Título: O topete de Itamar
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Fonte: Correio Braziliense, 03/07/2011, Opinião, p. 20

Quando contou a um visitante de sua biblioteca/escritório, no Rio de Janeiro, o que significavam a peneira e os dois abanadores de palha que enfeitavam a sua porta de entrada, Nise da Silveira, a mulher que entrou para a história do Brasil como a dama do inconsciente, que revolucionou a psiquiatria e a medicina no país, estava, talvez involuntariamente, definindo um estilo que poucos homens públicos podem se orgulhar de ostentar: o da autenticidade aliada à extrema e pura simplicidade. "Este é o meu brasão. E ele simboliza a simplicidade", dizia ela, explicando que a peneira servia para filtrar os pensamentos e os abanadores, para não deixar a paixão pelo que fazia se apagar.

A lembrança se torna mais forte ¿ e a comparação, inevitável ¿ no momento em que o país, atolado em meio às rotineiras e permanentes denúncias de todos os tipos contra homens públicos, se entristece com a perda do ex-presidente Itamar Franco. Do alto da mineiridade que lhe camuflava a personalidade forte, Itamar, assim como a alagoana Nise, soube cultivar a simplicidade associada a outras duas preciosas virtudes ¿ a honestidade e o comprometimento com a coisa pública.

Hoje, em um país onde muitos canalhas dominam a cena política, falar em homens públicos honestos causa até estranhamento. Qualquer citação elogiosa pode ser interpretada como oportunismo ou picaretagem. Itamar é um dos poucos que merecem tal deferência. Ao longo da carreira, ouviu adversários tacharam-no de destemperado, folclórico, polêmico. Desonesto? Nunca. Ele assumiu o comando do país em meio à crise política que levou ao impeachment de Collor. Pôs ordem na casa. Formou um governo de conciliação. E, sob sua administração, foram lançadas as bases do ciclo de estabilidade político-econômica que o país vive desde então.

O legado que deixou após sua breve passagem pela Presidência da República é de fundamental importância para o povo brasileiro. Sem ele, talvez, até hoje não existisse o Plano Real ¿ a mais importante, corajosa e bem-sucedida medida para dar estabilidade à economia e livrar gerações de brasileiros das famigeradas "maquininhas de reajuste" dos supermercados na década de 1990. Sim, FHC só se tornou ministro e capitaneou essa mudança devido à ousadia de Itamar. Poucos políticos teriam o topete de bancar tão drástica reforma na economia.

Itamar Franco vai deixar saudade. O que se vê hoje em dia são autoridades vexatoriamente flagradas nas mais escandalosas maracutaias. E quem antes combatia a corrupção agora surge em defesa dos larápios. A situação ficou tão séria que falar em político honesto soa deboche. Mas o legado de alguns atrevidos pode mudar esse imaginário. Alguns raros podem ser lembrados para a história. Itamar Franco, assim como JK, ambos curiosamente esquecidos no auge da vida pública, entrarão para a galeria como homens que honraram a política.