Israel vai às urnas em março, antecipadamente, com a sociedade imersa em um debate de longo alcance existencial sobre a natureza do país construído nas últimas seis décadas. No centro da campanha, estará um projeto de lei que altera a definição constitucional do Estado e que dividiu o governo de coalizão chefiado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanytahu. Para emendar o texto atual, que estabelece um Estado judaico e democrático, a proposta que levou à demissão do gabinete e à dissolução da Knesset (parlamento) define Israel como Estado nacional do povo judeu. Cerca de 20% dos cidadãos israelenses não seguem o judaísmo, e muitos deles temem que se institucionalize um status de cidadãos de segunda classe. Os defensores da ideia asseguram que os direitos civis de toda a população serão resguardados, reservando aos judeus direitos nacionais, como bandeira, hino, feriados e língua oficial.

 


Na última semana, os deputados aprovaram a dissolução da Knesset e marcaram para 17 de março a eleição do parlamento que decidirá sobre o projeto de Netanyahu, que se mostra determinado a lutar pela aprovação: a nova definição de Israel é condição imposta pela ultradireita nacionalista e religiosa para manter a aliança. Sem essa lei, adeus à coalizão, ameaçou o ministro da Economia, Naftali Bennett, do partido Lar Judeu, vinculado à colonização judaica nos territórios palestinos. A posição do premiê se consolidou após dois de seus ministros protagonizarem duras críticas à lei e orientarem as respectivas bancadas a votarem contra o projeto. Como resultado, foram demitidos o titular das Finanças, Yair Lapid, e a da Justiça, Tzipi Livni, ambos centristas. A legenda de Livni aliou-se ao Partido Trabalhista para enfrentar nas urnas o bloco direitista que tem por núcleo o Likud, partido de Netanyahu.


Adversários da proposta direitista argumentam que a mudança ameaça comprometer a Declaração de Independência de 1948 e promover a ideia de um Estado excludente. O projeto vai prejudicar o país em casa e fora, e vai corroer os princípios democráticos do Estado de Israel, alertou o ex-presidente Shimon Peres, que acusa Netanyahu de promover a alteração por interesses políticos. Representantes dos Estados Unidos e da União Europeia que anunciaram preocupação com a proposta de lei e ressaltaram exatamente esse ponto em seus comunicados. Esperamos que Israel mantenha os princípios democráticos, defendeu um porta-voz do Departamento de Estado americano à imprensa.


Uma pesquisa de opinião divulgada na última semana pelo Instituto de Democracia de Israel e pela Universidade de Tel Aviv mostrou que 61% dos israelenses judeus e 77% dos israelenses árabes concordam com Peres e veem na iniciativa do premiê uma manobra para aumentar a popularidade com o eleitorado mais à direita e favorável à expansão das colônias na Cisjordânia. O mesmo levantamento aponta que 40% dos judeus israelenses entendem que a lei prejudicaria interesses nacionais, enquanto 31% sustentam que a mudança favorecerá os interesses do país. Cerca de 88% dos entrevistados consideram importante que o país seja democrático, enquanto os demais 12% dão menor peso ao caráter democrático do Estado.


Discriminação

Enquanto parte da sociedade israelense se debruça sobre a questão histórica quanto ao que considera mais importante a confirmação de um Estado judaico, a preservação da democracia ou o controle do território , o diretor do Mossawa Center, organização que defende os diretos de cidadãos árabes em Israel, Jafar Farah, se mostra mais preocupado com a garantia da integridade e dos direitos da população não judaica. Se a lei for aprovada, observa ele, se aprofundará a discriminação sistemática de cidadãos que não são judeus. Farah ressalta que a legislação atual já garante direitos privilegiados a quem segue a religião oficial. Por isso, argumenta, mesmo que o projeto seja abandonado e não siga para votação, deixará consequências negativas para o convívio no país, pois já afetou a atmosfera pública e abriu caminho para reações racistas.


Nós não entendemos a necessidade dessa legislação ou o valor que ela acrescentaria ao Estado, argumenta o Abraham Fund, outra organização que advoga por interesses árabes no país, em comunicado. O fundo defende que qualquer mudança em Israel seja aprovada com base em um amplo consenso político, que não comprometa a relação entre o Estado e a minoria árabe.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu argumenta que a nova definição é necessária para resguardar os direitos dos seguidores do judaísmo frente a muitos que desafiam o caráter de Israel como Estado-nação dos judeus. Em declaração à Knesset, antes de a dissolução ser aprovada, ele ressaltou que os palestinos se recusam a reconhecer isso e há também oposição de dentro.

 

Dilema de seis décadas
Quando a ONU aprovou o plano de partilha da palestina, em 1947, colocou uma questão existencial para o movimento sionista, àquela altura no avanço final para o objetivo sonhado de estabelecer, na terra bíblica de Israel, um lar nacional para os judeus. David Ben Gurion, que em 1948 se tornaria fundador e primeiro chefe de governo do moderno Estado de Israel, equacionou o dilema. Era possível ter uma entidade judaica e democrática, mas em apenas parte do território; ou ter uma entidade que abrangesse todo o território, mas que não poderia ser judaica e democrática, pois abrigaria também população árabe (muçulmana e cristã). Ben Gurion liderou a maioria segundo a primeira opção, ainda que sem excluir do horizonte futuro a meta completa. A situação se colocou novamente, em outro patamar, com a vitória na Guerra dos Seis Dias, em 1967: Israel conquistou e ocupou Gaza, a Cisjordânia e o setor oriental de Jerusalém, até então sob controle da Jordânia. Desde então, o dilema passou a incluir a autoridade exercida de fato em territórios cuja população palestina é desprovida, até hoje, de cidadania plena.