Ao apagar das luzes do ano legislativo, a bancada da bala tenta revogar o Estatuto do Desarmamento, às pressas. Um projeto de lei (PL), apresentado como “mudança radical”, é na verdade um retrocesso à calamitosa situação anterior ao estatuto. Se em 2003 tínhamos 39.284 homicídios por arma de fogo, em dez anos reduzimos a taxa de 27,4 para 18 homicídios por cem mil habitantes. O estatuto é uma lei celebrada internacionalmente. Nos anos subsequentes à sua aprovação, reduziu os homicídios por arma de fogo em 11%, salvando mais de cinco mil vidas.
O “novo” PL, entre outros favores à indústria de armamento, aumenta o número de balas que se pode comprar por ano de 450 para 5.400. O número de armas permitidas sobe de seis para nove. Para autodefesa ou para revenda ilegal? Pelo estatuto, só pode comprar arma “quem não estiver respondendo a inquérito ou processo criminal”. Pelo PL, pode comprar mesmo quem foi condenado por crime culposo e porte ilegal.
Os jovens são a maioria das vítimas e autores de homicídios, mas reduzem de 25 para 21 anos a idade mínima para compra de armas. Supondo que o proprietário da arma venha a ter a visão ou os movimentos prejudicados, ou transtorno mental, obriga-se à renovação do registro de três em três anos. Pois o PL lhe dá validade permanente, o que não ocorre nem com licença de motorista.
Segundo o Instituto Vox Populi, 78% dos brasileiros se manifestaram contra o porte de arma, achando que só a policia deve andar armada na rua. O PL, ao facilitar o porte de armas, abre a porteira para que os 700 mil advogados, e outras categorias, andem com arma na cintura.
Na justificação do PL, afirma-se que “ao votar-se contra a proibição do comércio de armas no referendo, votou-se contra o estatuto”. Ora, ao votar “pelo direito de comprar armas”, a maioria da população não votou contra o estatuto, que manteve o apoio de 81% dos brasileiros (Ibope, 2005).
O PL reduz a indenização de R$ 450 para quem entregar arma voluntariamente para apenas R$ 150, quando sabemos dos efeitos positivos dessa campanha na redução dos homicídios, não só aqui, mas na Colômbia (68%), Austrália (50%), Grã-Bretanha (34%).
A bancada alega que “o povo está desarmado”, mas pesquisa nacional revelou que 90% das armas em circulação no Brasil estão nas mãos da sociedade, e 48% delas são ilegais. Segundo o Ministério Público de São Paulo, 83% dos homicídios foram cometidos por motivos fúteis. Daniel Cerqueira, do Ipea, provou que, a cada ponto percentual a mais no número de armas, a taxa de homicídios aumenta dois pontos.
Artigos essenciais do estatuto não saíram do papel, como a fiscalização do comércio de armamento; a destruição de mais de 700 mil armas dos precários depósitos judiciários, roubadas com frequência; a impossibilidade de a PF rastrear todas as armas envolvidas em crimes, por não ter acesso às informações. Em vez de implementar-se a lei, querem revogá-la, para que se possa vender mais armas. Segundo o TSE, a bancada da bala recebeu doações de R$ 4,46 milhões das indústrias de armas e munição, nas duas últimas eleições. Pura coincidência?
Os países que resolveram o problema da violência armada demonstraram que a solução é coletiva, melhorando a polícia, e não obrigando o cidadão a se virar sozinho, rumo ao modelo de sociedade selvagem.
Antonio Rangel Bandeira é sociólogo do Viva Rio e da Rede Desarma Brasil