Com a arrecadação de tributos muito abaixo da esperada e sem cortar gastos, o governo decidiu flexibilizar regras orçamentárias e destinar parte do chamado superávit financeiro para custear despesas obrigatórias neste ano.
De acordo com o Tesouro, os recursos serão usados principalmente para pagar despesas da Previdência, cuja previsão de gastos cresceu mais de R$ 8 bilhões no último relatório de receitas e despesas.
Será a primeira vez que o governo usará esse tipo de recurso para o pagamento de despesas obrigatórias. A oposição já estuda medidas para impedir a mudança.
A manobra consta da Medida Provisória 661, publicada ontem, que também liberou o aporte de mais R$ 30 bilhões em créditos da União ao BNDES. A autorização ocorre menos de uma semana depois de o ministro indicado para a Fazenda, Joaquim Levy, sinalizar o fim desses repasses.
A disponibilidade de caixa apurada ao fim do exercício em cada fonte orçamentária entra no Orçamento do ano seguinte como superávit financeiro.
Essedinheiro pode vir tanto de uma fonte que superou a arrecadação prevista originalmente como de um fundo cuja despesa foi menor do que a esperada.
Até a MP, esses recursos poderiam serusadosapenasparacustearadespesa à qual era originalmente destinado ou desvinculado para o pagamento de encargos da dívida pública.
Agora, com a frustração na arrecadação, o governo terá acesso a uma receita que ele não teria para cobrir as despesas obrigatórias.
O subsecretário de Política Fiscal, Marcos Aucélio, não soube informar ovolumederecursosdosuperávitfinanceiro que será utilizado. Segundo Aucélio, a mudança não altera o cálculo de superávit primário neste ano. Ele não explicou, porém, como asreceitasobrigatóriasseriampagas sem a mudança na legislação.
Para o subsecretário, não há desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal, já que se está criando uma nova vinculação possível para o superávit financeiro. "[Fizemos isso] para adequar o Orçamento à necessidade de fonte de recurso para aquelas despesas que já estavam programadas.
Isso não tem efeito primário." Outras despesas obrigatórias, além da Previdência, deverão receber recursos do superávit financeiro.
Segundo Aucélio, ainda está sendo apurado se também será necessário, por exemplo, para gastos com pessoal.
Com a mudança, o governo poderá lançar mão desses recursos em outros anos, se necessário.
Ontem, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) afirmou que tomará providências contra a MP 661. Para ele, o remanejamento da utilização de recursos deveria ser feito por meio de lei complementar.
Aécio relacionou a proposta à leniência do Congresso com ações do governo, como o decreto que condiciona a liberação de emendas à aprovação da mudança da meta fiscal.
"É mais uma violência, porque, a partir do momento que o Congresso se permite ser violentado, obviamente o governo também se permite outros absurdos, como essa outra MP, também inconstitucional." O ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse ontem que o novo repasse de R$ 30 bilhões para o BNDES atenderá à demanda por máquinas, equipamentos, caminhões, ônibus e tratores. O repasse deverá ser feito neste ano. Mantega disse que a política deve continuar, mas ressaltou que os aportes ao banco foram menores nos últimos anos. "No próximo ano certamente será menor", emendou o ministro, sem responder se havia uma contradição entre o novo aporte e a política anunciada pelo futuro ministro, Joaquim Levy.
Em discurso ao ser indicado, na quinta-feira, Levy disse que o superávit primário do setor público consolidado deve alcançar valor de no mínimo 2% do PIB a partir de 2016, "desde que não haja ampliação do estoque de transferências do Tesouro Nacional para instituições financeiras públicas". Isso foi visto como um sinal de que o governo diminuiria esses aportes
Governo mostra que está sem dinheiro para pagamento de gastos obrigatórios
A grande novidade da MP 661 é a autorização que o governo quer ter para cobrir despesas primárias obrigatórias neste ano com o superávit financeiro do Tesouro, ou seja, com recursos depositados na conta Única do Tesouro no BC e que resultaram de superávits primários de anos anteriores. O apelo ao superávit financeiro significa que o governo não dispõe em caixa, no momento, de recursos livres (não vinculados a despesas) para bancar seus gastos obrigatórios. Para enfrentar a situação, o mais adequado seria o governo cortar os gastos não prioritários e, dessa forma, abrir espaço fiscal para o pagamento das despesas obrigatórias. Mas é o contrário o que está acontecendo. Na semana passada, a presidente Dilma assinou o decreto 8.367, ampliando em R$ 10 bilhões os gastos discricionários - aqueles que não são obrigatórios por determinação legal. A expansão ficou condicionada à aprovação do projeto de lei 36, que acaba com o limite de redução da meta fiscal deste ano por conta dos investimentos do PAC e das desonerações tributárias. Ao mesmo tempo que amplia despesas, Dilma pede autorização para cobrir gastos obrigatórios com economia fiscal de anos anteriores. Na conta única do Tesouro no BC também estão os saldos de recursos de fundos setoriais e de outras receitas vinculadas a gastos específicos e que não foram usados. Agora, com a MP 661, poderão ser usados para a cobertura de despesas obrigatórias neste ano. As únicas exceções são os recursos decorrentes de vinculação constitucional e de repartição de receitas destinadas a Estados e municípios. Em outubro, o saldo da conta única estava em R$ 474,2 bilhões. A Lei 4.320 de 1964, que estabelece normas para elaboração e controle dos orçamentos, permite uso do superávit financeiro apurado em balanço patrimonial do exercício anterior para abertura de créditos especiais e suplementares. Mas prevê que a abertura de créditos terá que ser feita por lei. A MP 661 autoriza o uso do superávit financeiro para cobertura de despesas obrigatórias no ano em curso, sem limitação, ou seja, não há necessidade de autorização legal. O uso do superávit financeiro da União para abrir créditos suplementares e especiais não é, portanto, novidade, e não significa descontrole orçamentário, como explicaram especialistas ouvidos pelo Valor. Isso porque a Lei de Responsabilidade Fiscal obriga o governo a fazer limitação de empenho e movimentação financeira, com o objetivo de alcançar a meta fiscal prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Ou seja, o governo teria que compensar o uso dos recursos do superávit financeiro, de forma que o primário previsto na LDO não fosse afetado. Sob esse aspecto, é irrelevante como as despesas serão cobertas, desde que o superávit primário seja obtido. O problema é que a MP 661 autoriza o uso do superávit financeiro para cobrir gastos obrigatórios no momento em que o governo propôs alterar a LDO para acabar com o limite de desconto da meta fiscal deste ano. Se aprovada a mudança, o governo não terá obrigação de compensar os recursos do superávit financeiro, pois não há meta a ser alcançada.
MP que autoriza concessão de R$ 30 bi ao BNDES pega Congresso de surpresa
Raymundo Costa
Vista como a primeira bola nas costas do ministro indicado da Fazenda, Joaquim Levy, a edição da Medida Provisória 661 pegou de surpresa o Congresso e deixou irritados os líderes governistas. A medida, segundo os aliados do governo, é mais uma demonstração da confusão que se estabeleceu no Palácio do Planalto para fechar as contas do exercício.
A MP autorizou a União a conceder um crédito de R$ 30 bilhões para o BNDES, na contramão do discurso adotado pelo novo ministro quando foi anunciado para a Fazenda. Na ocasião, Levy disse que poderia trabalhar com uma meta de superávit de 2% a partir de 2016, desde que não houvesse "ampliação do estoque de transferências do Tesouro Nacional para as instituições financeiras públicas".
Segundo Levy, nos últimos anos as transferências do Tesouro para os bancos públicos passaram a corresponder ao equivalente a quase um quarto da dívida mobiliária federal em mercado.
O crédito já vinha sendo negociado no Congresso, mas saíra da agenda a pedido da equipe do ministro Guido Mantega . O pedido de autorização entrou na agenda do Congresso dez medidas provisórias atrás, ou seja, na MP 651.
Quando a MP foi votada, governo e Congresso chegaram a um acordo para que a autorização fosse incluída na MP 656, que, entre outras coisas mais, trata de impostos para bebidas frias (refrigerantes) e ainda se acha em tramitação.
O relator da MP 656 é o senador Eunício Oliveira (PMDB-CE).
Estava prevista para ontem uma audiência para tratar do encaminhamento da votação. Mas o pedido da Fazenda para que o artigo relativo ao crédito fosse retirado da MP desmobilizou os congressistas, que já estavam com a atenção voltada para a votação do projeto que acaba com a meta do superávit fiscal. A audiência acabou cancelada.
Para os líderes, a retirada era coerente com discurso do ministro indicado da Fazenda. Mantega apenas se antecipava às diretrizes estabelecidas por Levy no discurso que fez ao ser anunciado como futuro ministro.
Para surpresa dos líderes, no entanto, o "Diário Oficial da União" de ontem saiu com a MP 661, editada sem consultas ao Congresso, autorizando o crédito de R$ 30 bilhões para o BNDES. A MP foi editada às pressas e até ontem ainda não havia chegado ao Congresso a exposição de motivos com a sua justificativa.
Para os líderes, a Fazenda correu com a autorização do crédito para não ter que tratar do assunto já na gestão de Levy. O governo tem outra explicação: o BNDES precisava do dinheiro "para ontem" e a MP 659 só tem previsão de votação para o fim do mês.
Fontes do Palácio do Planalto dizem que Levy tem conhecimento de todas as medidas encaminhadas ao Congresso. O Valor apurou quer o ministro indicado só não tomou posse antes para não ter de negociar medidas com as quais não concorda, como o projeto que acaba com a meta do superávit.