Diz a lenda que certa vez um jovem perguntou ao financista J. Pierpont Morgan o que o mercado de ações iria fazer. “Ele vai flutuar”, Pierpont teria respondido. Se o jovem tivesse perguntado a Pierpont sobre o mercado de títulos do Tesouro dos Estados Unidos (Treasuries) da atualidade – em que o governo americano vende trilhões de dólares em bônus para uma grande variedade de investidores -, ele poderia ter recebido uma resposta muito diferente.
Há décadas, o mercado de Treasuries tem sido a base das finanças globais. Enquanto os mercados de ações são propensos a oscilações súbitas de preços, tais episódios têm sido mais raros no mundo vasto e de fácil transação dos Treasuries, proporcionando ao mercado uma reputação excepcional de transações ordenadas.
Mas essa reputação sofreu um grande golpe no mês passado. Em 15 de outubro, o rendimento do título referencial de dez anos do governo dos EUA (que é inversamente proporcional ao preço), caiu 33 pontos-base para 1,86%, subindo depois para os 2,13%. Embora isso possa não parecer muita coisa, analistas afirmam que a movimentação foi de sete desvios-padrão de sua norma no período de um dia – o que significa que isso poderia ocorrer a cada 1,6 bilhão de anos.
Por vários minutos Wall Street ficou paralisada, enquanto operadores observavam suas telas incrédulos. As máquinas de formação eletrônica de preços, que nunca tiveram um papel tão grande na negociação dos Treasuries, foram paralisadas e ordens foram canceladas por negociadores nervosos enquanto os preços entraram em uma “montanha-russa”.
Os eventos desencadearam uma “história de detetive” financeira, com investidores, operadores e autoridades reguladoras tentando entender o que aconteceu – e determinar se o 15 de outubro foi um evento único ou um prenúncio de mais condições de negócios perigosas.
“Estamos todos buscando uma razão principal porque os clientes querem entender o ímpeto por trás da volatilidade do mercado”, diz Reggie Brown, chefe a área de negócios com fundos negociados em bolsas de valores da Cantor Fitzgerald.
Entre as preocupações das autoridades dos EUA é a possibilidade de o ambiente regulador mais duro para os grandes bancos, juntamente com a ascensão inexorável dos negócios eletrônicos, ter fundamentalmente alterado a maneira como o mercado de bônus soberanos, que movimenta US$ 12,4 trilhões, funciona. A resposta terá consequências profundas para a condução da política do Federal Reserve (Fed) e como os EUA financiam sua dívida pública.
Para o Fed, o poder de recuperação do mercado de Treasuries será uma consideração, na medida em que ele começar a aumentar as taxas de juros. Analistas afirmam que o risco de uma reação altamente volátil do mercado sugere que o banco central vai agir gradualmente quando começar a elevar o custo dos empréstimos, que muitos preveem para o começo do ano que vem.
Uma preocupação é que o mercado de Treasuries possa ter sofrido uma perda pronunciada de suporte aos preços – ou “liquidez”, no jargão financeiro – devido às mudanças por que Wall Street passou, que incluem a ascensão dos negócios por computador. Alguns traçam paralelos com o “crash relâmpago” que atingiu os mercados de ações em maio de 2010, que acabou levando a esforços para uma reforma do mercado de ações.
James Angel, professor associado da Universidade Georgetown, diz que o mercado de títulos do Tesouro dos EUA deveria ser regulado de uma maneira diferente, agora que abraçou as negociações eletrônicas. “Quando as pessoas usam computadores para fornecer preços no mercado, a liquidez pode ser retirada num instante”, diz ele. “Quanta liquidez existe de fato no mercado sob esse tipo de estrutura de mercado e que mudanças deveriam ocorrer, são as questões que as autoridades reguladoras devem encarar.”
Ao contrário de outros mercados de bônus, o dos Treasuries é visto como aberto aos negócios por todo o dia global de negociações. Esses títulos também gozam do status de porto seguro em períodos de tensão. O imenso tamanho do mercado significa que os investidores podem expressar facilmente pontos de vista divergentes sobre a direção das taxas de juros, comprando ou vendendo os títulos de dívida do governo.
Qualquer sinal de que o mercado pode fechar subitamente, sem nenhum aviso, levanta questões preocupantes sobre como a natureza das negociações mudou nos últimos anos. Os sistemas eletrônicos são mais visíveis para o mercado como um todo, de modo que os negócios tendem a ser menores do que os realizados privadamente, via conversações telefônicas, entre operadores e investidores.
Regulação mais dura para bancos e salto de negócio eletrônico pode ter alterado mercado de bônus soberanos
Uma reunião recente de autoridades do Tesouro americano e representantes de negociadores e investidores, conhecidos como o Comitê de Consultoria a Financiamentos do Tesouro (TBAC, na sigla em inglês), realizada em um hotel de Washington, revelou “uma grande variedade de pontos de vista em relação aos potenciais motivadores da volatilidade intradiária” em 15 de outubro. Entre os membros estão o J.P. Morgan Chase, Royal Bank of Scotland (RBS), Morgan Stanley, BlackRock, Pimco, Citadel, Brevan Howard e outros grandes participantes do mercado de Treasuries.
Várias agências reguladoras dos EUA estão analisando a confusão ocorrida no mercado de Treasuries no mês passado. Uma autoridade do Federal Reserve Bank de Nova York disse ao “Financial Times”: “No curso de nosso monitoramento normal do mercado, exploramos regularmente e avaliamos os acontecimentos do mercado”.
Timothy Massad, presidente da Commodity Futures Trading Commissio dos EUA (CFTC), que regula os negócios com juros no mercado futuro na Bolsa Mercantil de Chicago (CME), diz que o ponto de vista inicial da agência é que o mercado vem funcionando razoavelmente bem, levando em conta o elevado número de negócios. “Devo acrescentar que isso se baseia em nossa análise preliminar. Novas evidências podem chamar nossa atenção, sugerindo o contrário.”
Na alvorada do cinzento 15 de outubro em Nova York, operadores e investidores tinham muitos motivos para estar nervosos. As preocupações com a disseminação do ebola e o enfraquecimento da atividade econômica na Europa e China estavam pesando muito – ajudando a derrubar os rendimentos dos bônus, na medida em que os investidores buscavam refúgio nos Treasuries.
O fracasso da tentativa da AbbVie de comprar a Shire por 32 bilhões de libras havia deixado muitos fundos de hedge com grandes perdas com ações e pode ter contribuído para o rápido reposicionamento que acabou engolindo os mercados.
Quando as vendas no varejo para setembro começaram a piscar nas telas, às 8h30, e confirmaram o primeiro declínio mensal desde janeiro, aumentaram as preocupações entre os investidores de que a economia dos EUA pudesse estar perdendo força. Para os investidores que haviam se posicionado para um fortalecimento da economia que levaria o Fed a aumentar as taxas de juros antes de 2017, foi uma dolorosa inversão do sentimento. Muitos haviam feito apostas recorde, via contratos futuros listados na CME, de que as taxas de juros subiriam.
Com muitos fundos de hedge e gestores de recursos já sofrendo com um ano fraco, suas apostas erradas sobre as taxas de juros e outros negócios agora exigiam uma ação emergencial. O que ocorreu posteriormente, segundo operadores, foi uma série de liquidações de posições maciças e o despejo de títulos no mercado.
Um gestor de fundos de hedge lembra de ter ficado perplexo com os acontecimentos subsequentes: “O que estava atacando o mercado para querer volume àqueles preços e por quê? Em resposta àquele estímulo, o mercado eletrônico simplesmente acabou com toda a liquidez?”.
Às 8h45, começou a haver uma deterioração perceptível da liquidez, processo que se acelerou após as 9h30, segundo dados da firma de pesquisas de mercado Nanex. Às 9h33, o rendimento dos Treasuries de dez anos havia caído ao patamar crítico de 2%, levando muitos que haviam apostado na alta dos rendimentos a finalmente capitularem e encerrarem suas apostas negativas recomprando títulos de dívida do governo americano e vários contratos futuros de juros.
Em setembro, os fundos de hedge haviam estabelecido uma posição vendida (“short”) líquida recorde em contratos futuros de juros, segundo dados semanais da CFTC. Entre o fim de setembro e a semana encerrada em 21 de outubro, esta grande aposta encolheu de 1,27 milhão de contratos para apenas 217 mil, refletindo o corte de uma exposição teórica de mais de US$ 1 trilhão.
“O elefante tentou passar pelo buraco da fechadura”, diz John Brady, diretor-gerente da RJ O’Brien, uma corretora de futuros de Chicago.
Eric Hunsader, diretor-presidente da Nanex, diz que a escala da mudança nos preços dos Treasuries pode ter levado ao recuo dos “formadores de mercado”, que normalmente dão suporte aos negócios com títulos de dívida: “A velocidade da mudança foi anormal e os sistemas de negociação carecem de dados históricos sobre episódios do tipo, que possam fornecer alguma orientação a eles”.
Quando o dia chegou ao fim, perto de US$ 1 trilhão em Treasuries havia trocado de mãos, ilustrando a intensidade da corrida pela saída. O volume enorme também mostra que havia liquidez, mas que provavelmente estava difícil obter preços tidos como razoáveis pelos investidores, em meio aos mercados em flutuação acelerada.
Segmento movimenta US$ 12,4 tri e resposta pode ter consequências sensíveis para a condução da política do Fed
O chefe da mesa de negociações de um grande banco diz: “Uma vez que a volatilidade aparece, você não vai querer cometer um erro num mercado que está em ritmo acelerado. Assim, você sempre vê negociadores evitando fornecer preços”.
Contribuindo para essas pressões estão as mudanças que transformaram Wall Street desde a crise financeira, com os grandes bancos que antes dominavam os negócios com os Treasuries agora sob restrições de balanço mais duras, graças à regulamentação e uma renovada aversão ao risco.
Essa tendência encorajou as negociações eletrônicas e uma migração de operadores experientes dos bancos para os fundos de hedge e gestoras de ativos, deixando uma geração mais nova de operadores tomando conta das mesas de negociação de Treasuries nos grandes bancos. Muitos deles não experimentaram a empolgação pré-crise, quando os bancos tinham uma maior disposição para apostar no mercado. “O apetite pela formação de posições é menor do que antes da nova regulamentação”, diz Greg Gurevich, sócio-gerente da Maritime Capital Partners, acrescentando que as estruturas de bonificações “não recompensam o operador que assume riscos, o que em última análise acaba custando seu emprego”.
As duas principais praças de negociações eletrônicas dos Treasuries são administradas pela eSpeed, da Nasdaq, e BrokerTec, da Icap. Nos últimos anos, essas plataformas se abriram para uma variedade de corretoras e operadoras de alta frequência. Essas firmas não subscrevem as vendas de Treasuries e sempre são vistas como oportunistas – fornecendo preços quando detectam uma oportunidade de lucro rápido, para depois recuar quando os negócios ficam complicados.
As ordens dos clientes são agora realizadas e quase que instantaneamente “hedgeadas”, ou compensadas, por sistemas de computadores – um tipo de automação que funciona bem quando os negócios são ordeiros, mas que rapidamente entra em colapso quando a situação muda. Nesses momentos, desligar as máquinas se torna uma necessidade. Isso contribuiu para a queda da liquidez em 15 de outubro.
“Os bancos negociadores na verdade não se posicionam em bônus”, afirma um operador graduado de um grande banco americano. “Eles basicamente atuam como uma passagem para plataformas como a BrokerTec e a eSpeed, ou encerram os fluxos de seus clientes. Os formadores de mercado desse novo mercado não são obrigados a estar lá quando todo mundo estiver vendendo.”
O temor é que até mesmo o altamente dependente mercado de Treasuries possa sofrer com as quedas súbitas de liquidez porque os grandes bancos foram impedidos de negociar com as “carteiras próprias”. Os “prop traders” poderão aproveitar o outro lado da enorme demanda dos clientes para comprar ou vender bônus.
“Se Wall Street – por motivos de balanço, apetite pelo risco e questões regulatórias – não conseguir proporcionar um redutor de velocidade entre os compradores e os vendedores, como os fundos de hedge e as gestoras de ativos, então o mercado de Treasuries vai passar por muito mais sobressaltos nos negócios”, diz um operador. Como o mercado é cada vez mais conduzido pelas negociações eletrônicas, mais regras poderão ser necessárias para ajudar a lidar com oscilações súbitas e violentas. Essas regras seriam parecidas com a adoção dos “circuit breakers” dos mercados de ações.
O professor Jams Angel diz: “O mercado de Treasuries é um mundo desregrado em que os negócios não são formalizados como os de uma bolsa de valores, e onde o uso dos circuit breakers pode ajudar a fortalecer a atividade”. Esse tipo de contenção é importante para mercados que realizam cada vez mais negócios eletrônicos e também influenciam outras áreas financeiras, como os derivativos e futuros. Segundo analistas, uma consequência mais ampla das turbulências do mês passado pode ser que os aumentos dos juros pelo Fed poderão ocorrer na forma de uma série de pequenos passos, ao invés de grandes movimentações que possam provocar turbulências nos mercados de bônus.
Para o Tesouro dos EUA, que é responsável por garantir que os déficits fiscais e as dívidas em vencimento serão refinanciados de maneira tranquila, novos episódios de turbulências poderão enfraquecer a capacidade do mercado de subscrever eficientemente os títulos de dívida do governo, afirma Michael Cloherty, analista da RBC Capital Markets.
Cloherty diz que o mercado de Treasuries teve uma alteração estrutural e não tem como absorver facilmente surpresas na política monetária do Fed e mudanças no sentimento do mercado. Esta tendência ganhou força depois que o banco central passou a ser o maior detentor de Treasuries por meio de seu programa emergencial de compra de bônus, o que limitou ainda mais a liquidez.
Ele acrescenta que qualquer sinal de queda na liquidez do mercado de Treasuries vai abalar a confiança dos investidores – e poderá acabar aumentando o custo da venda de dívida soberana.
Cloherty diz: “Os investidores sabem que podem negociar grandes quantidades de Treasuries e qualquer corrosão da confiança na liquidez do mercado tem consequências de longo prazo”. (Tradução de Mario Zamarian)