A Comissão Nacional da Verdade foi a primeira no mundo a instituir um núcleo de perícias. Em outros países, o mais comum era estabelecer convênios com universidades ou outras instituições para os trabalhos. Aqui, uma equipe especializada em crimes de tortura e violação de direitos humanos se dedicou a criar uma metodologia específica para analisar os casos ocorridos durante o regime militar que vigorou no países entre 1964 e 1985. Contando com o auxílio de tecnologia para montar modelos tridimensionais, eles também peregrinaram ao passado. Muitos documentos dados como perdidos foram encontrados em tribunais de justiça, fóruns, arquivos públicos. Fotografias também se mostraram fundamentais para orientar o trabalho.

A partir de novembro de 2013 a CNV, que teve os trabalhos encerrados na última semana, passou a contar com um grupo próprio, trabalhando exclusivamente para esclarecer casos de supostos suicídios. Dois peritos da Polícia Civil do Distrito Federal, com experiência em casos de torturas, foram chamados para a missão de dar respostas sobre 44 casos de falsos suicídios. A tarefa mudou ao longo do tempo, para se adaptar as condições e as necessidades da comissão. Outros quatro peritos integraram a equipe. Eles fizeram uma triagem na lista inicial e selecionaram 15 casos com documentação que possibilitava análise. 

Para os outros casos, começaram a disparar solicitações para órgãos que poderiam ter informações válidas. Ao mesmo tempo, o conhecimento deles foi requisitado em outros estudos. A equipe colaborou nos casos dos presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, ou em episódios emblemáticos, como de Vladimir Herzog, Stuart Angel, Carlos Marighella. Além das histórias individuais, os profissionais entraram nas dos locais de ocultação de cadáveres, como a famigerada Casa da Morte de Petrópolis. “Com a nossa experiência em política, estamos acostumados a checar fontes. Trouxemos um pouco disso à CNV e fomos chamados em outros casos”, diz o coordenador do Núcleo Pedro Cunha.

Tanto ele quanto Mauro Yared são cedidos da PCDF e trabalhavam com mortes violentas há 20 anos. Em 2007, ministraram o primeiro curso do pais sobre Locais de Tortura e Execução sumária, pelo Ministério da Justiça. “Naquele momento, nós depuramos a metodologia e fixamos a forma de trabalho”, afirma Cunha. A forma de encarar os crimes é a primeira diferença em relação ao trabalho em homicídios comuns. “O raciocínio muda, é excludente. No caso do suicídio, por exemplo, deveríamos encontrar alguns elementos. A não constatação de alguns deles já são informações que precisamos analisar”, explica Yared.

Análise
No caso de Higino João Pio, um dos vários casos tidos como suicídio por enforcamento pelo Estado, a equipe da CNV constatou várias inconsistências nos documentos oficiais. O primeiro prefeito de Balneário Camboriú estava sob a custódia da Marinha, na Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Florianópolis, quando morreu em março de 1969. “Ele foi colocado de pé, com a planta do pé apoiada no chão. O queixo encaixado no azulejo, os braços rígidos para frente. Não é uma posição comum para alguém que se matou. Além disso, o aço que o prendia sequer estava amarrado, apenas colocado no gancho”, detalha Pedro Cunha. Neste caso, os peritos puderam visitar a escola em Santa Catarina e observar as características do local. Além de montar uma planta para comparar com os laudos do período.

Mesmo com equipe reduzida e tempo escasso, os peritos colaboraram na elaboração de perfis para a produção do relatório final, investigaram casos emblemáticos, analisaram os falsos suicídios. Nos casos em que havia prova material, os laboratórios do Instituto de Criminalística do DF ou da Polícia Federal foram usados para avaliações químicas. Fizeram também croquis sobre locais de tortura e ocultação de cadáver, reconhecimento de locais, acompanhamento de exumações. “Esse levantamento pode ser feito com outros casos. Porém, demanda tempo. Mas o caminho das pedras nós começamos a trilhar”, afirma Cunha. “Fácil não é pelo tempo que se passou, mas solução existe e é possível dar uma resposta às famílias que ainda não sabem o que de fato aconteceu a seus parentes vítimas do regime”, completa Yared.