A ocupação de um conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), ainda vazio, em Guadalupe, na Cidade do Rio de Janeiro, não foi a primeira a atingir unidades do programa. Este programa de moradia popular é, sob o ponto de vista quantitativo, o mais bem-sucedido, tendo entregue quase dois milhões de habitações. Isso representa cerca de um terço do déficit habitacional brasileiro, de seis milhões de moradias, segundo a Fundação João Pinheiro. Um resultado, portanto, expressivo e que ainda não havia sido atingido por nenhuma política habitacional no Brasil.

Se o acesso ao sonho da casa própria está sendo garantido, a manutenção deste sonho é ameaçada por fatores do próprio programa. As unidades do MCMV são organizadas como condomínios fechados, onde a administração do espaço coletivo privado e das habitações é de responsabilidade do morador.

No entanto, esta não é uma prática conhecida pelas populações pobres. Moradores das áreas informais da cidade, onde as regras são de outra natureza e a estratégia de sobrevivência supõe o não pagamento de certos serviços — água, luz etc —, eles sofrem enorme impacto com a transferência para a moradia formal e com a incorporação destas novas despesas à rotina. A mudança atinge principalmente aqueles que são beneficiários das políticas de transferência de renda. Somam-se a elas o pagamento da prestação do imóvel e, principalmente, da taxa condominial.

Para estas famílias, que ganham até três salários-mínimos, mas situam-se, em média, na faixa de até 1,5 salário-mínimo, a manutenção do sonho da casa própria começa a virar pesadelo. Incapazes de lidar com essas demandas, muitos moradores "vendem" as moradias; outros alugam; alguns abandonam.

A gestão do condomínio exigiria experiência administrativa, necessária para gerir 300 ou 400 unidades habitacionais. Soma-se à inexperiência a alta inadimplência dos moradores, que na maioria não conseguem manter em dia o condomínio.

O conjunto entra em decadência física e normativa, a iluminação do espaço condominial torna-se precária e acumulam-se as questões de segurança pública. E mais ainda: o síndico, enquanto gestor condominial, perde sua autoridade.

Estas condições favorecem enormemente a presença de grupos clandestinos, sejam eles milícias ou narcotraficantes, que restabelecem, pela força física, a "autoridade", controlando a administração condominial, ameaçando de expulsão os moradores inadimplentes, ocupando a casa de moradores expulsos, "privatizando" os serviços públicos e exercendo um poder discricionário.

A invasão em Guadalupe mostra que, agora, estes grupos clandestinos estão se adiantando ao processo de ocupação. É fundamental que a presença do poder governamental se faça constante no período de ocupação e pós-ocupação, com assistência técnica e jurídica, capaz de garantir a manutenção do sonho da casa própria de milhões de brasileiros.

Publicado no Globo de hoje. Paulo Magalhães é pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade.