Título: Nas entrelinhas
Autor: Pinto, Paulo Silva
Fonte: Correio Braziliense, 02/07/2011, Política, p. 4

Quando a diplomacia se torna irrelevante

O WikiLeaks lança uma questão sobre o trabalho dos diplomatas em todo o mundo: quais de seus serviços são realmente significativos e qual parte não passa de uma relíquia do século 19

A Câmara Legislativa do Distrito Federal não precisou fazer nada para aparecer mal na foto nesta semana. Na leva de documentos divulgados pelo WikiLeaks há um telegrama do então embaixador dos Estados Unidos no Brasil em 2004, John Danilovich, no qual ele qualifica o Legislativo local de "refúgio de canalhas". Dos leitores do Correio que se manifestaram na coluna Desabafo, nenhum discordou da opinião do embaixador. Muitos acham até que a crítica foi comedida.

Para os deputados distritais, certamente era melhor passar a semana sem essa. Mas será que isso trouxe algum dano real para eles? Se for realizada uma pesquisa de imagem do Legislativo brasiliense ¿ ou de qualquer outro lugar do país ¿, é muito provável que o resultado seja negativo. O difícil, porém, é acreditar que alguém mudou de ideia sobre o tema depois que a opinião de Danilovich se tornou pública. Como se existisse um eleitor para quem, até alguns dias atrás, a Câmara Legislativa era povoada por pessoas honestas e comprometidas com o bem da população. E então ele leu a opinião do ex-embaixador norte-americano e se deu conta de que não é nada disso.

A imagem negativa pode rondar uma casa legislativa sem mudar nada. No caso de um governo, é bem diferente. Se as opiniões forem desfavoráveis, o chefe do Executivo tende a não ser reeleito, ou a não eleger um sucessor do mesmo grupo político. No caso de uma câmara ou uma assembleia, o que os eleitores podem fazer? Certamente podem votar na eleição seguinte em nomes de pessoas que não estão lá, provocando uma renovação maior ou menor das bancadas. Mas é altamente improvável que ocorra uma renovação radical ¿ muito menos total.

O que vale na frase de Danilovich é sobretudo o efeito catártico. É algo que aparece sempre que se consegue desvendar a verdade por trás do cinismo. Há um certo prazer em pensar que quando o embaixador cumprimentava deputados brasileiros em eventos sociais estava de fato pensando que eles eram "um bando de canalhas". Mas a diversão está só no fato de isso vir a público. Não é algo tão surpreendente descobrir que esse era o verdadeiro pensamento de Danilovich, um empresário que, por ser amigo de George W. Bush, ganhou o cargo de embaixador dos Estados Unidos, primeiro na Costa Rica e depois no Brasil.

Também é divertido imaginar que o embaixador chinês Chen Duqing fazia mesuras a seus interlocutores ao visitar Santos, em 2008, enquanto pensava em segredo que nunca havia visto um porto pior do que o da cidade. É isso o que afirmou ao embaixador norte-americano no Brasil, que àquela altura já era outro: Clifford Sobel. Duqing também lhe disse que o fato de o Brasil não ter consolidado seu desenvolvimento econômico comprometia a meta de reduzir a desigualdade social. Alguém está realmente frustrado ao descobrir a opinião do embaixador? Alguém imagina que os chineses consideram o Brasil um modelo de desenvolvimento? Já apareceram no WikiLeaks frases bem mais divertidas que as desta semana. Os diplomatas norte-americanos na Rússia chamaram o presidente Dmitri Medvedev de Robin, enquanto o primeiro ministro e ex-presidente Vladimir Putin era para eles o Batman.

O que realmente surpreende em tudo isso é o fato de os diplomatas se ocuparem de platitudes, de transformarem em documentos de Estado frases que parecem extraídas de uma conversa de bar. As mensagens que eles enviam aos seus governos são chamadas telegramas exatamente porque o hábito vem de uma época distante, em que mandar palavras em tempo real para o outro lado do mundo era caríssimo. Hoje um e-mail tem custo zero. Mas a disponibilidade de informação é imensamente maior do que há algumas décadas. De que serve uma pessoa elencar informações que são conhecidas e compartilhadas por todo mundo e que muitas vezes não ultrapassam o preconceito que trazem de seus países a respeito do lugar onde se encontram? Difícil compreender.

É verdade que as mensagens divulgadas pelo WikiLeaks não são as que estão no nível máximo de confidencialidade. E também é verdade que espera-se de embaixadores muito mais do que enviar mensagens a seus países. Ainda assim, o WikiLeaks lança uma questão sobre o trabalho dos diplomatas em todo o mundo: quais de seus serviços são realmente significativos e qual parte não passa de uma relíquia do século 19.