Título: De Dutra a Itamar Franco
Autor: Corrêa, Maurício
Fonte: Correio Braziliense, 03/07/2011, Opinião, p. 21

O presidente Eurico Gaspar Dutra tinha cumprido mais ou menos a metade do mandato de presidente da República. Eu devia ter nessa ocasião uns 13 para 14 anos. Menciono o fato porque foi quando me dei conta da gravidade dos problemas do país e comecei a perceber que não tínhamos recursos nem políticas para arrostá-los. Passei a acompanhar com entusiasmo de jovem os discursos oficiais e as propostas de superação das dificuldades existentes. Desde esses tempos era comum ouvir dizer que o Brasil era maior do que as suas adversidades econômicas e sociais. A vitória sobre o atraso e o subdesenvolvimento era uma questão meramente temporal a se efetivar com o resultado gerado pelas riquezas da terra e do subsolo nacionais.

À exceção de um período ou outro em que a economia se mostrou mais forte do que o imobilismo, logo em seguida algo sucedia que o país retomava o status quo preexistente. As esperanças trazidas com o otimismo do pós-guerra eram estimulantes para todos nós daqueles tempos que piamente acreditávamos que o progresso estava prestes a ocorrer. Essa expectativa nos alimentou os ânimos durante o governo Dutra e se prorrogou por décadas seguintes nos governos de outros presidentes eleitos ou impostos pela força das armas. Entrava governo e saía governo, a situação econômica e social continuava a mesma. O discurso de dias melhores não ia além de metáforas irrealizáveis no plano concreto. Um paralelo de humilhação de brasileiros no exterior se media pela presença hegemônica argentina em tudo sobre nós, a ponto de confundirem o idioma que falávamos e a capital às margens do Rio da Prata.

Durante todo esse tempo praticamente nada se viu no Brasil que não fosse dívida, inflação, desarrumação de poder e desesperança do povo. Afora a existência de alguns esparsos momentos de pequenos êxitos econômicos, passageiros e inconsistentes, a seguir, como bolhas de vento se desfaziam. Repita-se que a economia do país não teve nenhum progresso sustentável ao longo de todo esse período. Um fato, entretanto, se aparta do cenário dessa lassidão muscular. Emergiu do exercício de provação e prática da Constituição Federal de 1988, então recentemente promulgada. Com a posse de Fernando Collor na Presidência da República, em 1990, acompanhou-o na vice o mineiro Itamar Franco. Com o impeachment do presidente em 1992, assume o vice o poder. A partir daí se pode dizer que o país toma um rumo seguro com relação a sua ordem econômica. É um novo Brasil que deverá se livrar do caos e da bagunça inflacionária.

Itamar desejava um nome para o Ministério da Fazenda que liquidasse com a inflação. As primeiras experiências com titulares da pasta não foram felizes. O cargo ficou vago e o presidente se pôs de vigília em busca de alguém capaz de ocupá-lo. Fernando Henrique Cardoso era ministro das Relações Exteriores e naquele exato momento se encontrava em viagem no exterior. Nos tempos em que todos nós éramos senadores, não possuía ele relação pessoal de amizade próxima com Itamar. Foi nomeado ministro porque reunia os requisitos para as funções de chanceler e, até mesmo, porque foi sempre essa a sua explícita vontade.

Itamar foi sempre bom de números. Não é à toa que se formou engenheiro civil e em eletrotécnica na Faculdade de Engenharia da Universidade de Juiz de Fora. Seus discursos no Senado exibem intimidade com algarismos. As amizades se estreitaram entre os dois em virtude dos encargos que os uniam. Um dia Itamar acordou com a ideia fixa de convidar Fernando para o Ministério da Fazenda. No outro lado da linha, o convidado levou um susto. Pediu tempo, não queria deixar o Itamaraty. Houve insistência para que aceitasse o cargo. Sabia que Itamar tinha obsessão com o problema inflacionário. Depois de consultas a amigos, a última resistência era a de sua mulher, dona Ruth. Por fim, também ela anuiu. Fernando teve toda a liberdade para convidar os técnicos que quisesse para organizar o núcleo de ação. Empossado nas funções e constituída a equipe de assessores, iniciou a elaboração final do programa econômico que deveria ser logo agitado.

A nação outro dia se assustou com a notícia da internação em um hospital de São Paulo do ex-presidente Itamar Franco. Ele, que na semana passada completou 81 anos, morreu ontem de manhã, em São Paulo.

Fernando Henrique Cardoso, que outro dia fez 80 anos , está recebendo homenagens de vários segmentos da sociedade brasileira. Afinal, é uma idade digna de comemoração e enlevo, sobretudo pela substancialização de sua densa produção intelectual no domínio das ciências sociais. Não tenho a pretensão, e nem posso, de tirar os méritos de FHC e, muito menos, os da equipe que se encarregou da elaboração do Plano Real.

Foi de Itamar, contudo, a coragem de empolgá-lo tal como concebido, e de sustentá-lo até o final do mandato. Se não desse certo, como não deram os outros planos de governos passados, a culpa seria exclusivamente dele. A política econômica iniciada em sua gestão teve prosseguimento em todos os governos posteriores e se mantém até hoje. De Dutra até Itamar é a primeira vez que um plano econômico dá certo. Eu vivi esse tempo. É hora de fazer-lhe justiça.