O ajuste fiscal que será anunciado no início de 2015 implicará passar de superávit primário de cerca de R$ 10 bilhões, estimado para 2014, para R$ 66 bilhões no ano que vem. O esforço, porém, será superior a isso considerandose que os subsídios terão que diminuir. O ministro indicado para a Fazenda, Joaquim Levy, refuta a ideia de que o esforço fiscal poderá superar R$ 100 bilhões para levar o primário para 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB), conforme compromisso assumido para 2015. A sua gestão, porém, não se limitará a uma nova equação fiscal. Em entrevista ao Valor, ele falou das linhas gerais de um novo programa econômico para o país. “O reequilíbrio [da economia] exige mudança de preços relativos e cuidado com a expansão do crédito. E uma reorientação imediata da política fiscal”, indicou Levy. Será necessária, também, uma nova rodada de abertura da economia. Ao governo, nesse caso, caberá diminuir barreiras protecionistas e facilitar a concorrência. “É óbvio que o protagonismo para nossas empresas começarem a participar efetivamente das chamadas cadeias globais de geração de valor não vai ser do governo”, delimitou. Levy enfatizou a urgência de uma nova política de crédito que ponha um fim à dualidade entre crédito público e privado e crédito subsidiado e a juros de mercado. A seguir, a íntegra da entrevista:

Valor: O governo, finalmente, indica que concorda com as mudanças de rumo que o mercado tanto exigiu. Qual a sua avaliação após mergulhar na realidade dos números nas últimas semanas?
Joaquim Levy: Olhando para onde vão as duas grandes economias do mundo, o Brasil tem que mudar rápido. Os estímulos fiscais e monetários das grandes economias estão sendo retirados. Nos EUA, os estímulos fiscais saíram de cena desde 2013, inclusive com o Tesouro vendendo ações das empresas em que teve que intervir. Não vai precisar de muita paciência para ver os juros curtos nos EUA subirem. A China acabou com os estímulos fiscais a grandes investimentos públicos e vem se desengajando cada vez mais do apoio ao imobiliário, focando agora em questões estruturais, como o financiamento das cidades para dar cidadania aos migrantes. E está administrando a inflação baixa, puxada pela queda do preço das commodities, inclusive petróleo.

Valor: Essa situação é clara, mas quais as implicações para o Brasil?
Levy: Começa talvez a valer a situação descrita há meio século por Celso Furtado para o Brasil. Pode haver alguma diminuição dos fluxos de investimentos estrangeiros, acompanhada da queda do preço das commodities, cuja principal consequência é a necessidade de um reequilíbrio do balanço de pagamentos externos. Em outras palavras, é presente a necessidade de aumento da poupança que mencionei na entrevista quando a equipe econômica foi indicada. Esse reequilíbrio exige mudança de preços relativos e cuidado com a expansão do crédito. E uma reorientação imediata da política fiscal.

Valor: O discurso da reorientação já foi feito. Faltam as medidas. O senhor pode adiantálas? E quando serão anunciadas?

Levy: Algumas medidas vão decorrer da queda da arrecadação e certamente vamos ter que modular o gasto. Elas serão anunciadas no devido tempo, no ano que vem. Valor: O senhor diria que estamos, hoje, como os Estados Unidos antes de eclodir a crise de 2008? Levy: Aqui não há riscos imediatos no sistema financeiro em si. Mas vale lembrar que a crise financeira global de 2008 veio da política do governo Bush de sustentação do crescimento baseada em desonerações tributárias e expansão do crédito garantida pelo Tesouro americano. Para tentar que a economia crescesse tanto quanto no período Clinton, Bush expandiu o crédito imobiliário fácil, apoiado na garantia do Tesouro a empresas como a Fannie Mae. Ele fechou os olhos ao aumento de alavancagem geral para manter o desemprego baixo. O coquetel se completava com o corte de impostos para agradar parcelas chaves do eleitorado e algum protecionismo.

Valor: Bush desmanchou a política do Clinton e acendeu o pavio da maior crise financeira. Guardadas as devidas proporções, foi o que a presidente Dilma fez aqui?

Levy: Clinton realmente soube aproveitar e intensificar o aperto fiscal iniciado pelo presidente anterior. Claro que ele surfou na queda de custos proporcionada pela globalização associada ao fim da União Soviética e à intensificação da abertura chinesa, além da internet. Mas ele foi muito disciplinado, inclusive reformulando programas sociais. Com isso, a situação fiscal melhorou tanto que, no fim do seu governo, a discussão era o que fazer com a diminuição da dívida pública e o eventual desaparecimento dos títulos longos. A política do Bush reverteu esse quadro em pouco tempo. Usando a sua imagem, os derivativos foram apenas o fósforo…

Valor: Há uma grande expectativa em torno do programa fiscal de 2015. Será um ajuste de mais de R$ 100 bilhões? É o contribuinte quem vai pagar a conta?

Levy: Tecnicamente o ajuste implicará passar de um primário de talvez R$ 10 bilhões este ano para R$ 66 bilhões no ano que vem. Considerando outras pressões, como subsídios que terão que diminuir, o esforço será um pouco maior, mas não dá para validar esse número de R$ 100 bilhões.

Valor: O país já está em uma crise fiscal e, com o aumento dos juros nos EUA, está também à beira de um tremor nas contas externas?

Levy: Não vejo bem assim, mas as reservas fiscais acumuladas em 20042008 foram largamente usadas, como refletido no aumento da dívida pública. E o endividamento externo das empresas aumentou significativamente em 20122014. Então, o reequilíbrio da economia, puxado pela reorientação fiscal, deixa de ser uma simples opção para ser uma necessidade. Ainda mais considerando turbulências específicas que um dos principais setores da economia vem enfrentando.

Valor: O sr. se refere à Petrobras?

Levy: A Petrobras tem sofrido pressões que estou convicto de que ela saberá superar. O importante é entender que tentar combater a queda na criação de empregos e no crescimento do PIB, que vem acontecendo há algum tempo, com mais expansão fiscal não tem aderência com a realidade e seria perigoso. Há crescente consenso em relação a esse diagnóstico. Meu colega Nelson Barbosa [ministro indicado do Planejamento] tem falado nessa linha há algum tempo. Havendo acordo no diagnóstico, o tratamento também exigirá consenso e, principalmente, disciplina.

Valor: Como assim?

Levy: Mesmo administrado de forma cuidadosa, ele alterará dinâmicas que se tornaram insustentáveis e vai requerer vontade de mudar outras práticas na economia.

Valor: Por exemplo?

Levy: Um primeiro passo já dado foi para estancar a deterioração das contas públicas, que vinha levando o Tesouro a assumir responsabilidades totalmente desproporcionais à sua capacidade. As tarifas de energia elétrica passarão, a partir de 2015, a refletir o custo da geração térmica, evitando acúmulo de passivos. Aí, o próximo passo será acomodar urgentemente os subsídios, que vêm crescendo muito, exigindo devolver a CDE [Conta de Desenvolvimento Energético] para a tarifa de consumo. É uma conta que ultrapassou R$ 10 bilhões ao ano e que, se mantida no Tesouro, terá implicações perigosas para o “rating” da dívida pública. Aliás, nessa conta houve recentemente o reconhecimento de um passivo de mais de R$ 8 bilhões no chamado sistema isolado, sem que haja indicação de como ele será equacionado. Vai precisar determinação para acertar essas contas, além de um pouco de sorte para a situação hídrica melhorar. Mas vale a pena.

Valor: Além dos reservatórios baixos, o setor elétrico tem muitos outros desafios no curto prazo. Como será o enfrentamento dessas questões?

Levy: De fato, 2015 será importante também porque há várias concessões de distribuição vencendo, o que exigirá uma estratégia de como proceder melhorando a qualidade do serviço, a realidade tarifária e gerando valor para o poder concedente. Essa estratégia será crucial para recuperar a capacidade financeira da Eletrobrás, cujos resultados na área de distribuição têm pesado em suas contas, exacerbando as consequências do aumento da exposição às térmicas nos últimos anos. O sucesso dessa estratégia poderá contribuir tanto para a melhoria da eficiência da economia como para a recuperação fiscal de modo mais amplo.

Valor: Além de atacar a deterioração fiscal, incluindo a trazida pelo setor elétrico, há muito mais a fazer. Por exemplo, somos um país muito fechado. Não é o caso de se promover uma nova rodada de abertura?

Levy: Sem prejuízo de atender à demanda interna é, realmente, indispensável expandir o perímetro da nossa economia. A expansão do nosso comércio exterior, mesmo em um quadro em que a economia internacional não anda muito forte, vai ser essencial. E vai requerer esforço e agilidade, porque os principais parceiros regionais enfrentam problemas e a possibilidade de ampliar os estímulos fiscais e creditícios se esgotou.

Valor: Onde o governo entra nisso?

Levy: É óbvio que o protagonismo para nossas empresas começarem a participar efetivamente das chamadas cadeias globais de geração de valor não vai ser do governo. O que o governo pode fazer é diminuir barreiras, facilitando a concorrência e a abertura. A experiência mostra que as empresas sabem sair da zona do conforto e vencer desafios quando o governo abre espaço. Se o governo seguir uma política macroeconômica equilibrada, expandir alguns mecanismos, como a simplificação que a Receita vem promovendo, e tiver sucesso em ações de Estado como, por exemplo, tratados de comércio, os resultados positivos aparecem. Empresas nacionais e estrangeiras respondem e, muitas vezes, rápido.

Valor: A expansão do crédito público, que foi acelerada nos últimos tempos, se esgotou. Qual a participação dos bancos privados e públicos nessa nova fase?

Levy: Há muito o que fazer. Um primeiro passo para aproveitar melhor essas oportunidades foi dado com o realinhamento de preços do PSI e o incipiente ajuste da TJLP. O BNDES poderá ter papel muito importante nessa fase da economia, adaptandose ao novo momento, em que terá que usar de maneira ainda mais eficiente os recursos. Da minha experiência com o banco, até antes da época do Tesouro, guardei não só amigos, mas a convicção da capacidade e disposição dos técnicos de enfrentarem desafios, em sintonia com as necessidades do governo e do mercado. Nessa área, os movimentos do governo têm sempre que ser cuidadosos, mas a direção tem que ser clara no sentido de diminuir a dualidade dos mercados de crédito.

Valor: Essa é uma mudança estrutural?

Levy: Se você quiser chamar assim pode. Ela é tão importante para o país quanto foi superar a dualidade no câmbio, com a abertura da economia e dos fluxos de capital. O país melhorou. Vale a pena lembrar que, há 30 ou 40 anos, uma pessoa só podia viajar para o exterior levando US$ 300 comprados no câmbio oficial, e as empresas estatais eram usadas para obter moedas fortes. Isso criou mil problemas que ajudaram a nos empurrar para o FMI nos anos 80. Hoje, quando conto essas coisas às minhas filhas, elas têm dificuldade para acreditar. Aliás, a juventude não tem muita noção de que há 25 anos metade da população mundial enfrentava filas de racionamento, porque a ideia da economia de mercado era anátema em alguns países. Tenho lido alguns livros sobre a Rússia, inclusive autobiografias, e é fascinante conhecer relatos desse mundo paralelo que acabou com a globalização.

Valor: A ideia de dualidade se aplica a outros mercados?

Levy: Claro! E o mais interessante é que nos últimos 15 anos também superamos em boa parte a dualidade no mercado de trabalho, com a formalização crescente da economia e ampliação da força de trabalho mais treinada. Essa formalização, sublinhese, deveuse largamente à abertura econômica e à facilidade do investimento externo, que criaram incentivos para as empresas arrumarem as contas e aumentarem de valor. Ela, aliás, vai se acelerar se a lei regendo a terceirização, em tramitação no Congresso, for aprovada. Se estamos diminuindo a dualidade até no ensino superior, com a participação do setor privado triplicando o número de estudantes universitários, temos todas as razões e condições para vencer a dualidade no mercado de crédito. Isso dará um impulso extraordinário à economia.

Valor: Quando o senhor fala em unificar o mercado de crédito está se referindo ao crédito público versus crédito privado e ao crédito subsidiado versus o de mercado? Isso não só será possível quando os juros estiverem em patamar mais civilizado?

Levy: Aí tem a questão do ovo e da galinha. O que se precisa é focar nas condições para a convergência das taxas. Como disse o BC, isso começa com a melhora fiscal. Mas precisamos ir além. Tenho convicção de que o mercado de capitais responderá positivamente a mais oportunidades de participar. Há muita demanda por títulos de crédito intermediados ou não pelos bancos. Fundos de investimentos baseados nesses títulos têm crescido muito nos últimos cinco anos. Apesar da turbulência com alguns emissores, o mercado deve continuar se expandindo e pode ter papel muito relevante no financiamento das empresas e da infraestrutura. Uma evolução do atual quadro também pode ser positivo para pequenas e médias empresas. O governo pode criar avenidas nesse sentido.

Valor: Seria o caso de criar ativos com prazos mais dilatados?

Levy: Sim, mas com paciência. Desde 2006, a dívida pública interna se transformou em uma classe de ativos globais com prazo de até 30 anos ou mais. O mesmo pode acontecer com as debêntures de infraestrutura e o financiamento do investimento das empresas, se focarmos na diminuição da dualidade do mercado de crédito. É ter inteligência para aproveitarmos os mercados bem estruturados de investimento e de capitais que já temos. Qualidade da recuperação do crédito também vai ser um fator, como no caso do consignado e do imobiliário. É evidente que sair da zona de conforto do crescimento acentuado do crédito subsidiado é bem mais eficiente do que tentar impor restrições ao investidor e punições ao poupador que não se conformar com os objetivos do governo.

Valor: Tratase, então, de colocar um ponto final no intervencionismo?

Levy: Dicotomias nem sempre são as melhores imagens. Mas os riscos de uma política dirigista seriam os mesmos daquelas que faziam as prateleiras das lojas de Leningrado viverem vazias e as pessoas gastarem horas preciosas em filas para comprar bens básicos. Aliás, ações voluntaristas ensaiadas há poucos anos mostraram que se pode rapidamente desestabilizar um segmento aparentemente seguro, piorando inclusive as condições de colocação da dívida pública.

Valor: Vou insistir: Qual é o destino dos bancos públicos?

Levy: Tentar superar a dualidade do crédito não vai significar o fim dos bancos públicos, notadamente os já ou eventualmente listados em bolsa. Por outro lado, permitirá que a política monetária adquira outra conformidade, aumentando sua potência e dando continuidade à gradual redução da amplitude dos seus ciclos, observada desde os anos 90. E não custa lembrar: em geral, quando acaba a dualidade, muito mais gente tem acesso ao bem ou serviço. Não ficou mais difícil viajar ou trabalhar quando se superou ou diminuiu a dualidade nos mercados de câmbio e de trabalhoa oferta e acesso ao credito tenderá a aumentar, inclusive para as pequenas e médias empresas.

Valor: Como esse processo pode se dar sem grandes ruídos?

Levy: Quando se reduz a dualidade em um mercado pode haver, no princípio, certa apreensão. Imagine amanhã não se poder operar com os depósitos compulsórios com tanta liberdade para atender tal ou qual objetivo de política. Parece arriscado. Mas também parecia perigosíssimo quando se decidiu que o BC não seria o operador de mil e um subsídios, como era até no fim dos anos 80. Ou inviável viver sem o conforto da conta movimento, que tudo podia e tudo financiava. No entanto o país só melhorou quando se eliminaram essas distorções. Tem que construir e o caminho é o da transparência e da eficiência. Valor: O ano de 2015 será de inflação alta, até pela correção de preços relativos, e de estagnação ou mesmo recessão, até pela alta dos juros. As bases de uma retomada da economia em 2016 poderiam ser lançadas com essas iniciativas? Levy: Acredito que sim. E no caso das ações mais estruturais, serão baseadas na transparência e na eficiência, dois valores indispensáveis para garantir o investimento e o aumento da produtividade, e portanto do emprego nos anos a frente. Só assim a gente vai poder fazer uma limonada dos atuais desafios.

Valor: Com isso se evita a perda do grau de investimento?

Levy: É um ingrediente indispensável, junto com o fiscal. As agências também se preocupam com o crescimento. Portanto, ações que facilitem a ampliação da oferta, inclusive pela diminuição da dualidade no mercado de crédito, ajudarão a evitar que elas se precipitem, piorando nossa nota.

Valor: O que garante que o governo terá “disciplina”, como o senhor citou, para levar adiante um novo programa de governo que é a antítese do que ele tentou no primeiro mandato?

Levy: Acredito que os fatos devem mostrar a disciplina. Há bastante harmonia entre o que a equipe econômica vem falando. A própria presidente acenou com a abertura de capital da Caixa, o que tende a mudar a dinâmica de governança da instituição e, provavelmente, até alguns aspectos do seu posicionamento estratégico.

Valor: Quem será o secretário do Tesouro Nacional, cargo estratégico para repor as contas públicas em uma trilha sustentável?

Levy: O nome deve ser anunciado brevemente.