O governo deu ontem o primeiro passo concreto para tentar resgatar a credibilidade da política fiscal. O Ministério do Planejamento enviou ao Congresso uma proposta para alterar o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2015, ajustando os parâmetros econômicos ao discurso dos futuros ministros da Fazenda, Joaquim Levy, e do Planejamento, Nelson Barbosa. Eles prometeram trabalhar com números mais realistas e próximos às projeções do mercado financeiro. Assim, a estimativa para o crescimento da economia no ano que vem foi reduzida de 2% para 0,8%. Os analistas do mercado, por sua vez, esperam uma alta de 0,77%.

O novo texto mostra que o governo adotará o conceito de meta efetiva de superávit primário, deixando claro qual será o esforço para pagar os juros da dívida pública. Antes, o governo adotava uma meta cheia, da qual fazia descontos como, por exemplo, com investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A proposta informa que meta de superávit fiscal do setor público consolidado será de R$ 66,3 bilhões, ou 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços produzidos no país). Esse número já considera os abatimentos legais previstos com o PAC. Na proposta original para 2015, a meta cheia era de R$ 143,3 bilhões, caindo para R$ 114,7 bilhões, ou 2% do PIB, com os descontos do PAC. Ainda no texto encaminhado ontem, a meta do superávit primário baixou de 2,5% para 2% do PIB para os anos de 2016 e 2017.

"sem número mágico"

Ao longo de 2014, a equipe econômica mudou seu compromisso fiscal diversas vezes. A LDO deste ano previa uma meta cheia de primário para o setor público de R$ 167,4 bilhões, ou 3,1% do PIB (sendo que R$ 116,07 bilhões, ou 2,15% do PIB, cabiam ao governo central) com a possibilidade de um abatimento de R$ 67 bilhões com PAC e desonerações. No entanto, diante das dificuldades para fechar as contas, a equipe passou a se comprometer com um resultado de R$ 99 bilhões, ou 1,9% do PIB para o setor público. Esse número também se tornou inalcançável.

Os técnicos, então, começaram a falar apenas no esforço do governo federal e prometeram chegar a um primário mínimo de R$ 49,1 bilhões (saldo que considera o desconto total de R$ 67 bilhões da meta original do governo central, de R$ 116,1 bilhões). Nada disso foi cumprido e foi preciso pedir ao Congresso uma alteração da LDO de 2014 que, na prática, libera o governo do cumprimento da meta.

O discurso agora é outro. O que se quer mostrar é um número que será efetivamente realizado. Segundo interlocutores do Palácio do Planalto, a ideia do novo projeto foi justamente mostrar projeções que não deixem dúvidas sobre a intenção da futura equipe econômica de conduzir uma política fiscal realista e mais austera:

- Não há aqui tentativa de se produzir um número mágico - disse uma fonte da área econômica.

Pelo novo texto, o governo federal fará um primário de R$ 55,3 bilhões, ou 1% do PIB no ano que vem. Já estados e municípios terão que poupar o equivale a R$ 11 bilhões, ou 0,2% do PIB. No entanto, caso os governos regionais não atinjam a meta estimada, o governo federal compensará a eventual diferença. O desconto previsto com o PAC foi mantido em R$ 28,7 bilhões, ou 0,5% do PIB.

previsões mais realistas para dívida

A proposta também traz previsões mais realistas para o comportamento da dívida pública, que ficará estável nos próximos dois anos e só cairá a partir de 2017. O endividamento líquido do setor público é projetado em 37,4% do PIB para 2015; em 37,4% para 2016; e em 37,1% em 2017. Os valores são bem maiores que os incluídos originalmente na proposta da LDO do ano que vem. Eles eram de 33% do PIB para 2015; 32,1% para 2016; e 31,1% para 2017. Os técnicos da equipe econômica explicaram que a forte elevação nas projeções de dívida, como proporção do PIB, se deve não apenas à nova meta de superávit, mas também à revisão para baixo da taxa de crescimento da economia.

Há ainda estimativas para o comportamento da dívida bruta. Ela é projetada em 64,1% do PIB para 2015; 63,3% para 2016; e em 62,5% para 2017. Em seu discurso no dia em que foi confirmado para comandar a Fazenda, Levy afirmou que a futura equipe econômica realizaria um primário suficiente para estabilizar e reduzir o endividamento bruto do país.

Ontem, Levy foi novamente à Fazenda, onde teve seu primeiro encontro formal com o atual ministro Guido Mantega. Ao fim do encontro, os dois posaram juntos para fotos e Mantega brincou: apontou para uma parede onde estão pendurados quadros com títulos da dívida pública e afirmou:

- Esses aqui são os títulos que ele vai pagar.

Já Levy relatou a interlocutores, após o encontro, que "agora se inicia o processo de transição, que não tem prazo para ser concluído". A presidente Dilma Rousseff pediu a Mantega que fique no cargo até o fim de dezembro e não definiu uma data para a nova equipe tomar posse. Um dos fatores que tem atrasado esse processo é a demora do Congresso em concluir a votação das mudanças na LDO deste ano.

Após a posse de Levy, o secretário executivo da Fazenda, Paulo Caffarelli, deve sair para assumir a presidência do Banco do Brasil, e o secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, deve deixar o cargo como sinal importante de mudança na política fiscal. O secretário de Política Econômica, Márcio Holland, já teria se oferecido para permanecer. No entanto, interlocutores do Palácio do Planalto afirmam que isso é pouco provável. Já o secretário da Receita Federal, Carlos Alberto Barreto, é conhecido de longa data de Levy e tem chances de permanecer.

Ao receber uma homenagem na Academia Brasileira de Ciências Contábeis, Mantega fez ontem um balanço de sua gestão e disse que seu grande orgulho é entregar o país com a menor taxa de desemprego da história e com a economia mais firme e sólida do que recebeu.

 

 

Um ajuste difícil de fazer

Não há consenso entre economistas sobre o impacto do corte de gastos no crescimento do país

Cássia Almeida

 

A economia brasileira está estagnada e o déficit público, incluindo o pagamento de juros, já alcançou 5% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços produzidos no país), o dobro do registrado quatro anos atrás. Nesta conjuntura, dá para cortar gastos públicos sem sacrificar o crescimento da economia? A resposta para essa pergunta está longe da unanimidade.

Para o professor de Economia Internacional da UFRJ, Luiz Carlos Prado, "não é um cenário confortável". Em tese, reduzir o consumo de uma das fontes de crescimento que é o governo afeta diretamente o desempenho da economia, mas ele acredita que mesmo com um ajuste, que seja brando, é possível crescer:

- Depois de um ano recessivo, as pessoas tendem a comprar mais. Por isso, creio em expansão entre 1% e 1,5%. Mesmo com ajuste, um pequeno crescimento não seria de se espantar.

Armando Castelar, economista da Fundação Getulio Vargas (FGV), não vê um horizonte tão claro. O ajuste demorou a ser feito, na sua opinião, o que diminuiu a margem para o governo fazer um corte sem muitos traumas. Nem o mercado de trabalho, ainda preservado, deve ficar imune ao aperto. E pode sofrer mais do que em 2003, quando a taxa de desemprego era de 12%:

- Naquela época, o desemprego estava alto, não precisou aumentar. O mercado já estava mal, não foi o ajuste que causou isso. Desta vez, o ajuste fiscal prometido (economia correspondente a 1,2% do PIB, para pagamento de juros) é maior do que o que foi feito em 2003. Agora, será preciso aumentar o desemprego para os salários caírem.

O economista-chefe do banco Santander, Maurício Molan, pensa diferente. O ajuste não trará tanto custo social, já que a taxa de desocupação está no menor patamar histórico:

- Algum ajuste tem que ocorrer. É preciso adequar o ganho do salário real à produtividade. Mas, partindo de um desemprego baixo, se minimiza o custo social. Ainda que desemprego suba um pouco, não haverá uma conjuntura crítica para as famílias.

O banco prevê taxa média de desemprego este ano de 5% e de 5,6% em 2015:

- Temos que fazer ajustes pontuais. Não estamos em crise. Há possibilidade de fazer ajuste cauteloso ao longo de tempo, sem contração acentuada do PIB. Estamos prevendo 0,3% para este ano e para 2015.

Belluzzo: "Nunca vi austeridade expansionista"

Há um quase consenso de que o anúncio de metas de economia para os próximos três anos fará aumentar a confiança na economia e, a médio prazo, o país voltaria a crescer. Castelar crê nesse efeito, mas diz que há só intenções até agora.

- Temos que ver se o ajuste realmente vai ser feito. Os sinais da Bolsa, que continua em queda , do dólar e dos juros não mostraram ainda essa retomada da confiança.

A confiança é fundamental para as empresas investirem e as famílias consumirem. Felipe Salles, economista do Itaú, vê esse efeito bem claro. Tanto que está prevendo crescimento acima de 1% em 2015, taxa baixa, mas bem superior aos 0,2% que muitos analistas estão esperando.

- A confiança volta e os investimentos, que puxaram o PIB para baixo este ano, voltam a subir.

Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp e um dos conselheiros econômicos do ex-presidente Lula, não vê uma relação tão direta assim e diz que a pergunta está errada. Ao invés de tentar saber se é possível fazer ajuste fiscal com a economia crescendo, a pergunta deveria ser:

- Sem crescimento, seria possível fazer ajuste fiscal? Muitos falam como se macroeconomia fosse um jogo de Lego, só encaixando as peças. O governo faz ajuste fiscal, os empresários ficam confiantes, investem, e o país volta a crescer. Eu nunca vi isso acontecer: a chamada austeridade expansionista. É só olhar a Europa.

Para ele, o ajuste pode ser um tiro no pé:

-Governo não é igual família, 40% da economia voltam para o governo. Ao tentar ajustar, a renda (do país) cai, a receita (tributária) cai, o déficit público não diminui, aumentando a dívida.