Depois de dois anos e sete meses de trabalho, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou ontem - Dia Internacional de Direitos Humanos - o resultado das investigações. O documento, com 4,4 mil páginas divididas em três volumes, aponta 377 nomes de autores de crimes de violação de direitos humanos praticados durante a ditadura militar. Entregue à presidente Dilma Rousseff no Palácio do Planalto, o relatório final apresenta o detalhamento de casos específicos, como os métodos usados pelo regime militar que vigorou no país entre 1964 e 1985, e confirma que a tortura era institucional, uma política de Estado, e não uma prática isolada de alguns agentes públicos fora de controle. 

Outro ponto que era motivo de expectativa e polêmica, a questão da Lei de Anistia é tratada de forma extensa pelo documento. Apesar de não pedir explicitamente a revisão da legislação, o colegiado recomenda a não aplicação porque não é condizente com o Estado democrático de direito. Em sugestões mais práticas e referentes ao que chamam de resquícios da ditadura, a comissão pede ainda a desmilitarização das PMs estaduais e a revogação da Lei de Segurança Nacional. No total, são 29 sugestões. A comissão apresenta também o nome de 193 mortos e de 210 desaparecidos. 

A lista dos responsáveis pelos atos de violação dos direitos humanos inclui desde os cinco presidentes da República e a junta militar que governaram o país na ditadura até militares de vários níveis hierárquicos e civis que colaboraram com o regime, sejam médicos que falsificaram documentos ou atuaram pessoalmente em torturas ou diplomatas que ajudaram a prender brasileiros no exterior. O dado, no entanto, não é fechado. O colegiado afirmou que chegou a retirar nomes para que da lista constassem apenas aqueles que tivessem provas consistentes e inquestionáveis dos crimes cometidos. No capítulo de conclusões, a comissão recomenda ao Estado brasileiro que as pessoas apontadas sejam responsabilizadas juridicamente - do ponto de vista civil, criminal e administrativo. O documento enfatiza ainda que elas não podem ser beneficiadas pela Lei da Anistia, de 1979. 

Entre os nomes citados pela CNV também estão o coronel Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi de São Paulo; Sebastião Moura, conhecido como Major Curió, denunciado pelo Ministério Público do Pará pelo sequestro de cinco pessoas na Guerrilha do Araguaia; o coronel Paulo Malhães, morto em abril deste ano depois de assumir participação na ocultação do corpo do deputado Rubens Paiva em depoimento à Comissão Nacional da Verdade um mês antes; o médico do Exército Amílcar Lobo, conhecido como Dr. Carneiro, que controlava as sessões de tortura na Casa da Morte, em Petrópolis. 

Sem revanchismo 

Responsável pela instalação da CNV, a presidente Dilma Rousseff se emocionou ao receber o relatório final do colegiado. Ao lembrar os companheiros que continuam sofrendo, a presidente chorou e, com a voz embargada, ressaltou que o Brasil merece a história real. "(Na instalação da CNV) Afirmei ainda que o Brasil merecia a verdade, que as novas gerações mereciam a verdade e, sobretudo, mereciam a verdade aqueles que perderam familiares, parentes, amigos, companheiros e que continuam sofrendo. (pausa para o choro) Continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre, a cada dia", disse. Para Dilma, o relatório trouxe à luz o tempo oculto pelo "arbítrio e pela violência". "A verdade não significa revanchismo, não deve ser motivo para ódio ou acerto de contas. A verdade produz consciência, aprendizado, conhecimento e respeito." 

Além da solenidade no Palácio do Planalto, a CNV participou de evento na Ordem dos Advogados do Brasil, como prestação de contas à sociedade. O coordenador da CNV, Pedro Dallari , defendeu os volumes, classificando como "um relatório circunstanciado", mas, ainda assim, confirmou que ainda há trabalho a ser feito. "Não representa nem o começo nem o fim da investigação. Só foi possível começarmos por termos a sistematizações de vítimas, locais, autores, em documentos anteriores. Procuramos fazer o melhor possível para acrescentar informações", disse. Dallari disse ainda que, com todo o documento disponibilizado na internet, fica agora uma plataforma de pesquisa para que sociedade civil, familiares e universidades aprofundem o material. 

As propostas 

A Comissão Nacional da Verdade concluiu o relatório final de trabalho com 29 recomendações, divididas em três grupos: as 

medidas institucionais, reformas constitucionais e legais e, por fim, as de seguimento das ações da CNV. Confira as principais: 

Medidas institucionais 

» Reconhecimento, pelas Forças Armadas, da responsabilidade pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985); 

» Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos da Lei de Anistia, e em outras disposições constitucionais e legais; 

» Proposição, pela administração pública, de medidas administrativas e judiciais de regresso contra agentes públicos autores de atos que geraram a condenação do Estado em decorrência da prática de graves violações de direitos humanos; 

» Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964; 

» Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos; 

» Retificação da causa de morte na certidão de óbito de pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos; 

» Desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis; 

Reformas constitucionais e legais 

» Revogação da Lei de Segurança Nacional; 

» Desmilitarização das PMs estaduais; 

» Alteração da legislação processual penal para eliminação do auto de resistência à prisão. 

Outras ações 

» Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e às recomendações da CNV; 

» Continuidade das atividades voltadas à localização, à identificação e à entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos.