Criadas para ser uma solução para a demanda de cirurgias e consultas oftalmológicas, as Carretas da Visão estão sob foco de reclamações por mau atendimento e suspeita de falhas graves nos procedimentos de saúde. Pacientes procuraram a Defensoria Pública (DPDF), o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), o Tribunal de Contas do DF e a Justiça relatando graves sequelas após as cirurgias. O Correio obteve o relato de três casos de possíveis complicações.

Quem conta a história de Maria de Lourdes Ferreira, 68 anos, é sua filha Clésia Gonçalves, 33, moradora de Valparaíso de Goiás (GO). Maria aguardava por uma consulta em oftalmologia na rede pública havia dez anos. O olho esquerdo já estava cego e a visão direita, comprometida seriamente. Quando Clésia soube da presença das carretas em Ceilândia, não pensou duas vezes: “Foi a minha esperança de dar uma condição de vida melhor para minha mãe”, diz. “Quando nos disseram que os atendimentos começariam no dia seguinte às 6h, voltamos às 5h30 e ela foi operada dos dois olhos simultaneamente”, completa. Segundo especialistas, as normas brasileiras para cirurgias da visão são contrárias a cirurgias simultâneas nos dois olhos.

Com dores, Maria Israel teve de retirar o globo ocular  (Carlos Moura/CB/D.A Press)

Com dores, Maria Israel teve de retirar o globo ocular


Maria teve sérias complicações de saúde e morreu cerca de oito semanas após o procedimento. Ela era diabética havia 20 anos e sofria de pressão alta. “Um dia depois da cirurgia, na revisão, ela não teve nenhum atendimento individual. Uma pessoa da carreta fez um tipo de palestra para todos os que haviam sido operados e disse que era normal que os olhos lacrimejassem. Nos deram óculos e colírio e fomos embora”, lembra. Uma semana depois, sem melhora, Maria teve fortes dores de cabeça e a família a levou para o Hospital Regional de Taguatinga (HRT). “Lá, eu ainda fui culpada pelos médicos, que me criticaram por levar minha mãe para ser operada em um açougue, como eles mesmos disseram”, lamenta.

No HRT, a equipe médica coletou sangue de Maria e a submeteu a exames cardiológicos e clínicos. A idosa foi diagnosticada com anemia. A família, então, a levou para um oftalmologista particular, que recomendou uma nova cirurgia para o problema da catarata. “O caso da minha mãe repercutiu entre os médicos da rede e o pessoal da carreta ficou sabendo. Nos chamaram e o Dr. Fábio me disse que não era preciso nova cirurgia, mas eles fizeram uma nova raspagem no olho da minha mãe. Mesmo com sequelas da cirurgia, a equipe da carreta tentou nos convencer a assinar uma carta dizendo que estava tudo bem. Nos levaram para uma sala reservada na carreta, com sofá de couro e ar-condicionado, e eu assinei aquele papel com medo de tirar de outras pessoas a oportunidade de serem operadas”, afirma.

Olair Fernandes:

Olair Fernandes: "Lá é seja o que Deus quiser"


Olho removido
Moradora do Riacho Fundo II, a aposentada Maria Israel da Conceição, 73 anos, teve de retirar o globo ocular para evitar as dores, inflamações e a hemorragia no olho operado em maio passado. “Eu estava encaminhando os exames pré-operatórios na rede pública, mas me mandaram para a carreta e, lá, é aquela multidão de gente, um sendo atendido logo após o outro, nem pedem exame nenhum”, relata. 

Diabética e com pressão alta, Maria Israel teve de tomar um medicamento que combate o problema arterial antes de ser operada. “Falaram que eu ficaria bem, mas a operação demorou mais de uma hora, quando o normal é levar 15 minutos. Quando voltei à carreta no dia seguinte, fui operada mais uma vez, pois disseram que a catarata estava dura e não havia sido removida completamente”, conta.

Clésia acredita que mãe morreu por mau atendimento (Arthur Paganini/CB/D.A Press)

Clésia acredita que mãe morreu por mau atendimento


No fim das contas, Maria teve deslocamento da retina após o procedimento. Foram caixas e mais caixas de colírios — nenhum deles fornecidos pela carreta — para tentar recuperar a visão perdida. “Quando fui num médico particular, ele me disse que eu precisava ter feito exame cardiológico para garantir que não haveria riscos na cirurgia”, diz.

O aposentado Olair Fernandes, 68 anos, morador do Taquari, também reclamou do atendimento em denúncia ao Ministério Público de Contas. Ele operou os dois olhos e, em seguida, apresentou problemas. “Tive que procurar um hospital particular porque a carreta, que estava estacionada na Asa Norte, já tinha ido embora. Feriram parte do meu olho. Se não tivesse conseguido atendimento particular, teria sido pior”, avalia. “Lá é seja o que Deus quiser. Nem pediram exames preliminares”, diz.

Defensor público no núcleo de saúde, Celestino Chupel conta que recebeu dezenas de pacientes que ficaram cegos ou tiveram piora no estado clínico da catarata. “Há indícios de que houve algum tipo de problema, mas ainda não é possível dizer se por imperícia médica ou por ausência de tratamento continuado após a cirurgia”, explica.