O presidente Barack Obama disse ontem que os Estados Unidos irão encerrar o que ele chamou de uma abordagem ultrapassada em relação a Cuba, com o início da normalização das relações e dos laços diplomáticos entre os dois países, depois de cinco décadas de restrições.
"Esses 50 anos mostraram que o isolamento não funcionou", disse Obama, da Casa Branca, em comentários transmitidos pela TV. "É hora de uma nova abordagem."
Depois de meses de comunicações entre o alto escalão dos dois países, os EUA planejam suspender muitas das restrições aplicadas em viagens e transferências de dinheiro para Cuba.
O Canadá e o Vaticano sediaram muitos encontros entre EUA e Cuba nos últimos meses, segundo uma autoridade. Pessoas do alto escalão do governo americano disseram que as novas medidas compõem "a mudança mais significativa na política em relação a Cuba em 50 anos".
O anúncio foi feito depois que Cuba libertou Alan Gross, empreiteiro americano que ficou preso por cinco anos na ilha, e um funcionário da inteligência americana que não teve seu nome divulgado e ficou preso em Cuba por quase 20 anos. Em contrapartida, os EUA estão libertando três pessoas condenadas por espionagem.
Obama disse que os EUA não se beneficiaram dessa política rígida adotada há décadas, acrescentando que os EUA poderiam fazer mais para apoiar o povo cubano e promover os valores americanos por meio de engajamento.
"Eu não acredito que nós podemos fazer a mesma coisa por cinco décadas e esperar um resultado diferente", disse ele.
A prisão de Gross foi um grande obstáculo para a mudança da política americana em relação a Cuba, disse Obama. Sua libertação ontem aconteceu depois de vários encontros entre autoridades dos EUA e de Cuba e após um apelo pessoal do Papa Francisco.
Obama disse que sabia que as mudanças anunciadas não gerariam uma transformação na sociedade cubana do dia para a noite.
O presidente cubano, Raúl Castro, criticou, em uma transmissão da TV estatal, o "bloqueio econômico" realizado pelos EUA por gerações, mas disse que ele e o presidente Barack Obama estão procurando normalizar as relações. "Nós propusemos hoje aos EUA a adoção de medidas mútuas para melhorar o clima bilateral e normalizar as ligações mútuas entre os nossos dois países", disse Castro.
A nova política provocou fortes críticas de muitos legisladores, com o presidente da Câmara, John Boehner, afirmando que as relações com Cuba não deveriam ser normalizadas até que o povo cubano desfrutasse de liberdade.
"Não há um 'novo curso' aqui, apenas outra numa longa lista de concessões irracionais para uma ditadura que brutaliza seu povo e faz planos junto com nossos inimigos", disse Boehner em nota.
Um porta-voz do Departamento de Justiça confirmou que Obama retirou as sentenças de três ex-agentes da inteligência cubana. O trio foi levado a Cuba por agentes americanos, segundo o porta-voz.
O secretário de Estado, John Kerry, disse que alterar a relação entre EUA e Cuba exigirá um investimento de tempo, energia e recursos, comparando o processo com o esforço americano em mudar sua relação com o Vietnã. "O passo de hoje também reflete nossa firme convicção de que o risco e o custo de tentar mudar a maré é bem menor do que o risco e o custo de permanecermos presos em uma ideologia fixa que nós mesmos criamos", disse ele.
"A notícia é muito positiva", disse o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em Nova York. "É hora de Cuba e EUA normalizarem suas relações bilaterais e eu sinceramente congratulo os desenvolvimentos de hoje." O secretário disse que a mudança reunirá dois povos "que estão separados há muito tempo". Ele disse que a ONU está pronta para ajudar os dois países a "cultivar boas relações vizinhança".
As mudanças representam a mais notável mudança na política americana no continente desde 1961. Em um documento divulgado ontem, a Casa Branca informou que vai encerrar "restrições desnecessárias" a atividades políticas, sociais e econômicas, uma política americana adotada há tempos e que as autoridades concluíram ter pouco efeito, já que a família Castro e o Partido Comunista continuaram governando Cuba.
O novo curso adotado pelos EUA incluirá o estabelecimento de relações diplomáticas com Cuba, ajustes nas regulações financeiras impostas na sociedade cubana, ampliação das viagens entre os dois países e desenvolvimento de vendas comerciais e exportação dos EUA para Cuba. Os EUA também irão reavaliar a designação de Cuba como um Estado que promove o terrorismo.
Como parte da renovação das relações diplomáticas, os EUA vão reestabelecer uma embaixada em Havana e trabalhar com Cuba em áreas de interesse mútuo, incluindo migração, operações antidrogas, proteção ambiental e tráfico humano, informou a Casa Branca.
Os viajantes com destino a Cuba poderão usar cartões de débito e crédito dos EUA e novas políticas facilitarão as transações financeiras entre os dois países, que eram proibidas pelas regras anteriores. Os EUA também irão ajudar Cuba a expandir o seu acesso à internet através da venda de dispositivos de comunicação, software e hardware. Provedores de telecomunicações poderão investir na construção de uma infraestrutura em Cuba para fornecer serviços de telecomunicações, incluindo internet.
Os EUA trabalharão com os governos de Cuba e do México para concluir questões de fronteira não resolvidas no Golfo do México.
O acordo procura fortalecer o pequeno setor privado do país comunista. Com as novas regras, os EUA permitirão a exportação para a ilha de alguns materiais de construção, bens para uso do setor privado e equipamentos agrícolas para os pequenos agricultores. O objetivo, segundo as autoridades americanas, é "permitir que os cubanos elevem seu padrão de vida e ganhem mais independência econômica em relação ao Estado".
Com algumas exceções, os moradores americanos terão permissão para enviar até US$ 2 mil a cada três meses para parentes na ilha, ante os US$ 500 permitidos hoje.
A nova regulamentação facilitará a viagem de americanos para Cuba nas 12 categorias de viagem agora permitidas, que atualmente vão de visitas familiares a projetos humanitários e educacionais a atividades esportivas.
Os americanos que viajam a Cuba poderão trazer de volta até US$ 400 em bens, incluindo até US$ 100 em charutos cubanos e rum.
Líderes da região saúdam o reatamento
Marli Olmos | De Paraná (Argentina)
A presidente Dilma Rousseff disse ontem que Cuba "tem hoje condições plenas de conviver na comunidade internacional". "Achei fantástica essa retomada das relações entre Estados Unidos e Cuba. Acredito que isso é um marco das relações da nossa região, mas sobretudo do mundo", destacou a presidente ao deixar a cúpula do Mercosul, na Província de Entre Ríos, na Argentina.
Para ela, a iniciativa do governo americano é relevante para o povo cubano e toda a América Latina. "Cumprimento o presidente Raúl Castro e o presidente [Barack] Obama por essas duas confluências de interesses. E também o papa Francisco, que parece ter sido, por trás de tudo, o grande fator de aproximação entre os dois países." Segundo ela, "toda a política do governo brasileiro até agora tem sido enfatizar a forma pela qual Cuba tem de ser integrada".
A presidente reeleita lembrou, ainda, que a participação do governo brasileiro na modernização do porto de Mariel, em Cuba, foi criticada durante sua campanha eleitoral. A obra foi feita com financiamento do BNDES, liberado durante o governo Lula.
Dilma esteve presente na inauguração do porto, em janeiro. "O porto de Mariel mostra hoje a sua importância para toda a região. E para o Brasil na medida em que hoje é estratégico pela sua proximidade com os EUA", destacou.
"No momento em que recebo a presidência do Mercosul, um fato desses mostra a importância das relações nessa região", completou.
A presidente argentina, Cristina Kirchner, destacou a "dignidade do povo cubano e de seu governo, que soube manter elevados seus ideais e hoje, em pé de igualdade, normaliza suas relações" com os Estados Unidos.
Para o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, o acordo se trata de "uma vitória da moral, da ética, dos valores. Uma vitória histórica de Cuba, do povo cubano". Maduro também exaltou "o gesto do presidente Obama, de valentia e necessário (...) Dá um passo que talvez seja o mais importante de sua presidência".
O presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, celebrou "a audácia e a coragem do presidente Obama e do governo cubano para tomar esta decisão, que abre a porta para que num futuro, agora não muito distante, possamos alcançar esse sonho de ter um continente onde haja paz total entre as nações".
Após 53 anos de hostilidades, o momento é perfeito para os governos de EUA e Cuba fazerem as pazes. A surpreendente decisão vem quando o presidente Barack Obama está voltando a sua atenção para o legado de sua Presidência e Raúl Castro tenta melhorar a sorte econômica da seu país, diante de reformas que perderam fôlego e da queda do preço do petróleo que afetou duramente seus aliados. "Depois de hoje, tudo muda", disse Carlos Alzugaray, ex-diplomata cubano que vive na ilha e tem estreita relação com o regime. "Essa promete ser a maior mudança nas nossas relações em 50 anos", disse Ted Henken, analista e autor de "Entrepreneurial Cuba", que analisa as mudanças econômicas e sociais que Rául instituiu desde que assumiu o lugar de seu irmão Fidel, em 2006. Essas mudanças permitiram que os cubanos passassem a comprar e vender imóveis, adquirir um carro, viajar ao exterior mais facilmente, abrir seus próprios negócios e contratar funcionários. Mas as reformas perderam impulso, recentemente, devido à falta de dinheiro no bolso dos cubanos. A moribunda economia cubana cresceu apenas 1,4% neste ano, segundo estimativas do governo, e muitas empresas privadas abertas com muita fanfarra nos últimos anos fecharam as portas. Uma lei recente que regulamenta investimentos estrangeiros até agora não conseguiu atrair muito capital. Enquanto isso, a dramática queda dos preços do petróleo abriu crateras na economia do principal benfeitor de Cuba, a Venezuela, que abastece a ilha com o equivalente a US$ 3 bilhões por ano em petróleo altamente subsidiado. Outro aliado-chave, a Rússia, também está em crise econômica. "Se você olhar pelo mundo, (Cuba tem) necessidade urgente de recursos econômicos, moeda forte. A Rússia está sob sanções, o Irã também, os chineses são, antes de tudo, comerciantes", diz Paul Webster Hare, ex-embaixador britânico em Havana. "Se eles (cubanos) querem ter logo mais moeda forte, os EUA estão no topo da lista". Os cubanos já recebem cerca US$ 2 bilhões ao ano em remessas provenientes dos EUA, valor que tende a subir com o abrandamento das restrições econômicas, disse Julia Sweig, analista do Council on Foreign Relations. Um aumento no número de americanos que viajam para a ilha, e novas regras que os autorizarão a trazer os famosos rum e charutos cubanos, também vão elevar as receitas de Cuba. Outra razão para a abertura de Cuba pode ser mais pessoal. Raul tem 83 anos, e Fidel, 88. Ambos têm consciência de que não estarão presentes por muito tempo à frente da revolução que comandam em 1959. Raúl disse que deseja deixar o poder em 2018, e quer deixar o país avançado no rumo das reformas - sob seus termos. Alzugaray, o ex-diplomata cubano, disse que Raúl pode ter oposição de linha dura, mas tem poder político suficiente para lidar com qualquer dissidência, algo que seu sucessor eventualmente não teria. Para Obama o momento também é propício. O anúncio, logo criticado por poderosos políticos cubano-americanos chega às vésperas de os republicanos assumirem as duas câmaras em janeiro. O "The New York Times" publicou recentemente uma série de editoriais influentes pedindo mudanças na política sobre Cuba. Desde a derrota democrata nas eleições de novembro, Obama está empenhado em mostrar que ainda está no comando, valendo-se de seus poderes executivos para promover alterações abrangentes na imigração e ambiente, tendo anunciando um acordo sobre mudanças climáticas com a China. Analistas dizem que as negociações podem levar a um encontro cara a cara entre Obama e Raúl na Cúpula das Américas, em Panamá, em abril, para a qual Cuba foi convidada pela primeira vez. Ainda há, no entanto, obstáculos para a normalização das relações. Washington ainda proíbe o turismo de americanos em Cuba e o governo Obama não pode acabar com o embargo comercial sem aprovação do Congresso, algo improvável enquanto Raúl Castro seguir no poder em Havana. Qualquer acordo final provavelmente terá de resolver a questão de indenização para exilados cubanos que perderam propriedades no país. Por sua vez, Castro deixou claro que seu país continua comprometido com os ideais comunistas da revolução, de forma que uma democracia multipartidária, imprensa livre e capitalismo pleno não estarão no horizonte tão cedo. E, embora os laços comerciais possam ser fortalecidos, Obama não vai cortar fitas de inauguração de McDonalds ou Starbucks em Cuba no futuro próximo.
Odebrecht comemora "pioneirismo" na ilha
Fábio Pupo | De São Paulo
Depois de sua atuação em Cuba receber críticas no Brasil e nos Estados Unidos e chegar a criar dificuldades para seus negócios em outros países, o grupo brasileiro Odebrecht ganhou ontem um grande motivo para justificar sua presença na ilha caribenha.
A retomada das relações diplomáticas entre Estados Unidos e a ilha dos irmãos Castro, anunciada na tarde de ontem pelos presidentes dos dois países, aumenta a expectativa de mais investimentos e negócios na ilha.
"A presença pioneira em qualquer mercado traz vantagens negociais e estratégicas. Fomos para Cuba com visão de longo prazo. Não fomos para fazer uma obra", afirmou Luis Antonio Mameri, presidente da Odebrecht Infraestrutura América Latina.
A construtora do grupo participou das obras do porto de Mariel, um empreendimento alvo de críticas políticas durante a campanha eleitoral brasileira, por contar com financiamento subsidiado do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Essas obras já estão entregues. Agora, a Odebrecht faz reforma e ampliação do aeroporto Jose Martí, em Havana, e administra a Usina Açucareira 5 de Setembro.
Segundo a Odebrecht, o grupo não atua como investidor em Cuba, apenas como prestador de serviços. "Nossa ida para Cuba foi decorrente de um alinhamento com os projetos de integração da América Latina e Caribe. Geramos lá novas oportunidades de trabalho, capacitamos milhares de trabalhadores e nos sentimos inseridos na sociedade local", diz o executivo.
Além da artilharia recebida durante a campanha presidencial brasileira, a Odebrecht foi intensamente contestada por políticos locais no Estado americano da Flórida - tradicional reduto de dissidentes do regime dos Castro. Lá, foi criada uma lei para impedir que empresas com negócios em Cuba firmassem novos contratos com o Estado. Depois, a Odebrecht conseguiu decisão favorável na Justiça. "Essa condição gerava debates que agora estão superados", afirma Mameri. No entanto, ainda há contestações de políticos locais à companhia.