não resolvidos relacionados ao processo de desenvolvimento do país, em que pesam as questões do modo de viver na cidade, como a luta por moradia, o acesso à terra e a especulação imobiliária. Para ele, as ainda pouco numerosas e pouco frequentes manifestações em torno da água vão ganhar força porque "é uma crise abrangente o suficiente para detonar o estado de indignação social que tem se acumulado nos últimos anos". Ele acrescenta que a crise da água atravessa todo oEstado de São Paulo, parte do Rio de Janeiro e de Minas Gerais e abarca todas as classes sociais. "A inquietação se manifesta mais agudamente naqueles setores que estão vivendo o rodízio de água. Mas essa inquietação tende a se alastrar, na medida que a crise se aprofunda".

O sociólogo da PUC-RS Emil Sobottka acredita em mobilizações maiores apenas se a água se juntar a outras pautas. "Para um movimento eclodir, precisa haver certa indignação dirigida a algum sujeito concreto a quem se possa imputar a responsabilidade. No problema da falta de chuva, não há como imputar claramente a responsabilidade a ninguém", disse, referindo-se às pessoas que veem a crise como fenômeno climático.

Sobottka também ressaltou que manifestações como as junho de 2013 foram tão amplas porque envolveram mais de uma reivindicação. "Em junho, juntou indignação com Copa e com transportes."

Para Sobottka, os movimentos sociais e partidos políticos estão de certa forma amarrados na crise da água. "Um pouco é [culpa do] prefeito, um pouco é governador e outro pouco é o governo federal. Todos têm um pouco de responsabilidade, então aqueles movimentos mais claramente identificados com um ou outro [partido ou esfera de governo] não podem fazer muito barulho porque estariam jogando pedra no próprio telhado de vidro", diz.

A socióloga Esther Gallego, professora da Unifesp, discorda. Para ela, há "muito potencial para haver manifestações" e o problema tem sim responsáveis: "Está diretamente vinculado a uma falha de gestão do governo [estadual]". Esther citou que há protestos em cidades do interior que já tiveram corte de água e "isso vai chegar à capital provavelmente".

Marco Antônio Perruso, sociólogo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), acha "possível" um início de ano tenso "somando à crise da água e ao reajuste dos preços dos coletivos um ajuste fiscal do segundo governo Dilma".

Ainda que a crise da água não tenha gerado um movimento específico organizado, como há o Movimento Passe Livre (MPL) para as questões do transporte há mais de dez anos, os pesquisadores entendem que isso começa a ser articulado, com "novos ativistas que apostam na explicitação desse conflito da água", como entende PerrusoBragaconcorda. Afirma que está em formação uma massa crítica, que estuda, elabora e reflete sobre o problema da água.

Para Braga, o problema do "desapossamento" aproxima a crise da água com o problema do transporte. "Não podemos esquecer que a Sabesp foi privatizada. Ela remunera seus acionistas com milhões de reais todo ano, tem uma gestão financeirizada, orientada fundamentalmente ao interesse dos seus acionistas e não em função da maior parte da população, que, nesse sentido, foi espoliada do recurso natural mais elementar, que é a água", diz. "Isso estabelece um patamar de contato com o problema do transporte, que é um problema do direito aos recursos básicos elementares", acrescenta.

Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) é uma das organizações que começaram a debater o problema da água em São Paulo. Realizou manifestação em setembro, em frente à Sabesp, e programa outras. Outros dois atos foram organizados pela Frente Independente Popular.

"Em várias regiões da periferia de São Paulo, onde há ocupações do movimento e núcleos do MTST, há um problema crônico de falta d'água", diz Guilherme Boulos, membro da coordenação nacional do MTST, explicando que as pessoas também se interessam mais por se manifestar quando passam dias sem água, independentemente de qual foi sua opção de voto nas mais recentes eleições. Boulos diz que a ideia é até o fim do ano construir uma frente ampla de mobilização em torno da água.

Os sociólogos acreditam que serão movimentos relativamente novos, como o MTST, que de fato levarão a questão a mobilizações. Dificilmente dizem que comitês de bacias hidrográficas ou associações de bairros puxariam protestos. Apesar de existir diversos comitês de bacias, nos quais várias instâncias de representação da sociedade gravitam, eles funcionam de uma forma que dá preferência a outras esferas de negociação de suas demandas que não as ruas, explica Sobottka.

Em relação às associações de bairros, atuantes nos anos 80 e nas quais o assunto da água orbita, elas não são vistas com capacidade de mobilização. "As associações de bairro estão em estado dormente nesse momento para poder mobilizar", disse Sobottka.

Apesar de a água muitas vezes ser vista como um problema regional, relacionado a alguns Estados, parte dos sociólogos entende que é possível que ela seja entendida como um problema nacional. Perruso, por exemplo, destaca que a discussão da água poderá ser nacionalizada se for vista como um problema de escassez de recursos naturais, e reflexo de uma seca relacionada ao desmatamento, portanto, envolvendo uma questão ambiental e ecológica maior. Dessa maneira, ela pode vir a mobilizar outras cidades que não só aquelas que de fato sofrem ou temem sofrer com a escassez de água.

Para Esther, manifestações por descontentamento dos cidadãos podem levar inclusive a episódios de violência, como já ocorreu em algumas cidades, como Itu (SP), onde a Câmara de Vereadores foi apedrejada em repúdio à crise da água e houve confronto com a Polícia Militar. "Com a violência social, pode haver o aparecimento de novo dos black blocs", diz ela, que pesquisou os black blocs em São Paulo, em junho de 2013.

Nem todos os pesquisadores apostam em reaparecimento dos black blocs. "Eles estão um pouco desacreditados", diz Sobottka. Na sua opinião, aumentou a violência desse grupo no fim de junho de 2013 para a qual as pessoas não viram tanto sentido. "No início, parecia muito mais uma reação à violência policial e nisso as pessoas em geral conseguiam se identificar. Mas, quando começaram a quebrar porta de banco e loja de carro, nem todos concordaram", afirma.

Para Boulos, a magnitude dos protestos dependerá não só do agravamento do problema, mas também das soluções, principalmente do governo estadual, diante da crise. "Se o governo continuar empurrando o problema para debaixo do tapete e não tomar uma medida concreta, e se não chover, a tendência é o problema se agravar muito no início de 2015. Se isso de fato ocorrer, haverá jornadas grandes".

Segundo Boulos, a mobilização do MTST, movimento que ele destaca ser apartidário, tem como foco a privatização da Sabesp, que passou a se preocupar "em gerar dividendos para acionistas sem fazer investimentos estruturais necessários" no Estado. "Isso é inaceitável", diz.