A substituição da diretoria da Petrobrás em razão da onda de escândalos que vem atingindo a empresa há anos, independentemente de atribuição de culpa pessoal nos vários episódios delituosos, aventada serena e comedidamente em pronunciamento do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e a manifestação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, imediatamente após aquele pronunciamento, de que tal medida não se justificaria porque inexistem evidências de culpa pessoal, sugerem uma análise crítica.

 

 

Em qualquer instituição de qualquer natureza, civil e militar, pública ou privada, dirigida por cúpula chefiada por presidente, diretor ou comandante, supõe-se que essa autoridade, com seus auxiliares imediatos, exerça o controle do que nela acontece. A ocorrência de um ou de outro delito pessoal e episódico, detectado, corrigido e punido, em princípio de fato não atinge diretamente a cúpula (culpa coletiva) ou qualquer de seus membros.

 

Todavia, quando a instituição é contaminada por um clima de delitos graves, sua direção superior tem, sim, o que poderíamos chamar de responsabilidade funcional, não importa que não se possa atribuir ao chefe maior ou a qualquer de seus auxiliares do alto escalão participação direta neste ou naquele delito específico.

 

Generalização de desmandos dificilmente pode ocorrer quando a direção superior está apta e decidida a contê-la, quando há na condução da instituição competência, diligência e organização adequada. O frequentemente alegado desconhecimento dos fatos, se real, pode isentar da culpa sujeita à incriminação judicial, mas não da responsabilidade funcional inerente à autoridade.

 

Essa é a situação atual da Petrobrás. Ainda que não existam evidências de ligações diretas entre os delitos em realce na mídia e sua presidente e qualquer diretor atual, o clima de desmandos que se estendeu à empresa, no Brasil e fora dele, dificilmente poderia existir se sua direção superior e, para assuntos de sua responsabilidade consultiva ou acessória, seu Conselho Administrativo estivessem - é preciso reconhecer, isso não é fácil, mas é imperativo - capacitados, atentos e ativos para impedir a deterioração dos padrões de lisura que devem prevalecer, muito mais numa empresa do porte da Petrobrás, de influência ponderável na vida nacional.

 

Esta abordagem do tema não pretende - nem poderia pretender, por inexistirem dados concretos a respeito - culpabilizar nenhuma alta autoridade atual da empresa por algum despautério específico. Trata-se de reconhecer a responsabilidade funcional da cúpula da empresa, por terem os delitos chegado à abrangência e à grandeza a que chegaram.

 

Quando a "Comissão Nacional da Verdade", encerrada na semana passada, entende que presidentes da República e ministros de Estado são responsáveis por fatos que teriam ocorrido nos meandros da imensa máquina pública, há sentido em isentar a diretoria da Petrobrás de responsabilidade funcional pelo objeto da Operação Lava Jato? Ainda que sem a atribuição de culpa pessoal concreta, a responsabilidade funcional pelo clima negativo é vinculada à autoridade.

 

Numa empresa privada, seu(s) proprietário(s) controlador(es) muito provavelmente praticaria(m) a sugestão do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Em princípio (evidentemente, podem existir exceções), o mesmo dever-se-ia aplicar a uma empresa pública, pelo menos como satisfação perante o povo proprietário.

 

O problema, no entanto, é mais complicado na esfera pública - complicação que provavelmente pesou na manifestação do ministro da Justiça sobre a não culpabilidade da diretoria da Petrobrás e, portanto, sobre a impropriedade de sua substituição: o compromisso político na sua configuração.

 

No nosso Estado, marcado historicamente pelo patrimonialismo, o compromisso entre o governo controlador (representante do povo proprietário) e as pretensões dos partidos políticos que o apoiam cria um embaraço óbvio. Como justificar a dispensa de um diretor indicado por um partido de apoio ao governo sem que lhe seja atribuída alguma culpa pessoal concreta? O que esse diretor fez para ser substituído? São perguntas que, na verdade, devem ser respondidas pelo inverso: a justificativa da dispensa é o que ele não fez - a contenção e o controle dos delitos. Pode não ter havido a prática de crime, mas houve a não prática da contenção do crime, responsabilidade inseparável da autoridade - o que, diga-se de passagem, não está acontecendo só na Petrobrás...

 

Esse é um problema patológico do nosso regime de presidencialismo de coalizão (de cooptação). Na medida em que o "aparelhamento político" é critério protagônico no preenchimento de cargos, fica compreensivelmente difícil para o governo substituir os titulares indicados pelos partidos sem uma razão pessoal expressiva e indiscutível; a responsabilidade funcional, coletiva ou individual, pode ser vista com simpatia pelo povo, mas não é vista assim pelos interesses partidários que a veem como responsabilidade abstrata sujeita a controvérsia e o governo corre o risco de se complicar em temas que exijam o apoio dos partidos atingidos.

 

A Petrobrás é hoje o foco dessa questão, na mídia e no interesse do povo, contudo a questão estende-se a toda a nossa estrutura pública. Têm sido comuns as situações em que a incompetência, a lentidão ou ausência de controle e a improbidade prejudicam nossas empresas públicas e, em consequência, o povo delas dependente, sem que isso tenha implicado a substituição dos detentores de cargos, delegados dos partidos no nosso capitalismo de Estado patrimonialista. Haja vista os problemas de energia elétrica: alguma empresa do setor elétrico teve sua diretoria substituída por causa deles?

 

O encaminhamento que vier a ser dado à Petrobrás sinalizará a tendência a respeito.