O Clube Militar, entidade que congrega integrantes das Forças Armadas, rebateu, em nota oficial, o resultado produzido pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Classificando o colegiado como "espúrio", a organização afirmou que "o relatório só poderia ser uma coleção de meias-verdades, calúnias e mentiras inteiras, embaladas com pedaços de verdade cuja divulgação confirma a orientação socialista dos comissários". 

A nota questiona a parcialidade do material produzido e diz que o documento apresentado é requentado. "Tratando-se de entidade que alterou a seu bel-prazer sua missão, o objeto da lei e o prazo em que ocorreram os fatos a investigar, tudo através de decisões internas, legislando em causa própria sem que os poderes desrespeitados reagissem, perdeu, na origem, a imparcialidade que devia orientar seus trabalhos e, consequentemente, sua credibilidade." 

Os militares alegam que "quanto aos angelicais terroristas, merecem toda a proteção e indenizações criadas ou a criar". Também criticam a CNV por não fazer "referência à ação dos terroristas, guerrilheiros, sequestradores e assassinos esquerdistas que tentavam tomar o poder à força e estabelecer, no país, um governo totalitário comunista de modelo soviético, chinês ou cubano". 

Tumulto 

Ontem, no momento em que o coordenador da CNV, Pedro Dallari, entregava ao vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Claudio Lamachia, o relatório das investigações sobre violações de direitos humanos na ditadura em versão impressa, um defensor das Forças Armadas tomou lugar no púlpito para criticar o evento. 

Identificando-se como Joel Câmara, ele afirmou que os presentes estavam "comemorando atos terroristas", e que estava ali "prestando homenagem às Forças Armadas, que venceram a guerra ao terror". Muito vaiado e sob gritos de "fascista", foi retirado do palco. Câmara foi um dos organizadores da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizada em Brasília, no Setor Militar Urbano, em junho deste ano, pedindo a volta dos militares ao poder. Lamachia retomou a fala pedindo que a plateia não se deixasse abalar. 

A primeira recomendação da CNV no relatório final é o reconhecimento por parte das Forças Armadas da responsabilidade institucional que tiveram nas violações de direitos humanos do período. O relacionamento do colegiado com o Ministério da Defesa e as forças subjacentes é motivo de um trecho do documento de 4,4 mil páginas. 

"O relatório só poderia ser uma coleção de meias-verdades, calúnias e mentiras inteiras, embaladas com pedaços de verdade cuja divulgação confirma a orientação socialista dos comissários" 

Trecho da nota oficial divulgada pelo Clube Militar, entidade que congrega integrantes das Forças Armadas 

"Anistia é acima de tudo esquecimento, perdão em seu sentido maior" 

Marco Aurélio Mello, ministro do STF 

"É uma questão de resgate da verdade histórica, muito importante para o país" 

Roberto Barroso, ministro do STF

 

 

Mudança nas PMs

 

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), além de fazer o detalhamento sobre vítimas, algozes e episódios emblemáticos, entra em questões atuais, alvo de reivindicações de entidades da sociedade civil de outros setores. Uma delas diz respeito à desmilitarização das polícias militares e estaduais. O texto considera como uma "anomalia" a atribuição militar às forças estaduais. "Essa anomalia vem perdurando, fazendo com que não só não haja a unificação das forças de segurança estaduais, mas que parte delas ainda funcione a partir desses atributos militares, incompatíveis com o exercício da segurança pública no Estado democrático de direito, cujo foco deve ser o atendimento ao cidadão." 

A divisão entre polícias Civil e Militar está prevista na Constituição de 1988. Às polícias militares ficou a incumbência do patrulhamento ostensivo e a manutenção da ordem pública. A proposta de desmilitarização consiste em unificar os dois grupos, e que todo ele tenha uma formação civil. Uma das críticas feitas à militarização é o treinamento a que são submetidos os policiais. Defensores da mudança argumentam que as Forças Armadas são treinadas para combater e acabar com o inimigo externo. No entanto, treinar a polícia assim seria inadequado, pois o policial deve saber respeitar direitos humanos e não identificar cidadãos como inimigos. 

O colegiado dedica outras recomendações à segurança pública. Ele pede explicitamente a revogação da Lei de Segurança Nacional. A legislação data de dezembro de 1983. "Adotada ainda na ditadura militar, reflete as concepções doutrinárias que prevaleceram no período", diz o relatório. Portanto, a comissão entende que ela precisa ser substituída por um texto que proteja o Estado democrático de direito. A Lei de Segurança Nacional foi usada para reprimir os protestos que tomaram o país em junho de 2013 e enquadrar manifestantes, o que foi alvo de questionamento por entidades defensoras dos direitos humanos e de livre manifestação. 

A figura dos autos de resistência à prisão também devem sumir da legislação brasileira. Essa é uma classificação dada pela PM quando alguém é morto em confronto. No entanto, por falta de transparência, ficou provado que, em muitos dos casos, as mortes se tratavam de execuções. De acordo com o colegiado da CNV, os casos de lesões e mortes decorrentes de ações policiais devem passar a ser registradas como "decorrente de intervenção policial", substituindo os termos "autos de resistência" e "resistência seguida de morte". 

 

Pela continuidade dos trabalhos

 

A continuidade das investigações para o esclarecimento do desaparecimento das vítimas do regime e localização dos corpos é uma das principais reivindicações das entidades da sociedade civil e familiares dos desaparecidos. Para a vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, não indicar onde estão os corpos é uma das maiores falhas do relatório. "A comissão deflagrou uma coisa muito perversa, a esperança de encontrar o familiar. Isso não vai acontecer porque não interessa. Não interessa às Forças Armadas. O relatório que vimos é o máximo de até onde as investigações podem ir. Isso é lamentável", alegou. Cecília sustenta que os efeitos da ditaduras estão presentes até hoje. "Não é uma questão do passado. Ainda ocorrem práticas que se faziam naquele período", acrescentou. 

O coordenador da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, Wadih Damous, fez um apelo aos colegiados estaduais e pediu que eles mantenham o esforço para aprofundar o trabalho da entidade nacional. "Não se sabe ainda onde está o corpo de Suart Angel, por exemplo, bem como de vários outros desaparecidos políticos. Conclamo os companheiros das comissões estaduais para que tenhamos o relatório final como guia de trabalho", sugeriu. De acordo com ele, todos os casos devem ser esclarecidos porque permanecem no presente como "ranço do período da ditadura". O relatório deve ser recebido, de acordo com Damous, como "obra aberta", pois muitos fatos ainda restam por apurar. 

Diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Átila Roque afirma que o relatório representa um passo importante no momento atual, porém, não deve ser visto como um ponto final. "É, na verdade, um ponto de partida. Não estamos virando uma página. A repressão e a ditadura foi uma máquina organizada de supressão às liberdades. Esse trabalho precisa mobilizar a sociedade para que se cumpra o que foi determinado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos", afirmou. Em novembro de 2010, o organismo internacional responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia durante as operações militares da década de 1970. Na mesma decisão, sustentou que as disposições da Lei de Anistia, de 1979, são incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 

Também para a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil precisa agora processar os responsáveis pela tortura. Em comunicado emitido ontem em Genebra, o alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Ra"ad Al Hussain, afirmou que não deve haver nenhum estatuto de limitação ou impunidade. "A convenção da ONU contra a tortura é clara. Nenhuma exceção deve ser feita. Nem torturadores nem políticos nem funcionários públicos que definiram a política pública devem ser preservados", completou. O alto comissário parabenizou o trabalhou e o considerou um importante primeiro passo. 

 

Supremo dividido

Correio Braziliense - 11/12/2014

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Roberto Barroso questionou ontem a validade da Lei da Anistia, que perdoou crimes cometidos por militares e militantes de esquerda durante os 21 anos da ditadura (1964-1985). O tribunal já considerou legal a Lei da Anistia, mas, para ele, a questão pode ser reexaminada. 

O ministro disse que a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que considerou imprescritível o crime de tortura, é um fator relevante, já que foi tomada depois do acórdão do STF. Outro fato importante, na visão de Barroso, são as conclusões da Comissão Nacional da Verdade, apresentadas ontem. O colegiado defendeu que fossem revogadas algumas partes da lei. 

Segundo Barroso, o quadro permite que tudo possa ser reanalisado. "É uma matéria que STF ainda vai reapreciar, há uma decisão da Comissão Interamericana", disse o ministro. "É uma questão de resgate da verdade histórica, muito importante para o país", afirmou. 

Já o ministro Marco Aurélio se posicionou contra a mudança do Supremo. Ele disse ser preciso entender a lei da anistia conforme "a quadra vivida" em 1979. "Anistia é acima de tudo esquecimento, perdão em seu sentido maior", disse ele. "Mostrou-se viável. Também tem contornos bilaterais, pois beneficiou agentes da repressão mas também todos a época (considerados) como subversivos."