Recebo periodicamente publicações do Instituto Nacional de Altos Estudos, Inae, do qual é presidente o ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso. O que recebo agora é um dossiê do mais recente Fórum Nacional realizado pelo instituto, cujos temas foram “Favela é cidade” e “O futuro de nossas cidades”. Há tempos que eu não tomava conhecimento de informações tão precisas e tão preciosas sobre as favelas cariocas, aqui fornecidas por seus moradores.

Reis Velloso foi ministro do Planejamento durante a presidência de Ernesto Geisel e, nessa condição, tornou-se um dos principais responsáveis pela consolidação da Embrafilme como empresa moderna de cinema, colaborando para isso com recursos e apoio político. Podemos dizer que ele foi um homem público fundamental naquela fase exuberante do cinema brasileiro, papel que exerceu sem preconceitos cinematográficos ou ideológicos. Agora, Reis Velloso se ocupa do Inae e de seu Fórum Nacional, com aquele mesmo estado de espírito.

O dossiê abre com um texto de Arnaldo Jabor sobre arte e vida, seguido por um depoimento de Elio Gaspari com o título de “Viva o povo brasileiro”, referência a João Ubaldo Ribeiro e sua obra. Nele, Gaspari lembra que o historiador inglês Kenneth Maxwell, um brasilianista popular no mundo acadêmico, escreveu um dia que a geração de brasileiros de 1820 (a geração de nossa Independência) era mais bem preparada intelectualmente do que a americana de 1776. Segundo Maxwell, “José Bonifácio era tudo o que os americanos gostariam que Thomas Jefferson tivesse sido, inclusive abolicionista”. Quando sabemos que, pouco tempo antes, Jefferson fora o ídolo de nossos inconfidentes mineiros, nos damos conta de como pouco nos conhecemos a nós mesmos e pouco ousamos por nossa própria conta.

Citando um especialista na colonização brasileira, Gaspari escreve que, em geral, consideramos “os brancos melhores que os negros, os europeus melhores que os brasileiros, os alemães melhores que os portugueses, os prussianos melhores que os suábios”. É como se estivéssemos sempre longe da excelência, na parte de baixo da comparação, por motivos carentes de sentido, claramente preconceituosos. Como tem sido com preconceitos que temos tratado nossas favelas. Primeiro, como uma ferida social que precisávamos esconder de nós mesmos. Depois, como um mal provisório que um dia afastaríamos de nossa vista, implantando no morro e no asfalto uma ideologia de remoção que nos impediria, durante décadas, de produzir qualquer bem durável naquelas comunidades.

Quando, enfim, resolvemos que é preciso transformar as favelas em bairros da cidade, nos deparamos com sua posse e seu domínio pelo tráfico de drogas, graças à nossa secular negligência. Ainda assim, somos incapazes de reconhecer o papel da segurança pública para a redenção social da cidade. Eu sei que a polícia pode ser tão injusta e violenta quanto os traficantes; mas, entre dois males, devemos sempre escolher o bem que ainda não está previsto.

Hoje, ninguém vive maior angústia com a questão das favelas cariocas do que o secretário José Mariano Beltrame, à frente de sua política de pacificação. Dá dó vê-lo repetir aos homens públicos, pela enésima vez, que de nada vai valer a segurança policial se as medidas sociais básicas não subirem o morro também.

No dossiê do Inae, Luiz Antonio Pereira Lopes informa que, de acordo com o Censo do IBGE de 2010, o rendimento mensal médio de domicílios na área da Lagoa, na Zona Sul, é de cerca de R$ 6 mil. No Complexo da Maré, ele é inferior a 425 reais. Apesar dessa discrepância dramática, é comovente ler declarações, como a dos representantes no Fórum Nacional das favelas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, dizendo que seus projetos locais “têm como principal objetivo promover a transformação social através do alavancamento do potencial econômico dos setores produtivos locais, (...) para transformar as comunidades em um novo polo cultural e turístico dentro da cidade do Rio de Janeiro”. O que antes não se mostrava, agora se orgulha de ser visto.

Em sua intervenção, Henrique Saggaz, representando a Rocinha, afirma que “estamos vivendo um momento maravilhoso para as favelas e para a cidade do Rio de Janeiro, onde o cenário cultural atual poderá ter seu primeiro reconhecimento quando todos compreendermos que é dentro das favelas que nascem as grandes matérias-primas da cultura brasileira”. E ainda Rumba Gabriel, do Jacarezinho: “Resistência — este é o conceito fundamental para explicar o porquê dos sorrisos que ainda existem nos lábios dos favelados.” Os moradores desses novos “quilombos urbanos” não querem violência ou piedade, eles desejam apenas justiça.

Cacá Diegues é cineasta

carlosdiegues@uol.com.br