RIO - “Católicos não deveriam se reproduzir como coelhos”, disparou o Papa Francisco no voo que o levou de volta de Manila para Roma, há três dias, desencadeando uma repercussão mundial. Para uns, um insulto; para outros, uma possível abertura da Igreja Católica à discussão sobre controle de natalidade, tema no qual o conservadorismo da cúpula eclesiástica é notório e histórico. Simbolizariam as palavras do pontífice uma mudança de atitude da instituição, que é contrária a métodos contraceptivos como camisinha e pílula e só tolera a tabelinha?

Durante a viagem às Filipinas, o Papa se encontrou com crianças que viviam nas ruas. Depois, já no voo de volta, instado a falar sobre a situação das famílias em situação de pobreza extrema, ele trouxe de volta o debate sobre “paternidade responsável”.

— Algumas pessoas pensam que... perdoem a minha expressão, que, para ser bons católicos, temos de nos reproduzir como coelhos. Não é isso. Ser bom pai é ser responsável. Isso é claro — respondeu Francisco, citando ter estado com uma mulher “irresponsável” por ter tido sete filhos, todos em cesarianas.

Entidades religiosas e fiéis oriundos de famílias numerosas tomaram as declarações como ofensivas. Diante dos protestos, Francisco voltou ao tema ontem e buscou justificar sua opinião.

— Ouvi dizerem que famílias com muitos filhos são as causas da pobreza. Acho que essa é uma opinião simplista — disse o Papa, destacando que, em vez disso, um sistema econômico excludente “é a principal razão para a pobreza, e não grandes famílias”.

CONCEITO DE 1968

Embora a redução da natalidade seja uma realidade mundial, o tema levanta opiniões divergentes na Igreja, tanto que, quando ainda era cardeal da Cracóvia, João Paulo II defendeu as famílias com muitos membros: “A família é, na realidade, uma instituição educadora, portanto é necessário que ela conte, se for possível, com vários filhos, porque, para que o novo homem forme sua personalidade, é muito importante que não seja único, mas que esteja inserido numa sociedade natural. (...) E (apenas) dois filhos não são uma sociedade, são dois filhos únicos.”

Comparada com a fala do conservador João Paulo II, a mensagem de Francisco pode parecer inovadora. Mas, na opinião de teólogos, ela apenas retoma o conceito de paternidade responsável expresso no documento Humanae Vitae, de 1968, no Concílio do Vaticano II, que defende “a regulação da natalidade”, mas condena “meios moralmente inadmissíveis”. A referência é a métodos artificiais, como a pílula, criada e popularizada nessa época. A Igreja só tolera a tabelinha, ou seja, admite relações fora do período fértil da mulher, que seria controlado segundo as menstruações, um processo “natural”.

— É bom lembrar que a Igreja defende o método contraceptivo natural desde 1880, quase um século antes de o mundo produzir outras formas de prevenção. Nesse ponto, os católicos foram vanguardistas — alega o padre Luis Corrêa Lima, professor de Teologia da PUC-Rio.

O método aprovado pela Igreja é criticado por médicos, que o consideram pouco confiável, uma vez que o ciclo menstrual não é sempre regular. Políticas públicas de controle da natalidade têm sido mais ou menos independentes da visão religiosa, mas eventualmente se curvam a ela.

Em 2010, a união das bancadas católica e evangélica no Congresso Nacional reagiu fortemente ao Programa Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE), uma iniciativa que previa a distribuição de preservativos em escolas públicas. A distribuição foi abortada.

Pressões religiosas também impediram que o governo federal enviasse a estados e municípios, em 2011, material didático de educação sexual que mencionava camisinha e outros métodos contraceptivos e tratava a sexualidade humana de modo amplo, citando a homossexualidade e a bissexualidade. Chamada de “kit gay” por religiosos, a iniciativa foi arquivada.

A recente fala de Francisco pode representar uma espécie de afrouxamento na histórica oposição católica aos métodos contraceptivos artificiais, diferentemente do que ainda ocorre com o aborto, tema tabu na instituição. Segundo Aline Martins, assistente social do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), a Igreja tem tido sua influência diminuída no que toca à escolha individual pela contracepção.

— Ainda se escuta um discurso religioso contra o aborto, mas em relação aos contraceptivos há menos resistência — diz Aline, que elogia o Papa por definir a responsabilidade familiar como mútua, e não só da mulher: — O discurso incentiva a paternidade presente, afetiva e responsável. Ele fala da família, implicando o homem, que, apesar de avanços, não aceita a divisão de tarefas e incumbe a mulher da contracepção. Não à toa, a ligadura é mais popular que a vasectomia.