Dilma chora por vítimas da ditadura mas defende 'pactos'

Valor Econômico - 11/12/2014

"Assim como reverenciamos todos os que lutaram pela democracia, reconhecemos e valorizamos os pactos políticos que nos levaram à redemocratização"

Andrea Jubé e Bruno Peres

Vítima de tortura na ditadura militar (1964-1985), a presidente Dilma Rousseff adotou um discurso conciliatório, que frustrou familiares de mortos e desaparecidos políticos, na solenidade de apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A presidente chorou ao falar dos familiares e amigos dos mortos e desaparecidos políticos que "continuam sofrendo".

Dilma reverenciou os que lutaram pela democracia, mas reconheceu os "pactos políticos" que levaram à redemocratização. No evento, marcado pela ausência dos militares, houve protestos pela falta de punição dos torturadores, enquanto integrantes da comissão cobraram "desculpas formais" das Forças Armadas e a revisão da Lei da Anistia.

A presidente não fez nenhum aceno, contudo, de aval do governo a mudanças na legislação para permitir a punição de agentes do Estado envolvidos em tortura. Ao final da cerimônia, questionada sobre o tema, Dilma silenciou. No discurso, rebateu as críticas de que a comissão buscou a desforra dos perseguidos políticos contra os militares.

"A verdade não significa revanchismo, a verdade não deve ser motivo para ódio ou acerto de contas", disse a presidente. "A verdade liberta daquilo que permaneceu oculto, de lugares que nós não sabemos aonde foram depositados os corpos de muitas pessoas", completou.

Dilma também ressaltou a importância dos "pactos e acordos nacionais", equiparando-os às ações contra o regime de exceção. "Assim como respeitamos e reverenciamos todos os que lutaram pela democracia, também reconhecemos e valorizamos os pactos políticos que nos levaram à redemocratização", afirmou.

No ponto alto da cerimônia, a presidente - que foi torturada e passou quase três anos presa -, chorou ao mencionar os familiares de mortos e desaparecidos políticos. Nesse momento, fez uma pausa e foi aplaudida durante um minuto. "Afirmei que o Brasil merecia a verdade, que as novas gerações mereciam a verdade, e, sobretudo, mereciam a verdade aqueles que perderam familiares, parentes, amigos, companheiros e que continuam sofrendo, como se eles morressem de novo e sempre a cada dia", emocionou-se.

A solenidade foi marcada por protestos organizados e anônimos. Uma pessoa gritou da plateia: "Punição aos torturadores e assassinos". Representantes da União da Juventude Socialista (UJS), ligada ao PCdoB, e do movimento Levante pela Justiça, entoaram palavras de ordem: "Levante pela Justiça, Levante pela verdade, Levante na rua para acabar com a impunidade".

Único representante das Forças Armadas na solenidade, o diplomata Celso Amorim, ministro da Defesa, foi conciso sobre o documento. "Eu não vou comentar, todas as recomendações vão ser analisadas."

Em entrevista à imprensa, os integrantes da comissão cobraram reconhecimento das violações aos direitos humanos pelas Forças Armadas, e a revisão da Lei da Anistia. "Para que se alcance a reconciliação, seria fundamental que as Forças Armadas hoje reconhecessem os erros praticados anteriormente", afirmou o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias. "Não deve haver aí um espírito de corpo no sentido de hoje estarem dando apoio ao que foi feito", observou.

"Não me parece que tem de rever a Lei da Anistia, mas proclamar que a anistia não se estende aos agentes de Estado que praticaram excessos e violências", sustentou o ex-ministro da Justiça no governo de José Sarney, José Paulo Cavalcanti Filho. "Não é rever a lei, mas dizer que ela é inaplicável para reconhecimento da impunidade dos agentes do Estado", reforçou.

A advogada Rosa Cardoso, que defendeu Dilma no período militar, disse que o discurso da presidente sobre o respeito aos acordos que levaram à redemocratização pode ser interpretado como um aval implícito à revisão da Lei da Anistia. Ela argumenta que a Constituição Federal de 1988 recepciona, inclusive, os acordos internacionais, como a convenção interamericana de direitos humanos, em relação à qual a Lei da Anistia seria ilegal. "A Lei da Anistia não vale perante os tribunais internacionais, é por isso que a Dilma fala que os pactos devem ser cumpridos".

O presidente da comissão, Pedro Dallari, afirmou que uma das frustrações da comissão foi não avançar "de forma mais significativa" na localização de restos mortais dos mortos e desaparecidos, principalmente dos combatentes na Guerrilha do Araguaia. Dallari classificou como "respeitoso" o relacionamento com as Forças Armadas, mas ressaltou que deixou a desejar a contribuição dos militares com os documentos solicitados. "O que há é a dificuldade nossa em aceitar a substância de informações que recebemos", afirmou, acrescentando que o relatório cita todos os documentos entregues pelos militares.

O presidente da comissão disse que o colegiado é "cético" em relação à informação da destruição de documentos. A comissão recebeu a informação de que prontuários médicos do Hospital Central do Exército, anteriores a 1983, teriam sido destruídos. Mediante denúncias anônimas ao Ministério Público, esses prontuários foram localizados, inclusive em arquivos pessoais do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici. A comissão responsabilizou os presidentes da República no regime militar pelos atos de repressão.

Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) manifestaram-se sobre a revisão da lei que anistiou agentes do Estado e presos políticos. Marco Aurélio Mello se mostrou contrário: "Anistia é acima de tudo esquecimento, perdão em seu sentido maior", disse.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, no entanto, a Lei de Anistia deve voltar à pauta do STF. Segundo ele, o colegiado terá de discutir se a decisão que validou a legislação em 2010 está em acordo com outra tomada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que sentenciou o Brasil a investigar crimes da ditadura e punir seus autores.

"O que é preciso saber é se [a] lei [da Anistia] é compatível com Constituição e qual a posição que deve prevalecer [se do STF ou da Corte Interamericana]. Esta situação de haver decisão da Corte Interamericana posterior a decisão do Supremo e em sentido divergente é uma situação inusitada", disse, sem adiantar seu ponto de vista sobre o tema.

Em 2010, oito meses depois da decisão do STF que validou a Lei da Anistia, a Corte Interamericana, ao julgar um caso relativo à Guerrilha do Araguaia, entendeu que existiram violações, crimes contra direitos humanos e que a Justiça comum deveria processar e punir eventuais culpados.

Para a Corte Interamericana, a Lei da Anistia do Brasil não é compatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que foi assinada pelo país.

A Comissão da Verdade trabalhou durante dois anos e sete meses, colheu 1.200 depoimentos e fez diligências em todo o país para apurar violações de direitos humanos no período de 1946 a 1988. Apontou violações sistemáticas, principalmente, no regime militar (1964-1985) e documentou as histórias de 434 mortos e desaparecidos. O trabalho do grupo incluiu dentre os culpados pelas mortes, torturas, desaparecimentos forçados, ocultações de cadáveres e prisões arbitrárias os cinco generais que presidiram o país durante o regime, ministros, além de outros militares e policiais diretamente envolvidos na repressão política.

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Comandantes das Forças Armadas custam a reconhecer tortura

Valor Econômico - 11/12/2014

Raymundo Costa

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluiu seus trabalhos sem a punição dos torturadores, o que era esperado e previsível, mas também sem o reconhecimento oficial das Forças Armadas de que violaram os direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985), possibilidade que chegou a entrar no radar das autoridades civis.

Isso ocorreu quando os comandantes das três Forças - Exército, Marinha e Aeronáutica - abriram dez instalações militares às investigações da CNV. Apesar das evidências e dos testemunhos colhidos pela comissão sobre a prática de torturas e as mortes ocorridas no ambiente militar, no entanto, o máximo a que se permitiram os comandantes foi o reconhecimento de que não tinham como desmentir os fatos investigados pela CNV.

O alarido era dos militares da reserva e dos remanescentes dos porões, com os quais a ativa nunca deixou de ser solidária. As Forças Armadas de hoje não têm mais o viés intervencionista presente em sua cultura desde a República, mas o espírito corporativo sempre fala mais alto. Nunca se foi tão longe como a CNV, mas como sempre, neste caso, nunca foram dadas chances reais a uma reconciliação definitiva.

Desde o início das negociações para a criação da CNV, os militares reagiram defensivamente, convencidos de que o objetivo era a revisão da Lei da Anistia. Também apontavam revanchismo e parcialidade, pois apenas um dos lados seria investigado. O projeto só chegou ao Congresso e foi aprovado mediante o compromisso de que o limite era o resgate da memória do período, sem revisão da Lei da Anistia e punição dos culpados.

Não deixa de ser um avanço os comandos reconhecerem que não têm como negar o que se passou em suas dependências. O Exército, a maior e mais influente três das forças, foi o mais reticente. Em resposta a um questionamento do ministro Celso Amorim (Defesa), respondeu: "Este Comando entende que não lhe é pertinente manifestar-se a respeito dos atos formais e de outras decisões tomadas pelo Estado brasileiro".

A Aeronáutica deu um passo além e disse que a FAB não dispunha de "elementos que sirvam de fundamento para contestar os atos formais de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro". A Marinha também se escudou na linguagem, mas foi mais clara: "Não foram encontrados indícios nem provas documentais ou materiais que permitam confirmar ou negar as informações" da CNV.

Ficou o gosto amargo da frustração entre os familiares dos mortos sob a guarda do Estado. As investigações, sem dúvida, ajudaram a esclarecer as circunstâncias em que foram mortos alguns desaparecidos políticos, mas o desfecho não significa um encerramento nem para as famílias nem para os remanescentes dos porões da tortura, que a seus pesadelos hoje somam a possibilidade de responder perante os tribunais pelos crimes que cometeram sob a cobertura dos governos ditos revolucionários.

A presidente Dilma Rousseff, ela mesma uma ativista da esquerda armada que foi presa e torturada nos anos de chumbo, chorou aos falar "dos familiares e amigos que continuam sofrendo". Mas não arredou o pé no apoio aos pactos políticos firmados pela sociedade brasileira, entre os quais inclui a anistia "recíproca" aprovada em 1979 por um Congresso que ainda respirava sob a tutela militar.

A CNV recomendou, mas a revisão da Lei da Anistia não foi assumida pelo governo da ex-guerrilheira Dilma Rousseff. Uma briga que nem ela, nem Lula - e antes deles Fernando Henrique Cardoso, outro perseguido do regime -, quiseram comprar. O Estado preferiu pagar indenizações. As vítimas aceitaram.

Depois da Constituinte de 1988, esta provavelmente foi a última oportunidade dos familiares de obter a revisão via o Estado. Só os tribunais agora podem responsabilizar cível ou criminalmente quem matou e torturou na ditadura, uma possibilidade real desde que os familiares passaram a conseguir interpretações mais favoráveis do que antes obtinham do Poder Judiciário.