Título: HIV & crack: vulnerabilidades e desafios
Autor: Mathiasen, Bo ; Chequer, Pedro
Fonte: Correio Braziliense, 29/06/2011, Opinião, p. 13

Representante do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) para o Brasil e o Cone Sul

Coordenador do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) no Brasil

Muito tem se falado sobre o crack. A droga está cada vez mais presente nas ruas de grandes cidades do Brasil e de outros países do Cone Sul. A preocupação dos governos para entender os efeitos e, principalmente, os fluxos da cocaína e do crack é crescente. Uma questão, no entanto, vem recebendo pouca atenção. Trata-se da vulnerabilidade dos usuários de crack ao HIV e a outras doenças infectocontagiosas, como a tuberculose, as hepatites e infecções transmitidas sexualmente de modo em geral.

No fim dos anos 1980 e início da década de 1990, o Brasil foi protagonista no desenvolvimento de estratégias inclusivas, ao promover ações de redução de danos entre usuários de drogas injetáveis, que então constituíam um dos grupos mais vulneráveis à transmissão do HIV por via sanguínea. O resultado foi um decréscimo de 72,6% do número absoluto de casos de Aids associados ao uso injetável de drogas entre 1996 e 2006.

Naquele momento, foi necessário que o enfoque não fosse a droga, mas o usuário, com ações de enfrentamento ao estigma e ao preconceito que representavam grandes barreiras na promoção do acesso dessa população aos serviços de saúde. Hoje, quase 20 anos depois, o país enfrenta novo desafio: a vulnerabilidade dos usuários de crack.

Surgido na década de 1980, o crack é uma droga derivada da cocaína, com alto poder de criar dependência e que apresenta consequências devastadoras para a saúde física e mental do usuário. O baixo custo da pedra, comercializada, às vezes, por apenas R$ 5, faz com que qualquer pessoa tenha acesso à droga.

Diferentemente de outras substâncias, o consumo problemático do crack é diário e ocorre até o esgotamento físico, psíquico ou financeiro do usuário. Os usuários de crack consomem, em média, de seis a 10 pedras por dia e, quando em grupo, compartilham o "cachimbo" e até mesmo a fumaça para economizar no consumo da droga.

Estudos com recortes específicos demonstram os fatores de vulnerabilidade dos usuários de crack em relação ao HIV: práticas sexuais sem proteção, associadas a um número elevado de parceiros; a troca de sexo por dinheiro ou mesmo pela droga; o baixo nível de instrução dos consumidores; a substituição do uso exclusivo pelo uso de múltiplas drogas; e a baixa imunidade colocam o usuário em situação ainda mais vulnerável.

Essa relação com a droga, potencializada pelo viver em situação de rua, tem tornado o usuário de crack alvo de estigmatização, preconceito e marginalização, fragilizando todos os laços sociais que poderiam oferecer alternativas.

Dados já antigos demonstram as proporções que o problema pode atingir. Na década de 1990, estudo realizado em Nova York, nos Estados Unidos, evidenciou a alta prevalência de HIV entre mulheres usuárias de crack ¿ 21% delas eram soropositivas. Outro estudo, também dos anos 90, em Houston (EUA), com usuárias de crack que apresentavam comportamento sexual de risco, mostrou altas taxas de infecções sexualmente transmitidas: 11,3% positivas para HIV; 14,9% para sífilis e 53,3% para hepatite B.

Já no Brasil, estudo publicado em 2004 sobre o comportamento de risco de mulheres usuárias de crack em relação às DSTs/Aids revelou uma prevalência de 20% para o HIV na amostra estudada. A vulnerabilidade dos usuários de crack ao HIV e a outras doenças infectocontagiosas, como tuberculose e hepatites, é evidente. Os estudos e a própria experiência mostram que é preciso agir rapidamente, para evitar a propagação dessas doenças entre os usuários de crack.

As vulnerabilidades associadas ao uso dessa droga demandam o desenvolvimento de novas estratégias e de métodos de prevenção do HIV/Aids, da tuberculose, das hepatites e de outras DSTs.

Nessa perspectiva, é importante a implementação de estratégias cientificamente fundamentadas para o equacionamento do problema. O estabelecimento de serviços que disponham de equipe qualificada, nos quais o acolhimento e o respeito ao paciente, não como mero cliente ou usuário, mas como cidadão, deve ser aspecto intrínseco da rotina estabelecida. Por seu lado, serviços e ações que efetivamente apresentem cobertura de abrangência nacional e de acessibilidade compatíveis.

Os tempos mudaram, o perfil do uso de drogas mudou, os desafios são outros, mas o objetivo deve ser o mesmo: prevenir e reduzir o consumo de drogas e minimizar os riscos e as vulnerabilidades à saúde de usuários por meio de serviços de atenção integral.