'História se faz com dois lados', diz CavalcantiROLDÃO ARRUDA

15 Dezembro 2014 | 02h 04

O criminalista José Paulo Cavalcanti, uma das sete personalidades indicadas pela presidente Dilma Rousseff para a Comissão Nacional da Verdade em 2012, disse aoEstado que sempre defendeu que o grupo também investigasse ações dos grupos de oposição armada contra a ditadura militar. "Ao longo de todo o trabalho eu disse que teria sido melhor se gente pudesse contar, no relatório final, o que houve com os dois lados", contou. Ele afirmou ver com simpatia a divulgação de listas de pessoas mortas por grupos de esquerda nos chamados anos de chumbo. "A história vai se fazer a partir do confronto dos dois lados."

A divulgação do relatório final da Comissão da Verdade, com a lista de vítimas de graves violações de direitos humanos na ditadura, trouxe de novo a questão das vítimas de ações de grupos da esquerda no período. Listas desse tipo voltaram a ser divulgadas. Como o senhor vê isso?

Vejo com enorme simpatia que o outro lado também conte sua história. Sempre achei que seria melhor contar os dois lados. Nunca escondi isso na Comissão da Verdade. As pessoas têm o direito de conhecer os dois lados. A história vai se fazer a partir do confronto e exame dos dois lados.

Dida Sampaio/Estadão - 10.12.2014

Cavalcanti (esq.) e outros integrantes da comissão entregam relatório final a Dilma no Planalto

Por que só se analisou um lado?

Diante da limitação do tempo e da tarefa monstruosa que tínhamos pela frente, prevaleceu a ideia de que deveríamos dar atenção ao lado que nunca pôde contar a sua história. Nunca houve nenhum impedimento para que o lado que ganhou a batalha contasse tudo. Só existia censura para o lado de quem perdeu.

Foi a decisão certa?

Não sei, mas foi a decisão tomada. Meus colegas sabem quantas vezes eu disse que teria sido melhor se a gente pudesse ter relatado o que houve com os dois lados. Se você se der ao trabalho de ler e entender o ambiente que levou ao golpe de 1964, vai ver que não havia um confronto entre um projeto autoritário e outro legalista. Sempre entendi que existiam dois projetos autoritários. A gente tem que fazer história com menos emoção e um pouco mais de razão.

O sr. ou alguém da comissão chegou a iniciar um levantamento sobre as vítimas dos grupos do lado de lá?

Não. Eu conheço particularmente dois casos daqui de Pernambuco. O primeiro foi o de um gerente da Souza Cruz (fabricante de cigarros, do grupo British American Tobacco). Era um pai de família, que ia para casa com o salário e foi assassinado com a justificativa de que estava a serviço de uma multinacional. Esse caso me tocou muito. O segundo foi o atentado no Aeroporto dos Guararapes. O responsável pela ação vive hoje em Portugal. Também sei de pessoas de organizações de esquerda mortas pelos próprios companheiros.

Sabe quantas pessoas teriam sido mortas desse lado?

No começo do trabalho da comissão, recebi pela internet um relatório de pessoas ligadas às Forças Armadas com 118 nomes. Os casos todos eram descritos com pouca técnica e de forma não muito confiável.

O sr. é uma voz isolada. Os outros integrantes da comissão sempre disseram que ela foi instituída para investigar crimes cometidos pelo Estado. O sr. também foi o único que não votou pela revisão da Anistia.

Isso nunca ficou muito claro. Quando estivemos com a presidente da República, as palavras dela, textuais, foram, abre aspas: "Não estou preocupada com a Anistia. O que eu quero mesmo é encontrar os corpos, o máximo possível, para devolver às famílias, para que sejam dignamente velados e enterrados. Quando isso não for possível, quero contar a história. A família tem o direito de saber o que aconteceu com seus mortos". Fecha aspas.

A comissão fez isso?

Fizemos. Indicamos o número de mortos e descrevemos as mortes. Dos desaparecidos, um quarto dos casos está praticamente resolvido. O mais recente foi o do Stuart Angel Jones (desaparecido desde 1971). Um dia antes da divulgação do relatório final, tivemos a resposta de um instituto de Londres, que, a partir do crânio, reconstitui o rosto e diz como seria em vida. Enviamos a eles um crânio descoberto numa base da Aeronáutica, no Rio, e recebemos o rosto de Stuart Angel. Falta comparar o DNA com a irmã dele, Hildegard Angel. E se confirmar, como se espera, será mais um identificado.

Mas ainda existem muitos outros.

Infelizmente, esse trabalho não vai ser para nós, da comissão. Fizemos o que foi possível.

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Filho de morto em explosão quis depor

CLARISSA THOMÉ - O ESTADO DE S.PAULO

15 Dezembro 2014 | 02h 04

Flávio Régis de Carvalho procurou comissão pernambucana para falar sobre atentato da luta armada

RIO - O relatório da Comissão Nacional da Verdade provocou "sentimento de frustração" em Flávio Régis de Carvalho, de 62 anos. Em 1966, o pai dele, o jornalista e então secretário de Governo de Pernambuco Edson Régis de Carvalho, foi morto na explosão de uma bomba no saguão do Aeroporto Internacional de Guararapes, um dos mais emblemáticos atentados da luta armada. "Essa foi a comissão da meia verdade. Uma comissão parcial, que focou em um lado: as vítimas do regime militar. Mas e as vítimas da luta armada? Nomes vieram à tona, mas nem sequer foram ouvidos."

O atentado, cujo alvo era o então candidato à Presidência Artur da Costa e Silva, também matou o almirante Nelson Gomes Fernandes e feriu 14 pessoas. Costa e Silva escapou ao decidir fazer a viagem de carro.

Carvalho tinha 14 anos quando foi buscado na escola por uma assustada secretária de seu pai. No carro, os quatro irmãos mais novos já o esperavam. "Ela saiu coletando os filhos nos colégio e nos levou ao aeroporto", conta. Ele se lembra do ambiente de muita poeira, fitas de isolamento e muitos repórteres. Mais tarde, no hospital, um dos irmãos levantou o lençol que encobria o corpo do jornalista. "Vi o corpo de meu pai dilacerado; a cena que eu tenho na memória é que da cintura para baixo não havia nada".

Carvalho e os irmãos passaram as décadas seguintes em busca da verdade. "Foi um atentado da Ação Popular. Durante anos, Ricardo Zarattini e Edinaldo Miranda foram acusados de algo que não cometeram", diz, referindo-se ao ex-deputado e ao professor que, em 2013, foram oficialmente inocentados. "Na Comissão Estadual (de Pernambuco), as filhas de Raimundo Gonçalves de Figueiredo, que foi apontado como o responsável pelo atentado, disseram que a bomba não foi de um só. Mas não se apura quem foi", criticou.

Carvalho pediu para ser ouvido pela comissão pernambucana. "Eu queria mais indagar do que falar", disse o procurador aposentado e assessor do senador Armando Monteiro (PTB). Ele e os irmãos também entraram com ação, pedindo indenização pela morte do pai. "Quando perguntavam de nosso pai, respondíamos: 'Morreu de bomba'", conta. "Mas o processo está parado. É o chamado embargo de gaveta."

Ele diz não querer punição aos autores do atentado. "Teve a Anistia, teve o perdão. Tudo bem. Mas a história só será resgatada quando a verdade vier à tona. A Comissão Nacional da Verdade perdeu a oportunidade única de fazer história", avalia.

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Servidor é vítima do Estado e do terror

VICTOR MARTINS - O ESTADO DE S.PAULO

15 Dezembro 2014 | 02h 04

Com versão conflitante, responsabilidade da morte de Napoleão Felipe Biscaldi é creditada a militares e a militantes

BRASÍLIA - Com a divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) na semana passada e a reação dos clubes de oficiais da reserva, um funcionário público aposentado da Prefeitura de São Paulo teve seu nome listado tanto como vítima de ação do Estado, "em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar" como do "irracionalismo do terror, nas décadas de 1960 e 1970".

Napoleão Felipe Biscaldi morreu aos 61 anos, atingido por um tiro na cabeça em 27 de fevereiro de 1972, na Rua Serra do Botucatu, no Tatuapé, zona leste de São Paulo. O corpo ficou cinco horas exposto na rua à espera de peritos do Instituto Médico-Legal.

A versão oficial da morte de Biscaldi, noticiada pelos jornais dois dias depois, é a de que ele havia sido morto por disparos efetuados por Alexander José Ibsen Voerões e Lauriberto José Reyes, militantes do Movimento de Libertação Popular (Molipo) mortos na ação policial.

Essa é a versão considerada pelos Clubes Naval, Militar e da Aeronáutica para incluir o aposentado como uma das 126 vítimas de grupos armados de esquerda. A lista foi publicada em resposta ao relatório da CNV, mas há inconsistências e inclusão até de pessoas vivas, como o Estado mostrou na quinta-feira.

Para a Comissão da Verdade, a versão oficial para a morte de Biscaldi não se sustenta. Os militantes não estariam armados, não foi feita perícia ou fotos no local que comprovassem o tiroteio nem documentos sobre as armas usadas na ação.

O documento também traz depoimentos de moradores do local. Uma testemunha relata que um jovem corria mancando quando um Chevrolet Opala passou com policiais armados de metralhadoras - o aposentado atravessava a rua e teria sido o primeiro a ser atingido. Em outro depoimento, uma vizinha conta que Biscaldi pintava um varal de roupas quando ouviu os primeiros disparos e saiu para a rua para buscar o filho, que jogava futebol. Para a Comissão da Verdade, "tudo indica que ele foi morto por ter presenciado o cerco e a execução dos militantes".