A Carta que os constituintes legaram ao Brasil em 1988 contemplou uma série de demandas reprimidas na vida do país. Era previsível e, em boa parte dos casos, natural que isso ocorresse. Afinal, a sociedade deixava para trás duas décadas de exceção política e institucional, fruto de uma ditadura militar que impôs suas leis pela ótica da caserna, quase invariavelmente dissonante dos postulados do estado democrático de direito. Ao dar forma legal aos novos tempos de redemocratização, a Constituição refletiu, no seu corpo, aspectos positivos, mas também outros que, confrontados com a dinâmica da realidade, acabaram por se revelar negativos, ou quando nada, equivocados.

É o caso dos dispositivos que permitiram a proliferação de novos municípios em todo o país. Havia nesse primeiro momento, por certo, demandas reais que precisavam ser resolvidas. Mas, ao tornarem indiscriminados os critérios de criação de cidades, legando esse poder às Assembleias Legislativas, a Constituição estimulou uma farra de autonomias administrativas. Se fez justiça em questões tópicas, na maior parte das vezes essa delegação se revelou deletéria.

Entre 1988 e 1996, criaram-se em torno de 1,5 mil novos municípios (hoje, são 5.700). São, em geral, currais eleitorais que atendem a interesses fisiológicos e se tornam moeda de troca de favores políticos, além de fontes de aumento de gastos públicos (em razão da criação de novas estruturas de governo, com câmaras e prefeituras, quadros de funcionários etc.). A maioria deles sem condições de se manter com suas próprias receitas, é dependente do Fundo de Participação. Em 96, a farra foi contida, com a aprovação da Emenda Constitucional 15, que tornou mais rígidos os mecanismos de expansão da base de municípios, ao tirar dos estados a autonomia para legislar sobre a questão, transferindo a responsabilidade para o Congresso.

Também para o Legislativo federal transferiu-se a bancada emancipacionista. Em 2002, o lobby no Congresso fez uma investida, contida, para tentar afrouxar mais uma vez os dispositivos que dão autonomia administrativa a regiões seletivas de cidades. E mais recentemente, na esteira da necessária discussão da regulamentação da Emenda 15, intentou-se mais uma vez — e de novo em vão — implodir os mecanismos de controle.

A presidente Dilma vetou em agosto um projeto que, com o escopo de fixar regras para criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios, trazia nas entrelinhas artifícios para permitir o surgimento de duas centenas de cidades. O texto, aprovado no Congresso, era resultado de um acordo do próprio Executivo com a bancada municipalista, mas, por fim, pesaram na decisão de Dilma o fantasma do desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal e, principalmente, o temor de desagradar a prefeitos aliados às vésperas da eleição. Seguiu-se uma fracassada tentativa de derrubar o veto no plenário.

Por ora, a indústria emancipacionista parece contida, mas, pelas insistências anteriores, não se pode apostar que o risco tenha acabado. É preciso manter ligados os sensores no Congresso.

 

Tarefa urgente

 

A necessidade de criação de novos municípios é uma realidade. À parte as dificuldades fiscais do país e a necessidade de uso comedido dos recursos disponíveis, caberá ao Congresso debruçar-se sobre o tema e construir uma saída, dado o veto da presidente Dilma ao projeto que estabelecia novas regras para fusão, incorporação e criação de novos municípios. O primeiro desafio é impedir a proliferação indiscriminada de novas unidades federativas, e não o contrário . Se tivéssemos os cuidados necessários , há anos, como os que incluímos na proposta vetada, hoje o Brasil contaria com cerca de 2.500 municípios a menos.

Muitos foram criados num passe de mágica, impactando negativamente as contas públicas. A proposta exaustivamente negociada no decorrer de 2014 era mais restritiva do que permissiva, mas mesmo assim pavimentava o caminho para a solução de casos escabrosos, sobretudo diante da imensidão territorial dos estados da Amazônia. Em função das especificidades da Amazônia, lá a tarefa é urgente, para melhorar a qualidade de vida da população e permitir-lhe acesso mais facilitado aos serviços públicos.

Há, por incrível que pareça, localidades que distam 1.100 quilômetros da sede do município. Um avião monomotor demora 2 horas e meia dentro do mesmo município — por exemplo, de Altamira, no Pará, até o distrito de Castelo dos Sonhos.Nas comunidades de Lindoeste, sudoeste do município de Vitória do Xingu, a população mora a 300 quilômetros ou mais de Marabá, a 250 quilômetros ou mais de Tucumã ou São Félix do Xingu.Não cabe justificativa técnica da área econômica para inviabilizar a mudança sob o argumento de que haveria aumento de despesa sem a contrapartida da receita.

O texto vetado foi amplamente discutido entre o Congresso e os ministérios interessados. O critério norteador foi a criação de novos municípios condicionada à autonomia financeira e à capacidade de arrecadação. A mudança é necessária , particularmente para as regiões Norte e Centro-Oeste. Pela iniciativa gestada no Congresso não seriam criados , sequer , 80 municípios em todo o Brasil. O Pará, devido ao seu crescimento , é o que criaria mais municípios, cerca de 15. Em Rondônia, quatro; no Acre, um apenas; e no Amapá, talvez um.

Ao todo, existem cerca de 180 distritos que pretendem virar municípios no país a partir da proposta original, dependendo de estudo de viabilidade econômica, número da população e, ainda, de plebiscitos. E muitos não atenderiam os critérios da legislação proposta.Entre idas e vindas, como resultado positivo de todo o debate sobre o veto é o entendimento do governo de que uma nova lei é necessária, particularmente para as regiões Norte e Centro-Oeste. Eis um bom desafio para 2015.