Nos bastidores da histórica reaproximação entre Estados Unidos e Cuba, anunciada ontem pelos presidentes Barack Obama e Raúl Castro, o papa Francisco movimentou-se como ator fundamental para viabilizar o diálogo discreto desenvolvido pelos dois governos desde meados de 2013. Embora o líder da Igreja Católica nem sempre seja lembrado por seu papel em assuntos de Estado, a intermediação do pontífice na normalização das relações entre Washington e Havana, interrompidas há 53 anos, foi considerada uma vitória para a diplomacia do Vaticano.

Pouco depois da libertação de Alan Gross, americano preso em cuba há cinco anos, e de três cubanos detidos nos EUA desde 1998, Obama e Castro fizeram pronunciamentos quase simultâneos para anunciar o reatamento. A participação de Francisco nas articulações foi destacada por ambos os presidentes, que escolheram o dia do aniversário de 78 anos do pontífice para tornar pública a decisão.

Fontes ligadas ao processo relataram que o diálogo entre representantes dos dois países começaram, sigilosamente, em junho de 2013. Segundo o jornal The New York Times, ao menos nove reuniões secretas foram realizadas no Canadá. Um alto funcionário da Casa Branca afirmou que, embora não tenha participado das discussões, o governo canadense ofereceu “apoio indispensável para os esforços” diplomáticos.

Em visita ao Vaticano, em março passado, Obama tratou diretamente da questão cubana. Após o encontro, o pontífice enviou cartas nas quais convidava os dois mandatários a “resolver questões humanitárias de interesse mútuo” e “dar início a uma nova fase das relações entre as duas partes”. O apelo foi seguido por uma reunião das delegações cubana e americana na Santa Sé, na presença de funcionários do Vaticano, em outubro passado.

Segundo Washington, a iniciativa foi fundamental para o desfecho das articulações. “O Vaticano foi um local de encontro para os EUA e os cubanos apresentarem seus compromissos e finalizarem os passos que estão sendo tomados, incluindo a transferência dos prisioneiros”, relatou o funcionário da Casa Branca. “O apoio do papa Francisco e do Vaticano foram importantes para nós, dada a estima que os povos americano e cubano têm pela Igreja Católica e, em particular, pelo primeiro papa da América Latina”, completou, em referência à nacionalidade argentina do líder religioso.

 

“Pequenos passos”

Ontem, o papa expressou “felicidade” com a reconciliação. Em discurso pronunciado na entrega de credenciais dos novos embaixadores de Ruanda, Dinamarca e Catar, ele salientou que o ofício diplomático “é um trabalho de pequenos passos, de pequenas coisas, mas que serve sempre para fazer as pazes, aproximar os corações dos povos, semear fraternidade entre eles”.

O êxito da diplomacia do Vaticano no caso Cuba-EUA é resultado de um longo diálogo com o governo da ilha caribenha. Apesar de sacerdotes católicos terem sido perseguidos no início do regime comunista, a Igreja desempenhou um importante papel social e humanitário no país. Em 1962, a intervenção do papa João XXIII contribuiu para evitar uma guerra entre Estados Unidos e União Soviética durante a crise em torno dos mísseis nucleares instalados na ilha por Moscou. As visitas dos papas João Paulo II, em 1998, e Bento XVI, em 2012, reforçaram o diálogo. Bento XVI chegou a reunir-se com o grupo opositor Damas de Branco, mas também classificou o embargo econômico imposto por Washington como um “fardo injusto” para o povo cubano. Em março de 2013, foi a vez de Francisco visitar a ilha.

O secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, considerou que, além dos esforços feitos a “pequenos passos” pela Santa Sé, pesou para o sucesso a origem latino-americana de Francisco. Em entrevista à Rádio Vaticano, Parolin — que foi Núncio Apostólico na Venezuela, aliado político de Cuba — disse acreditar que a retomada das relações entre Cuba e EUA resultará em efeitos positivos para toda a América Latina. “Essa dose de grande coragem, que levou os dois países a chegar a essa conclusão, poderá inspirar outros líderes a trilharem o mesmo caminho do diálogo e do encontro.”

 

Brasil vê fim da Guerra Fria

Depois de a presidente Dilma Rousseff considerar a reaproximação de EUA e Cuba um “marco para as relações regionais”, o Itamaty expressou “grande satisfação” com a decisão dos países. O Ministério das Relações Exteriores considerou que a normalização das relações elimina “um resquício da Guerra Fria” e contribui “para a consolidação da paz, da democracia e da prosperidade na região”. Também fez votos pelo “êxito” do processo e pelo fim do embargo econômico contra Cuba. “Felicitamos os presidentes Raúl Castro e Barack Obama pela liderança, coragem política e visão estratégica que demonstraram com essa histórica decisão”, afirma a nota.

 

Vaticano relança a sua diplomacia

 

A Santa Sé acumula uma vasta experiência histórica de arbitragem e mediação de conflitos, mas não ocupava um papel tão central como pivô do diálogo entre dois países desde que João Paulo II intercedeu para evitar uma guerra entre Argentina e Chile na crise do Canal de Beagle, no início dos anos 1980. “Essas mediações — ainda mais quando têm sucesso, como essa última — têm o efeito colateral de relançar a Santa Sé no plano internacional”, avalia Anna Carletti, professora de relações internacionais da Universidade do Pampa e colaboradora do Programa de Pós-Graduação de Estudos Estratégicos Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Autora de “O internacionalismo vaticano e a Nova Ordem Mundial”, ela falou ao Correio sobre o peso exercido pelo papa Francisco na reaproximação histórica entre Estados Unidos e Cuba.

Qual foi o interesse do Vaticano em mediar os contatos diplomáticos entre EUA e Cuba?

Um dos meios de atuação internacional da diplomacia vaticana é a arbitragem ou medição de conflitos entre Estados. Ao longo da história, foram registradas 14 intervenções importantes, a primeira durante a guerra franco-prussiana, em 1870. Uma mediação que ganhou destaque internacional foi na disputa chileno-argentina sobre o canal de Beagle, de 1978 a 1984. A mediação operada nas difíceis relações entre EUA e Cuba se insere e se explica na esteira de uma tradição e grande experiência acumulada pela Santa Sé na mediação e na tentativa de resolução de conflitos. O atual secretário de Estado, o cardeal Parolin evidenciou mais de uma vez que os objetivos da diplomacia vaticana são justamente construir pontes, apoiar as negociações e o diálogo como meio para resolução de conflitos. Fez questão de reiterar que não existem outros interesses ou estratégias por parte do papa. Eu acrescentaria que, mesmo a Santa Sé afirmando não ter outros interesses, essas mediações — ainda mais quando têm sucesso, como essa última — têm o efeito colateral de relançar a Santa Sé no plano internacional e revitalizar aquela autoridade moral própria e única, que nos últimos anos foi bastante ferida pelos escândalos de pedofilia, além dos financeiros.

Havana tem aperfeiçoado as relações com o Vaticano desde a visita histórica do papa João Paulo II. Também a Santa Sé tem olhos na evolução futura de Cuba?

As relações diplomáticas com Cuba foram as únicas que permaneceram ininterruptas entre a Santa Sé e um país socialista. Temos hoje quatro países comunistas: a China, cujo tema das relações com a Santa Sé é ainda um tema não resolvido; o Vietnã, que ainda não tem relações formais, mas cujo estágio de negociações se encontra mais avançado do que o da China e da Coreia do Norte. Portanto, Cuba sempre esteve entre as prioridades do Vaticano. Pelas características peculiares do governo castrista e do contexto regional e internacional, foi possível manter essas relações. A abertura de João XXIII ao diálogo com os governos comunistas facilitou tais relações. Não obstante os problemas entre o governo castrista e a Igreja cubana, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, a Santa Sé fez de tudo para mitigar os desentendimentos e manter canais abertos para o diálogo.