O relatório final da Comissão Nacional da Verdade que será entregue à presidente Dilma Rousseff na quarta-feira trará os nomes de quase 380 militares como responsáveis pelos crimes de lesa humanidade decorrentes das violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, período investigado pela comissão. A CNV vai recomendar que todos sejam responsabilizados criminal e civilmente de acordo com as provas obtidas sobre cada um. Os militares serão citados no documento em três categorias: autores políticos institucionais (sem relação direta nos crimes mas com consciência do ocorrido); responsáveis pela gestão de órgãos, como os comandantes de quartéis; e autores diretos de crimes contra a humanidade – item em que estarão quase 200 agentes do Estado.

O general Newton Cruz, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) acusado pela morte do jornalista Alexandre von Baumgarten; o coronel Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi de São Paulo; Sebastião Moura, o Major Curió, denunciado pelo Ministério Público do Pará pelo sequestro de cinco pessoas na Guerrilha do Araguaia; e o falecido coronel Paulo Malhães, que assumiu participação na ocultação do corpo do deputado Rubens Paiva, estarão elencados como executores diretos dos crimes. Na outra ponta, os nomes de todos os presidentes do regime militar constarão na lista de autores políticos das violações.

“Nomeamos todos os presidentes militares pois eles sabiam da tortura”, disse Rosa Cardoso da Cunha, integrante da CNV, em entrevista ao Valor. “Implantaram a ditadura com a tortura como técnica da estratégia do que diziam ser o combate contrarrevolucionário”.

Civis que participaram do regime estarão nominalmente no documento. Mas não haverá recomendação para punição destes. Entre civis, serão responsabilizados pelas violações apenas agentes da Polícia Civil.

A principal demanda das vítimas da ditadura, a revogação da Lei da Anistia não será pedida pela CNV. No lugar, o documento trará a recomendação para que a lei não seja mais aplicada. A esperança, diz Rosa, é que o Supremo Tribunal Federal (STF) reveja a jurisprudência e invalide a aplicação da lei.

O norte para a elaboração do texto foi a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o processo do Araguaia, tomada em 2012 e que demandava a instituição da Comissão da Verdade. O relatório final será semelhante àquela decisão “com o objetivo de orientar o Brasil a se adequar às decisões internacionais sobre crimes contra os direitos humanos”, aponta Rosa. Para ela, instituições internacionais têm o direito de cobrar do Brasil que avance no tema.

“A revisão do Supremo é a pá de cal sobre a Lei da Anistia. Se o Supremo não avançar, a insistência internacional vai continuar. Descumprir a decisão [da Corte Interamericana] é praticar um ilícito internacional”, diz Rosa.

Dividido em três volumes, o documento destina um deles aos depoimentos e casos de violação de direitos. Trecho mais polêmico do relatório, o capítulo sobre responsabilização de autores de violações ficou pronto na terça-feira, depois da exclusão de alguns nomes. “São quase 400 militares citados mas tínhamos muito mais. Cortamos porque queríamos ter uma lista imbatível”, diz Rosa. Imbatível para ela é uma lista onde o envolvimento de cada citado esteja explicitado com base em documentos e nos depoimentos colhidos ao longo de quase três anos de trabalho.

O relatório não fará a responsabilização de empresários, mesmo daqueles com notória relação com o aparelho repressor – como os executivos que financiaram a Operação Bandeirantes (Oban) e os envolvidos com o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad).

Mas, em trecho ao qual o Valor teve acesso, a CNV afirma que grandes grupos econômicos se formaram em vários ramos da economia sob o protecionismo estatal.

O regime militar “cumpriu um papel de fomentador de tal concentração, seja através da criação de um ambiente econômico favorável, seja diretamente no favorecimento de determinados grupos”, afiança o texto. O setor de construção civil é apontado como exemplo do processo de concentração de mercado e favorecimento de empresas pelo governo. Odebrecht e Andrade Gutierrez são citadas no documento como companhias beneficiadas pela ditadura.

“As empreiteiras brasileiras, logo depois de formadas, organizaram-se em aparelhos da sociedade civil, que desenvolviam atuação coletiva para pressionar e influenciar por políticas favoráveis”, relata o documento, que aponta ainda que algumas empresas do setor possuiam contatos diretos com agentes do aparelho de Estado e contrataram militares para suas diretorias no intuito de “facilitar a atuação junto a agências estatais”. O documento ainda trata da concentração de mercado no setor bancário, onde aponta que boas relações com o staff governamental durante a ditadura possibilitaram o nascimento do que é classificado no texto como ” impérios econômicos”.

No trecho em que descreve o envolvimento do empresariado paulista no golpe, o relatório afirma que “os últimos arranjos para o golpe contaram com a participação de empresários do setor industrial” e lista a Souza Cruz e Pirelli como empresas que “mantinham laços diretos com o Ipes”, o instituto criado em 1961 no Rio de Janeiro que, enquanto centro de pensamento conservador, serviu como “centro conspiratório” ao aproximar militares de empresários e outros núcleos civis. O documento trata ainda do que chama de “militarização das empresas” e cita a Volkswagen como uma das fábricas que contratou militares entre seus quadros para reprimir o movimento sindical.

Rosa Cardoso diz que não houve tempo hábil para que a CNV avançasse na investigação das responsabilidades civis e criminais de empresários e espera que este trabalho seja feito pelo Ministério Público. “Há um legado pregresso quanto à questão [militar na ditadura] graças às vítimas e a comissões anteriores. Mas sobre o envolvimento dos civis, o trabalho da Comissão da Verdade é pioneiro”, diz Rosa.

Hoje, em um evento em São Paulo, sindicalistas entregarão à procuradora federal Eugenia Fávero, do grupo de justiça de transição do Ministério Público Federal, um relatório sobre a atuação de empresas na ditadura.

Procurada pelo Valor, a Odebrecht afirmou que “sempre pautou sua atuação pela ética e todos os contratos que conquistou estão de acordo com a lei”. A Andrade Gutierrez afirmou “que sempre trabalhou de forma transparente e ética com todos os clientes” e negou “qualquer favorecimento de governo, independente do regime”. O porta-voz da Pirelli, Marco Cortinovis, disse que a empresa não iria comentar. Foi a mesma resposta da Souza Cruz.

Em outro tom, a Volkswagen respondeu que “investigará qualquer indicação de uma eventual participação de funcionários no fornecimento de informações ao regime militar no país” e acrescentou que a Comissão da Verdade ainda não a contactou sobre o tema.