Em 2014, dos países submetidos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil foi o que mais recebeu advertências. Entre 29 de janeiro e 14 de novembro, foram quatro, que se somam a outras dezessete recebidas entre 1985 e 2013.

Não é fácil obter o título de mais advertido, pois a disputa é bastante acirrada. Em 2013, a Venezuela foi a vencedora, com seis advertências, e poderia ter sido por mais se o país não tivesse declarado publicamente que, a partir de outubro daquele ano, não levaria mais em conta as reprimendas da corte.

Alguns pontos devem ficar claros quando se fala sobre a Corte Interamericana. O primeiro deles é que nem todos os países do continente fazem parte dela. Os Estados Unidos, logo eles, nunca aderiram (como não aderem a qualquer tribunal internacional que não possam dirigir, direta ou indiretamente). A Guiana Francesa e algumas ilhas caribenhas também ficaram de fora. Mas a grande maioria dos países latino-americanos a compõem, e a autoridade de suas decisões é tamanha que elas costumam ser respeitadas até mesmo por quem não participa dela, como os Estados Unidos.

As quatro advertências que o Brasil recebeu este ano dizem respeito à calamidade de nosso sistema carcerário

O prestígio da Corte Interamericana, também chamada de CorteIDH, é inquestionável no mundo jurídico internacional. Em 27 de maio de 2014, a Corte Europeia de Direitos Humanos utilizou vários precedentes de sua colega Interamericana para decidir sobre o julgamento de um acusado de crimes na guerra da Croácia (caso Margus vs. Croácia). Portanto, não se trata, de um daqueles órgãos de nome pomposo, criados por tratados latino-americanos cercados de solenidades, mas cujo poder não é mais que cosmético. O ponto de vista da CorteIDH importa. Sua decisões repercutem.

As quatro advertências que o Brasil recebeu este ano dizem respeito à calamidade de nosso sistema carcerário. Duas falam das Unidades de Internação Socioeducativas - UNIS (para adolescentes), uma do Complexo Penitenciário de Curado, em Pernambuco, e outra do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão. As outras dezessete, recebidas pelo Brasil entre 2005 e 2013, tiveram quase todas o mesmo motivo: as condições medievais do sistema carcerário do país.

Os casos deste ano são graves, mas o quadro maior de que fazem parte é o que estarrece. A população carcerária brasileira é a terceira do mundo, segundo o King's College de Londres. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (dados divulgados em junho de 2014), havia 711.463 presos no país. Para acomodá-los com mínima dignidade, faltavam 354 mil vagas. Isso sem contar os mandados expedidos para novas prisões: 373.991.

Saber que seu governo é repreendido quando não dá solução adequada a assunto tão sério gera alívio na população. Mesmo quem mora em países mais desenvolvidos que o nosso deve sentir-se bem ao pensar que, se as cortes de seu país falharem, ainda existe outra, internacional, a quem se poderá recorrer para que a justiça seja feita.

Não é mau que a população se sinta aliviada. É preciso que haja algum alento de quando em quando. Mas é importante que todos saibam que há outro lado nessa estória.

 
Bruno Miranda/Folhapress

 

Construtoras e empresas de segurança, nacionais e internacionais, leem com prazer que o Brasil está sendo internacionalmente pressionados a melhorar seu sistema carcerário. Essas empresas sabem que essa pressão aumenta em muitas vezes as chances de que o Poder Público se valha de brechas legais para contratá-las emergencialmente e sem licitação, com os resultados que já conhecemos: obras paquidérmicas, de qualidade sofrível.

Contratar com o Poder Público brasileiro a construção e reforma de presídios tornou-se um grande negócio. Desde maio de 2014, uma alteração na lei permitiu que o frouxo regime licitatório adotado pelo governo federal para a construção de estádios para os jogos (Lei n. 12.462\11), agora também se aplique aos presídios. Em suma, a criatividade e licenciosidade contábeis com que os estádios foram erguidos agora também vale para se construir e reformar presídios.

Tudo isso é para dizer que o leitor brasileiro, que distraidamente lê uma notícia sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos advertindo o Brasil sobre a situação calamitosa de seus presídios, tem todo direito de sentir-se bem. Afinal, uma instituição internacional séria olhou para essa excrecência que é o sistema carcerário do Brasil e exigiu que fossem tomadas providências. Mas esse mesmo leitor deve ser avisado que essas pressões internacionais, justas e bem intencionadas, inflarão as velas de navios piratas cheios de marujos experientes - brasileiros em sua grande maioria - que partirão sem demora para pilhar o erário.

Deixando de lado a nomenclatura dos mapas de escola, suas latitudes e longitudes que decoramos desde cedo, convenhamos que essa insistência da América do Sul de se deixar abocanhar por apoderados, principalmente os daqui mesmo, faz de nós merecedores do mais trágico de todos os nomes de raios e paralelas que temos de decorar desde a primeira escola. Façamos, pois uma reivindicação aos órgãos competentes sobre livros, mapas e coisas afins para que nos renomeiem. Sejamos, de agora em diante, chamados pelo que somos: os trópicos de câncer.

Hugo Otávio Tavares Vilela é juiz federal e professor colaborador da Escola de Magistratura Federal da 1ª Região (ESMAF-Brasília).