Sob uma árvore frondosa, bem ao lado de sua modesta casa, o presidente do Uruguai repassava a agenda desta sexta-feira. José Mujica tem encontro hoje à tarde com a presidente Dilma Rousseff, em Brasília, para tratar de pendências que ele não quer deixar para seu sucessor, que assume no próximo ano. Entre os assuntos do dia, destaca-se a questão do Mercosul. "O que vamos fazer com o Mercosul?", pretende perguntar a Dilma.

A plantação de acelgas é a primeira coisa que se vê ao chegar ao Rincón del Cerro, nome da pequena chácara de Mujica, na área rural de Montevidéu, a uns 20 km do centro da capital. Depois de um pequeno trecho de estrada de terra, o sinal de que se chegou ao destino é o carro policial estacionado à frente do portão da casa, aberto.

Há também uma pequena guarita de fibra, que, segundo dizem, foi colocada ali muito mais para servir de abrigo ao policial do que como equipamento de segurança. O atento guarda vai pessoalmente até a casa do presidente de seu país avisá-lo que as visitas chegaram.

Na casa de onde Mujica diz que só sairá "direto para o cemitério" prevalece um modo de vida oposto ao que ele chama de "males das repúblicas contemporâneas". "Ninguém é mais do que ninguém e, por isso, os presidentes devem viver como a maioria que os elegeu e não como a minoria", diz. "Mas os presidentes costumam se rodear de cortes que mais parecem estruturas monárquicas", diz o político, que também já foi deputado e ministro da Agricultura.

Mujica traz duas cadeiras de ferro para o quintal e seu assessor coloca as almofadas empoeiradas. Um pequeno balde com a boca virada para baixo faz o papel de mesinha de apoio. Está assim pronta a improvisada a sala de estar ao ar livre. O jeito tranquilo do presidente combina com o lugar.

Ao som de passarinhos, ele detalha a conversa que quer ter com Dilma. "Não sabemos o que vai acontecer com o Mercosul", diz. E "há um acordo importante a ser definido com a Europa".

Para ele, institucionalmente o Mercosul está debilitado. "Não temos sistema de arbitragem porque, ao invés de deixar o organismo cumprir o seu papel, substituímos o seu não funcionamento por uma espécie de diplomacia presidencial paralela", diz.

Ao Uruguai interessa um Mercosul que permita flexibilidade para alguns acordos entre países. Ao Uruguai interessa, por exemplo, um entendimento com a China para a venda de produtos lácteos. Um acordo que, diz Mujica, os chineses já têm com Nova Zelândia e Austrália. "Não podemos dar as costas ao Brasil e Argentina, mas vejo o Brasil meio que rebocando a Argentina."

Para ele, a Argentina é um país rico, "com reservas colossais", e que em algum momento vai sair da crise. "A posição do Brasil [em relação à Argentina] é inteligente, mas tem um custo. "Precisamos saber o que pensa o Brasil, o maior país da região", destaca.

Cabe, então, ao Brasil puxar um novo modelo para o Mercosul?

"O Brasil tem uma burguesia paulista muito forte, que custa a entender que não é mais tempo de colonizar, mas sim de juntar aliados para construir empresas transnacionais latino-americanas. Estão muito fechados em São Paulo e com uma visão de elite. Isso tende a provocar um temor em eventuais competidores da região. Isso vai contra à integração. A briga é internacional. Mas São Paulo não pode ir sozinho. Não vamos pedir aos empresários paulistas que sejam socialistas. Mas temos que pedir-lhes que sejam latino-americanos."

A lista de pendências com Dilma não para aí. Os dois governos combinaram executar uma obra de interconexão elétrica. Segundo Mujica, o Uruguai já concluiu a sua parte. Mas falta concluir o lado brasileiro, no Rio Grande do Sul. O projeto visa conectar os dois lados da fronteira, que possuem sistemas diferentes. Isso permitiria ao Brasil comprar energia do vizinho em casos de crise de abastecimento.

A construção de um porto de águas profundas é outro tema da conversa. Tratar com a presidente reeleita é mais fácil à medida que Dilma já havia se comprometido com a obra, segundo o governo uruguaio. O plano é transformar o Uruguai numa base portuária importante para o escoamento de produtos dos demais países da região.

É compreensível que o ex-guerrilheiro dê tanto valor a conversas ao ar livre. O ar puro que vem com o vento fresco na região rural é um deleite até para quem não passou 13 anos na cadeia, dois quais pelo menos dois em porões escuros. Numa entrevista, Mujica disse que no cativeiro aprendeu que as formigas gritam. Dá, portanto, para imaginar o prazer de ser interrompido pelo grito escandaloso das maritacas de seu quintal.

A época da tortura, durante a ditadura, é um tema amargo, sobretudo para quem evita remoer o passado. Mujica estreou na prisão aos 30 anos, quando integrava o grupo guerrilheiro Tupamaro. Escapou mais de uma vez. Mas era sempre recapturado.

Nos porões dos militares foi vítima dos piores tipos de atrocidades, conhecidas por quem acompanha a história da ditadura militar na América do Sul. Passou muita fome, frio, calor e vários anos sem falar com ninguém. Por mais que digam que o bom humor é uma das suas principais características, o olhar triste revela que o sofrimento abalou boa parte da história de Mujica.

Manuela, cachorra de estimação, que tem só três patas, enrosca-se à perna do dono. Aos 18 anos e surda, tem faro é impecável, conta Mujica, que confessa sentir culpa pelo acidente que prejudicou a mobilidade de Manuela. Foi um erro de percurso enquanto ele dirigia um trator.

Aos 79 anos, Mujica encerra seus cinco anos de mandato como presidente, mas não sai da política. Ele foi eleito senador, o mais votado, em 26 de outubro. O Senado não vai lhe ocupar o tempo todo, diz. Servirá para "continuar a ajudar o país, dar ideias".

A história humilde, as leis polêmicas - aborto, casamento gay e a que permite aos uruguaios produzir, vender e consumir maconha - e decisões inusitadas, como doar 90% de seu salário a instituições de caridade, transformaram Mujica num dos presidentes mais populares do mundo. Uma lista de jornalistas de vários países está na agenda de entrevistas dos próximos dias. Além disso, a sua vida já está na literatura uruguaia e será tema de filmes.

Sua popularidade continua alta, com mais de 50% de aprovação. O candidato de seu partido, a Frente Ampla, Tabaré Vázquez, presidente entre 2005 e 2009, é o favorito para o segundo turno da eleição presidencial, no dia 30, com mais de 50% das intenções de voto, segundo pesquisas.

Mas Mujica talvez seja hoje muito mais emblemático no exterior do que para os próprios uruguaios. Vários analistas lamentam que seu governo não tenha conseguido transformações profundas em algumas áreas, como uma reforma educacional.

Há muito ainda por fazer na área de educação, principalmente nos salários dos docentes, reconhece Mujica. Mas ele orgulha-se de o nível de pobreza ter caído de 39% para 11%, e o de indigência, de 5% para 0,5% desde que a Frente Ampla está no poder, há 10 anos.

Em relação à segurança, o ex-guerrilheiro gaba-se de ter reformado os presídios. "Devemos ser o único país da América Latina com um sistema carcerário que não dá vergonha", diz. Para ele, o avanço do narcotráfico fez o índice criminalidade aumentar. "Mas, em comparação com os demais países da América Latina ainda somos bem inocentes".

 

 

Jovens têm de continuar a sonhar com um mundo melhor

 

A casa que Mujica escolheu para morar desde que foi libertado da prisão, há 29 anos, no fim da ditadura militar do Uruguai, fica próxima do lugar onde ele viveu quando criança. O primogênito José ajudava a mãe, Lucy, descendente de imigrantes italianos, a plantar as flores que depois ele vendia para ajudar em casa. O pai, Demetrio Mujica, de origem basca, morreu quando o garoto tinha oito anos e a irmã, Maria Eudosia, só dois. Mujica não teve filhos. Mas em breve estará cercado de crianças e jovens. Um dos seus planos, quando deixar a Presidência, em março, é construir uma escola rural no terreno que fica colado à sua casa. Com recursos do Estado, o projeto ensinará noções de granja e outras peculiaridades da vida no campo que "amigos vizinhos podem ajudar a ensinar aos guris". Os anos de prisão quebraram a vida sentimental do velho guerrilheiro entre os tempos dos amores da juventude, antes dos 30 anos, e a paixão madura com a senadora Lucía Topolansky, também guerrilheira Tupamara, com quem ele vive desde 2005. Quando pequeno, José Mujica gostava de doar seus poucos brinquedos às crianças que tinham menos. O sonho de um mundo sem divisão de classes surgiu aos 14, quando ele começou a ler livros de Karl Marx. Foi a o primeiro passo para a trajetória da guerrilha. Das lembranças dos tempos de juventude, sobrou mais a frustração dos fracassos do que o gosto das vitórias. Mas ele se entusiasma ao perceber certo inconformismo nos jovens de hoje. Se estiver certo, as novas gerações alcançarão um mundo melhor por caminhos que a sua não encontrou. Valor: O sr. guarda algum arrependimento dos tempos de juventude, da guerrilha e da prisão? Mujica: Me arrependo de não ter alcançado velocidade suficiente para escapar de ser preso. Tive que engolir os 13 anos de prisão. Mas o mundo era outro. Nossa juventude pertencia à onda que sacudiu a América Latina quando emergiu a Revolução Cubana. Éramos jovens que sonhavam com um mundo sem classes sociais. Não tivemos muita sorte. A história é mais complexa do que nossa ingenuidade na época podia prever. Aquele mundo dividido em dois grandes blocos pouco tem a ver com o de hoje. Agora estamos num mundo louco. Como diz o papa, vivemos uma espécie de Terceira Guerra mundial em capítulos. Guerras que não entendemos e que nos deram a falsa ideia de que a história havia acabado. Mas a história hoje é mais complexa do que nunca. Porque a democracia mostra seus fracassos. Nunca o homem teve tanta riqueza, tanta tecnologia e ciência. No entanto, como explicar disparates como 85 pessoas com riqueza equivalente à metade do que tem a população pobre do mundo? Mas acho que as novas gerações não podem estar conformadas. E, mesmo se os nossos caminhos não conduziam a um mundo sem classes, creio que as novas gerações continuam a ter a capacidade de sonhar com um mundo melhor. E lutem por encontrar caminhos que nós não tivemos a sabedoria de encontrar. Valor: O sr. percebe essa capacidade de luta nas novas gerações? Mujica: Às vezes me parece que sim. Quando vejo que emergem novas coisas, como, por exemplo, no Norte da Europa, na Alemanha, muita gente com sólida formação científica e cultura que abandona a vida de loucura que significa a sociedade consumista do Ocidente para encontrar formas de viver mais tranquilamente. Vejo isso como uma espécie de vanguarda do que poderá vir no mundo. É como se essa gente estivesse farta de tanto carro, tanto ruído e se refugiasse nas velhas coisas elementares da vida - a família, os filhos, as relações humanas. Não sei se isso são andorinhas de primavera ou o anúncio de reação do homem. Mas, particularmente para nós da América Latina, a quem cabe viver no continente mais injusto que existe, temos uma luta sem quartel para que todo o mundo tenha pelo menos comida, casa e um pouco de educação. Isso é possível e necessário. Porque nunca vai se poder construir uma humanidade melhor sacrificando a vida das pessoas. Há que brigar para que a vida transcorra da forma mais feliz possível. Porque, de todos os valores, esse é o único que não se pode comprar. É uma coisa de que frequentemente não nos damos conta. Quando começamos a perceber, já estamos cheios de rugas, nos preparando para partir. Valor: O sr. costuma escrever as coisas que fala e pensa? Mujica: Às vezes escrevo algo. Eu penso sempre em voz alta. Valor: E usa computador? Mujica: Uso um pouco. Às vezes leio alguma coisa. Tenho dois tablets. Mas penso também com a mão quando escrevo. E tenho de escrever, assim como você, para pensar. Não consigo incorporar a inteligência digital. Mas reconheço que o mundo digital é inquestionável. E sempre temos que perceber o mundo ao qual que pertencemos.

 

 

Fusca de US$ 1 milhão

 

 

O fusca azul 1987 do presidente José Mujica está sendo cobiçado por um xeque árabe. Segundo o semanário uruguaio "Búsqueda", Mujica recebeu uma oferta de US$ 1 milhão pelo carro, que tem valor estimado em 70 mil pesos (cerca de R$ 7,3 mil). Ele também foi sondado pelo embaixador mexicano Felipe Enríquez, que ofereceu dez caminhonetes de tração dupla em troca do Volkswagen. "Fizeram uma proposta. Isso me surpreendeu um pouco e duvidei dessa importância toda, mas depois que outra proposta chegou levei um pouco mais a sério. Se a venda se concretizar, todo o dinheiro irá para o Plan Juntos [programa de construção de casas para pessoas sem recursos]", disse Mujica à publicação.