Na casa de Patrícia de Azevedo Filgueira, 34 anos, a relação de cuidados entre mãe e filha é mútua. Ela aprendeu a cuidar da menina, uma criança especial com retardo mental e epilepsia de difícil controle. Mas Sabrina Azevedo Filgueira, 8, também socorre a mãe. A dona de casa sofre com crises convulsivas. “Tive que ensiná-la a agir quando eu estiver tendo algo. Percebo que a Sabrina tem medo, mas já me ajudou até a levantar quando caí da cama”, relatou Patrícia. 
As duas esperam que o Canabidiol (CBD), uma das substâncias derivadas da maconha, permita terem qualidade de vida e voltarem às atividades normais. Sabrina saiu da escola. Patrícia nunca conseguiu permanecer em um emprego por conta das constantes crises. Quando a mãe buscou uma prescrição médica para importar a substância, esbarrou em burocracias e proibições. 

Até ontem, qualquer médico que prescrevesse o CBD, fora do estado de São Paulo (veja Para saber mais), poderia sofrer punições profissionais. No entanto, depois da publicação da Resolução nº 2.113/2014 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), Patrícia e Sabrina retomam as esperanças, e os médicos, a segurança para receitar o CBD. O documento autoriza e regulamenta o uso compassivo do canabidiol para crianças e adolescentes, até os 18 anos, que sofrem com crises de epilepsias que não reagem a tratamentos convencionais. 

Avaliada como um avanço histórico por pacientes, familiares e pesquisadores da área, a resolução, que deve ser revista em dois anos, detalha critérios para a utilização do CBD para fins terapêuticos no Brasil (veja As regras) e proíbe a prescrição da cannabis sativa para uso medicinal, bem como de quaisquer outros derivados. No entanto, determina condições. Além de limitar o uso por idade, a indicação terapêutica deve ocorrer no caso de uso compassivo, ou seja, quando não há resposta por parte dos outros remédios. Mas o CBD não deve substituir completamente outros medicamentos e, sim, ser usado de maneira associada. 

Base científica

A partir de agora, o único médico que tem permissão para receitar o CBD é o neurologista, ou um especialista em áreas de atuação correlatas, como neurocirurgia e psiquiatria. Profissionais que, na visão do CFM, têm experiência em tratar as convulsões. “Não temos elementos científicos que possam indicar a aprovação da maconha para outros fins. Tudo isso é derivado de fundamentação científica e critérios de segurança e eficácia, além de um contexto como um todo das condições de drogadição”, afirmou o presidente do CFM , Carlos Vital Tavares. 
Na avaliação do professor associado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade Estadual de São Paulo (USP) José Alexandre Crippa, o próximo passo é a busca por investimentos em pesquisa e produção sintética do CBD no Brasil. “A substância tem que ser mesmo normatizada em casos excepcionais. São necessários mais testes e outras pesquisas e, para isso, é preciso ter incentivos”, disse. Crippa acredita que a resolução poderia englobar outras doenças, como Parkinson e ezquizofrenia, mas reconhece que o CFM e o Brasil saem na frente com o documento por regulamentar a prescrição. 


Para saber mais

Exceção nacional

O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) publicou, em outubro, uma resolução que regulamenta a prescrição do Canabidiol (CBD). Desde então, o CBD pode ser prescrito, por médicos do estado, a bebês e crianças em casos de epilepsia refratária quando os medicamentos convencionais, registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não funcionam mais.



As regras

Critérios estabelecidos na Resolução nº2.113/2014 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que autoriza o uso compassivo do canabidiol para crianças e adolescentes, até os 18 anos, portadores de epilepsias refratárias a tratamentos convencionais:

» Restringe a prescrição às situações quando métodos já conhecidos não apresentam resultados satisfatórios; 
» Estabelece que apenas a especialidade de neurologia e áreas correlatas de atuação, como neurocirurgia e psiquiatria, estão aptas a fazer a prescrição;
» Os médicos e os pacientes deverão estar escritos em um sistema on-line criado pelo CFM para monitoramento;
» O paciente submetido ao tratamento deverá ser informado sobre os problemas e benefícios potenciais do tratamento — um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) terá de ser apresentado e assinado pelos interessados. Nele, o paciente reconhece que foi informado sobre as opções de tratamento e escolheu o CBD;
» Para ser submetido ao uso da substância, o paciente deverá preencher critérios de indicação e contraindicação, para garantir as dosagens corretas. A seleção levará em consideração a resistência da criança ou do adolescente aos tratamentos convencionais. Em acordo internacional, 
isso significa que o paciente não teve resposta 
com dois anticonvulsivantes;
» O CBD deverá ser utilizado em conjunto com outras medicações;
» A dose mínima, por via oral, será de 2,5 mg por quilo, dividida em duas vezes ao dia.
» Após a prescrição, o profissional deverá encaminhar ao CFM relatório de acompanhamento com uma periodicidade de quatro a seis semanas, no primeiro ano, e de 12 semanas após esse período;
» A decisão deverá ser revista em dois anos, quando serão avaliados novos elementos científicos.

 

MP defende a permissão 

Publicação: 12/12/2014 04:00

No entendimento do Ministério Público Federal no DF (MPF/DF), existem evidências científicas de que a Cannabis sativa tem potencial terapêutico e pode ser utilizada com sucesso em tratamentos de doenças gravíssimas, como a da menina Anny Fischer, 6 anos. Por isso, o órgão ajuizou ação civil contra a União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A intenção dos autores do documento, os procuradores da República Luciana Loureiro, Anselmo Henrique Lopes e Ana Carolina Roman, é permitir o uso medicinal e científico da Cannabis no Brasil.

O intuito não é de que seja um produto para qualquer cidadão consumir. A planta, o medicamento ou os derivados devem ser adequados a cada paciente e objeto de avaliação médica criteriosa. Devem ser receitados de forma restrita, rigorosamente controlada, com punição das autoridades competentes diante de quaisquer desvios.

Os autores da ação ressaltam que, “tradicionalmente, a discussão de qualquer tema que envolva a Cannabis atrai resistências e bloqueios, não raramente decorrentes de ausência de conhecimento aprofundado sobre o tema, sobretudo informações de caráter científico”. No documento, a procuradora Luciana Loureiro completa: “é preciso desmitificar o tema do uso medicinal da Cannabis para analisar a questão com base nas evidências científicas existentes, sem prejulgamentos não fundamentados”.

O início da ação deu-se após o MPF instaurar um procedimento para apurar possível omissão da Anvisa na regulamentação do uso medicinal das substâncias extraídas da maconha. A investigação começou depois da ampla repercussão do caso de Anny Fischer, a primeira a obter autorização judicial para importar um óleo derivado da planta. Na última reunião do ano, no dia 18, a Anvisa pode tomar alguma decisão em relação à importação do CBD.

O pai de Anny, Norberto Fischer, 46 anos, vê com bons olhos a discussão cada vez mais ampla. “Um ano atrás, nem se falava em maconha medicinal no Brasil. Os órgãos estarem discutindo é um avanço”, avaliou. Na opinião de Norberto, a resolução do Conselho Federal de Medicina é válida, com ressalvas. “É um sentimento duplo de alegria, por ver que o conselho se posicionou, e de tristeza, por ver uma resolução tão atrasada e quase que retrógrada pela forma como foi publicada”, concluiu.