Dura desvalorização interna dá fôlego à economia espanhola 

Há apenas dois anos e meio, a Espanha estava no fundo do poço. E o poço era bem fundo. A crise no país ameaçava até implodir a moeda única europeia. Hoje chegou a vez de os espanhóis acusarem o resto da Europa de estar freando o crescimento da sua economia. Em 18 meses, a Espanha conseguiu passar do inferno ao purgatório. Mas o paraíso ainda parece distante, especialmente para os 23,6% de desempregados.

Em julho de 2012, o risco-país da Espanha atingiu o recorde de 637 pontos em relação aos títulos da dívida alemã. A confiança no país desapareceu. E o PIB anual caiu 1,6% naquele ano.

Já neste ano, a economia deve crescer 1,3%, um dos ritmos mais fortes da zona do euro. O país teve cinco trimestres seguidos de crescimento e quatro trimestres seguidos de geração de empregos. O risco-país caiu mais de 80% entre julho de 2012 e agora e o governo está se financiando a taxas relativamente baixas, apenas 110 pontos-base acima dos títulos alemães. A Bolsa de Madri subiu cerca de 60% nos últimos 18 meses. O rating das agências de classificação de risco melhorou. Déficit público está em queda, e a partir de 2016 o país deve passar a ter superávit primário e a dívida deveria parar de aumentar, segundo plano acertado com a UE. A conta corrente foi positiva pela primeira vez em 30 anos em 2013 (0,7%), e este ano também será. E, num sinal de reconhecimento, o país foi convidado a abrir o debate no G-20 sobre reformas.

Essa transição espanhola foi feita, principalmente, por meio de um doloroso processo de desvalorização interna. O governo aprovou uma série de reformas, em especial a trabalhista, que reduziu salários, aposentadorias e direitos (e custos) trabalhistas, o que permitiu ao país ganhar competitividade. Com isso, as exportações cresceram, o que começou a gerar emprego e deu algum fôlego para a economia.

“Aconteceu algo que ninguém achou que podia ocorrer, uma desvalorização sem desvalorização, interna”, afirmou uma autoridade do governo, que pediu para não ser identificada. “E é uma desvalorização que não se perde como uma desvalorização normal.”

O ponto central dessa desvalorização interna foi a reforma trabalhista de 2012, que, entre outras coisas, facilitou as demissões e deu mais flexibilidade para as empresas contratarem por tempo determinado. “A nova lei tornou permanente o contrato provisório”, observa um diplomata estrangeiro. “A reforma trabalhista permitiu às empresas ajustar os custos de acordo com a demanda”, diz a autoridade do governo espanhol.

Essa melhora na competitividade se observa de vários modos. Com o custo da hora de trabalho agora abaixo da média europeia, “Todas as 17 plantas de automóveis na Espanha receberam novos modelos nos últimos dois anos”, diz José Maria Blasco Ruiz, diretor de Projetos e Operações do ICEX, a agência espanhola para exportação e investimentos.

“A Espanha fez bem a desvalorização interna. Os custos e os salários estão mais baixos. Em relação ao custo de trabalho unitário, recuperamos parte da competitividade em relação à Alemanha. Mas isso cria mal-estar. Além disso, deprime a demanda interna e favorece os exportadores”, afirmou um alto executivo de uma multinacional espanhola, que já trabalhou no Brasil e que também prefere não ser identificado. “Esse processo está acabando.”

Mas justo quando o país começou a dar sinais de recuperação, a economia europeia embicou para baixo e ameaça agora frear a incipiente retomada espanhola.

“A Espanha fez um ajuste enorme em pouco tempo. As perspectivas são relativamente boas, mas há quatro meses eram melhores do que agora”, diz o economista Miquel Nadal Segalá. “Quando a Espanha começou a melhorar, a Europa começou a piorar. E 70% das exportações espanholas vão para a Europa.”

Segalá lembra que a Espanha sempre se recuperou de crises anteriores recorrendo à desvalorização de sua moeda. Isso estimulava as exportações, o que gerava investimentos, que por sua vez criavam emprego e, por fim, aumento da demanda interna. Com o euro, isso não é mais possível. A solução então foi essa desvalorização interna.

O problema agora é que a retomada é fraca, não está gerando novos investimentos e não cria empregos. “Não dá para cortar mais os salários. O modelo não gerou empregos, o que é um grande desafio”, diz o diplomata. Segundo ele, “o consumo interno vai se recuperar muito lentamente”, devido ao desemprego persistente, à retração do crédito e ao fim do modelo de crescimento baseado na construção civil.

O próprio ministro da Indústria, José Manuel Soria, admite que o desemprego cairá pouco, chegando ao final de 2015 na casa de 22% (leia “Se hoje a zona do euro não está em recessão, é por causa da Espanha”).

Essa recuperação tímida deixa ameaçado o governo do premiê Mariano Rajoy (do Partido Popular, de direita), que enfrenta eleições no final de 2015. Até lá, ele tem de convencer os espanhóis de que esse sacrifício valeu a pena.

____________________________________________________________________________________________________________________________________

"Se hoje a zona do euro não está em recessão, é por causa da Espanha"

Por Humberto Saccomandi | De Madri

A Espanha deixou de ser o problema da Europa, diz José Manuel Soria, ministro espanhol da Indústria, Energia e Turismo

A Espanha deixou de ser o problema da Europa, para ser parte da solução. É o que diz José Manuel Soria, o ministro da Indústria, Energia e Turismo da Espanha. Mas ele admite que nenhum país com desemprego tão elevado pode dizer que saiu da crise.

"Se a zona do euro não está em recessão hoje, é por causa do crescimento da economia espanhola. A economia espanhola deixou de ser o problema da economia europeia", afirmou Soria em entrevista a quatro jornais brasileiros, entre eles o Valor, em Madri.

Curiosamente, Soria faz o papel de ao menos cinco ministros no governo brasileiro, já que além de indústria, turismo e energia, ele cuida de comunicações e PMEs.

"Há três anos, no começo de 2012, economia espanhola apresentava uma série de desequilíbrios muito sérios. Havia quase uma unanimidade, dentro e fora do país, de que o governo deveria pedir socorro às instituições europeias", lembra Soria. "Não é que estávamos à beira do precipício. Já tínhamos caído, mas estávamos nos segurando por um galho."

"Saímos dessa situação por nós mesmos, com um esforço enorme da sociedade espanhola e com medidas muito difíceis e complicadas, com custo político. Vimos isso nas eleições europeias, nas quais o Partido Popular [do governo] teve um grande retrocesso. Também estamos vendo isso na queda do apoio ao PP nas pesquisas", diz ele.

A Espanha deve crescer 1,3% este ano, um dos ritmos mais fortes na zona do euro. A Itália deve continuar em recessão. França e Alemanha estão estagnadas.

"A taxa de desemprego ainda está muito elevada, em 23,5%. Nenhuma economia do mundo com essa taxa de desemprego pode dizer que já saiu da situação de crise. Mas também é verdade que a Espanha deixou a recessão para trás. Estamos crescendo há cinco trimestres seguidos", afirma, lembrando que em meados de 2012 o FMI declarava que a economia espanhola era a maior ameaça para a recuperação econômica do mundo.

O ministro não é otimista em relação ao elevado desemprego. Ele argumenta que, com a reforma trabalhista de 2012, o país hoje consegue criar empregos crescendo na faixa de 1%, quando antes era precisa crescer de 2% a 3%. Ainda assim, a retomada do emprego será muito lenta. "Achamos que, no final de 2015, o desemprego poderá está na faixa de 22%. É uma cifra muito, muito elevado, mas chegou a estar acima de 26%. Em economia são muito importantes os dados absolutos, mas também são importantes as tendências. O importante é que, ao final deste governo, tenha sido deixado para trás definitivamente a recessão e estejamos crescendo, que tenhamos deixado para trás a destruição de empregos e estejamos criando empregos."

"Não digo que a Espanha não tenha restrições na sua economia. Mas hoje essas restrições são muito mais exógenas que endógenas", diz Soria, referindo-se aos problemas geopolíticos entre a Rússia e a União Europeia, mas principalmente à desaceleração dos vizinhos europeus. "A restrição mais próxima é o que pode acontecer com as economias das quais somos muito dependentes, Itália, França, Alemanha, pois com essas economias fazemos grande parte do comércio exterior da Espanha."

"Não é que estávamos à beira do precipício. Já tínhamos caído, mas estávamos nos segurando por um galho."

Referindo-se à sua área, o ministro, que é originário das ilhas Canárias, destaca o papel do turismo na recuperação. "O turismo, que é o primeiro setor da economia espanhola, está tendo o seu melhor desempenho na história. Em 2013, tivemos uma cifra recorde de visitantes, com 60,6 milhões de turistas recebidos, trás apenas de França e dos EUA. Isso levou a um gasto dos turistas de € 59 bilhões. Este ano teremos perto de 63 milhões de turistas. Isso melhora a balança de pagamentos do setor externo."

Soria menciona ainda o plano do governo de reindustrialização da economia. "Estamos avançando uma agenda de fortalecimento do setor industrial, que busca aumentar o peso da indústria no PIB. Um dos pontos mais importantes é dar estabilidade regulatória à indústria e dispor de um sistema energético que dê segurança no abastecimento e que seja competitivo, além de sustentável", afirma.

A queda dos preços do petróleo ajuda esse plano, já que a Espanha importa 99,8% dos seus hidrocarbonetos. Segundo dados oficiais, o país gasta € 100 milhões por dia com importações de combustíveis. Por ano são € 37 bilhões, a um preço médio de US$ 100 o barril. "Agora estamos gastando menos. Mas essa dependência tem um impacto negativo na balança comercial e nas contas do setor externo. Para pagar isso, precisamos de financiamento do resto do mundo."

Com a reforma do setor de energia, o governo buscou estimular a prospecção de xisto e de petróleo no mar. Mas isso está em fase inicial. "Quanto à exploração do petróleo em alto mar, há uma questão cultural. Vocês no Brasil estão acostumados. Aqui, quando se fala nisso, há quem compare a uma bomba atômica, que vai acabar com o turismo."

Na área de telecomunicações, a Espanha defende um mercado único europeu, que estimule uma consolidação no setor. "Conseguimos fazer a união monetária, mas ela tem outra contrapartida, que é a união econômica, que não se realizou. Na Europa não há uma união bancária, não há um mercado único de energia, nem um mercado único de telecomunicações. Assim, à diferença dos EUA, onde há três grandes operadoras de telecomunicações, na Europa há mais de cem. Isso dificulta muito chegar a um mercado único", diz Soria.

No plano interno, a nova lei geral das telecomunicações visa estimular as empresas a investir mais em banda larga. "Estamos convencidos de que uma boa parte desse desenvolvimento industrial que temos pendente na Espanha virá da economia digital, da hiperconectividade. É preciso ter infraestrutura preparada para isso."

____________________________________________________________________________________________________________________________________

País tenta exportar a sua saída da crise, e Brasil é alvo

03/12/2014

No auge da crise econômica na Espanha, as opções para muitas empresas eram fechar ou crescer fora". A solução foi exportar.

É o que diz José Maria Blasco Ruiz, diretor de Projetos e Operações do ICEX, a agência espanhola para exportação e investimentos. "Hoje o número de empresas que exportam cresceu 40% em relação a cinco anos atrás. Em 2013 as exportações espanholas foram as que mais cresceram no mundo, depois da China. Essa foi uma mudança estrutural na economia espanhola, de diversificação, de busca de novos mercados."

"O futuro vai depender de passar o modelo de crescimento para o setor exterior", diz o o ministro da Indústria da Espanha, José Manuel Soria. Ele argumenta que o setor exterior costumava contar pouco no crescimento da economia espanhola. Só saíam ou exportavam as empresas muito grandes e, excepcionalmente, alguma média. "Por quê? Porque tivemos um ciclo econômico muito longo no qual o mercado interno era suficiente para que elas não tivessem que sair."

"Agora já temos casos de sucesso de empresas pequenas e médias que estão exportando. Há empresas de 20 funcionários que estão exportando para a China. E, surpreendentemente, empresas que estão exportando para a China tecidos fabricados na Espanha. Há empresas de peças automotivas, de peças aeroespaciais, industriais fundamentalmente, ou da indústria agroalimentar", afirma Soria.

"Nos últimos 12 meses, tivemos um comportamento muito dinâmico das exportações espanholas, mas com menos intensidade nos últimos meses porque está sendo condicionado pela situação das demais economias europeias", diz o ministro.

"As exportações são a ponte para a recuperação. A exportação sempre foi o gatilho da economia na Espanha. É um ciclo de exportação, investimento, emprego e consumo interno. Agora o que acontece é que a exportação está desacelerando, por conta da estagnação da economia europeia. Estamos buscando novos mercados, mas isso é um processo de longo prazo", afirma o economista Miquel Nadal Segalá.

Isso inclui o Brasil. A Espanha vendo tendo recentemente superávit comercial com o Brasil. Houve um crescimento das exportações espanholas. Já o grosso das exportações brasileiras é de commodities, que perderam valor nos últimos anos, além de insumos para construção civil, cujas vendas foram afetados com o colapso do setor na Espanha.

Ainda assim, os espanhóis querem incrementar esse comércio. "A Espanha exporta mais para Portugal do que para o Brasil. Por isso nos importa tanto o acordo UE-Mercosul", diz um alto executivo de uma multinacional espanhola, que trabalhou muitos anos no Brasil e que pediu para não ser identificado.

"Não é só a exportação que é prioridade da Espanha, mas também a internacionalização. Eles querem exportar suas empresas. As operações no exterior seguraram as grandes empresas espanholas durante a crise. Esse é um grande movimento impulsionado pelo governo", afirmou um diplomata estrangeiro em Madri.

Essa estratégia é corroborada por Jesus Gracia Aldaz, secretário de Estado para Ibero-América no Ministério das Relações Exteriores da Espanha. "O desafio agora é que empresas grandes [espanhola] ajudem a fomentar a entrada de PMEs [no Brasil]. Para PMEs, custo de entrada no Brasil é muito alto."

Gracia manda um recado para o governo brasileiro. "Gostaríamos que a política externa do Brasil tivesse um foco maior na UE, num acordo comercial."

Para ele, um eventual acordo UE-Mercosul poderia ter um formato similar ao acordo fechado pelos europeus com a Comunidade Andina. "É acordo quadro em que os países entram quando quiserem." Isso poderia ajudar a vencer a resistência da Argentina.

O diplomata espanhol acredita que os recentes escândalos de corrupção no Brasil não inibem o interesse das empresas de investir no país. "A corrupção tem um efeito negativo fundamentalmente interno. Em relação ao Brasil, a principal preocupação agora é com desaceleração econômica."