Beneficiários de doações das empreiteiras investigadas pela Operação Lava-Jato, parlamentares integrantes do discreto Comitê de Obras Irregulares (COI) rejeitaram nos últimos quatro anos praticamente todas as recomendações do Tribunal de Contas da União (TCU) para que empreendimentos problemáticos deixassem de receber recursos públicos. A "benevolência" de deputados e senadores deu sinal verde para que mais de R$ 30 bilhões em contratos suspeitos seguissem adiante.

Um levantamento feito pelo Valor com base nos últimos quatro relatórios anuais do comitê - que faz parte da Comissão Mista de Orçamento (CMO) - mostra que entre 2010 e 2013 o TCU recomendou a paralisação de 42 empreendimentos com indícios de irregularidades graves, mas somente um foi efetivamente bloqueado. O relatório referente a 2014 deveria ter sido debatido na semana passada, mas a reunião do comitê não atin- giu o quórum mínimo exigido.

Formado por deputados e senadores da Comissão Mista de Orçamento, o COI tem a função de receber as recomendações do tribunal de contas, ouvir os ministérios ou empresas estatais responsáveis e incluir (ou não) os empreendimentos no Anexo VI da Lei Orçamentária Anual (LOA), que é onde são mencionadas as obras irregulares que não devem receber recursos federais no exercício seguinte.

De 2010 a 2013, passaram pelo COI 39 parlamentares, dos quais 31 disputaram algum cargo nas últimas eleições. Desses, 19 receberam - diretamente ou por meio de seus partidos - R$ 7,85 milhões em doações das empreiteiras Odebrecht, Galvão Engenharia, OAS, Camargo Corrêa, UTC, Queiroz Galvão e Engevix - todas investigadas pela Lava-Jato. Do total de integrantes agraciados pelas construtoras, sete são do PT e do PMDB, legendas que controlam os trabalhos do COI nos últimos anos.

O comitê só ganhou atenção do governo em 2009 quando, acatando recomendações do TCU, mandou interromper o fluxo de recursos para importantes obras da Petrobras, como as refinarias Abreu e Lima (PE) e Getúlio Vargas (PR), além do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). O "susto" obrigou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a vetar a inclusão dos empreendimentos no Anexo VI da LOA de 2010. Desde então, o comitê foi devidamente "ocupado" para evitar novas surpresas.

Mesmo após o veto presidencial, o TCU continuou recomendando a paralisação de Abreu e Lima. Bilhões de reais em sobrepreço, contratos inadequados, projetos e licitações deficientes eram apenas alguns dos problemas apontados já no ano seguinte ao veto presidencial, mas não foram suficientes para o COI barrar a obra. A principal justificativa foi de que, "apesar do sobrepreço significativo", parar a refinaria seria mais prejudicial do que seguir com os trabalhos.

 

 

Desde que o governo começou a "passar o trator" no COI - como definiu um consultor do Senado na área de Orçamento -, apenas um novo empreendimento foi obstruído pelos parlamentares.

Orçadas em pouco mais de R$ 2 milhões, as obras de esgotamento sanitário na pequena cidade de Pilar, em Alagoas, tiveram os repasses bloqueados pelo comitê em 2013.

Os seis demais empreendimentos que passaram pelo Anexo VI nos últimos anos eram todos remanescentes de exercícios anteriores. Escândalos de corrupção, como o protagonizado pela estatal Valec, em 2011, contribuíram para a melhoria dos controles e, consequentemente, o encolhimento gradual da lista de empreendimentos com pedido de paralisação. Isso não impediu, entretanto, que o COI seguisse liberando todas as obras.

Além das unidades da Petrobras, outros projetos bilionários foram sistematicamente "ignorados" pelo comitê nos últimos anos, apesar dos seguidos alertas do TCU. A extensa lista inclui contratos que, somados, passam dos R$ 30 bilhões. À revelia do TCU, foram liberadas, por exemplo, as ferrovias Norte-Sul e Oeste-Leste, a BR-448/RS e o Canal do Sertão Alagoano. Todas essas obras têm ou tiveram contratos firmados com as construtoras investigadas pela Operação Lava-Jato.

As justificativas para não barrar as obras são variadas. A mais comum menciona supostos compromissos dos gestores - ministérios e estatais - de adotar os ajustes pertinentes ou prestar esclarecimentos ao tribunal de contas. O interesse social, o percentual de execução e os prejuízos resultantes da paralisação também são constantemente argumentados. Em alguns casos, os contratos suspeitos são rescindidos previamente, o que dispensa a necessidade de bloqueio orçamentário.

Ainda assim, a benevolência do COI frustra vários técnicos do TCU, incluindo seu presidente, Augusto Nardes. Ele pondera que o Congresso detém a prerrogativa de selar o destino das obras, mas reconhece que muito do trabalho da Corte de Contas acaba não tendo o resultado que a sociedade espera.

"Fizemos nossa parte e alertamos. A partir daí, é com o Congresso que, infelizmente, não acatou. É claro que tem um efeito de frustração para nós e para a sociedade", disse Nardes. Sob condição de anonimato, outro ministro apontou a falta de interesse político, mas também o despreparo técnico dos integrantes do comitê como as principais razões para a postura de não parar as obras.

Cada vez mais esquálida, a relação de empreendimentos obstruídos pelo COI nos últimos anos se restringe a projetos de porte bem mais reduzido, casos de uma avenida em Teresina, um complexo viário em Guarulhos (SP) e uma pequena barragem em Tocantins. Para as demais obras, o veredito é, invariavelmente, o mesmo. "Este Comitê propõe a não inclusão dos contratos de que se trata no Anexo VI do PLOA, sem prejuízo de voltar a examinar a matéria diante de novas informações prestadas pela Corte de Contas".

 

Empreiteiras defendem legitimidade de doações

 

Parlamentares que integraram nos últimos quatro anos o Comitê de Obras Irregulares (COI) argumentam que a opção por não paralisar as obras apontadas pelo TCU seguiu critérios estritamente técnicos e priorizou o interesse do país. Já as principais empreiteiras mencionadas defenderam a legitimidade das doações eleitorais realizadas.

"O princípio do COI não era paralisar obras, pelo contrário. Nossos empenhos eram concentrados na apuração de possíveis irregularidades e na promoção de entendimento entre os responsáveis pelas obras e o TCU, para que os serviços fossem liberados o quanto antes e o Brasil tivesse o desenvolvimento alavancado", disse o deputado Carlos Brandão (PSDB), eleito este ano vice-governador do Maranhão na chapa de Flávio Dino (PCdoB).

O petista Weliton Prado (MG), que recebeu este ano quase R$ 200 mil das empreiteiras Odebrecht e Camargo Corrêa, disse que, no ano em que integrou o COI, "o relatório aprovado seguiu 100% os critérios técnicos definidos e adotados em anos anteriores pela Comissão de Orçamento".

Em nota, a Camargo Corrêa esclareceu que não doou recursos diretamente ao parlamentar, mas sim ao PT, e que a empresa tem prestado esclarecimentos ao TCU e às autoridades para o esclarecimento dos fatos referentes à Operação Lava-Jato.

Também em nota, a Odebrecht informou que promove doações de campanha "dentro de uma visão democrática e em respeito à Legislação brasileira, sem adotar posição partidária nem ideologia". Por meio de suas assessorias, as construtoras UTC e OAS disseram apenas que todas as doações são realizadas de acordo com a legislação vigente. Queiroz Galvão, Engevix e Galvão Engenharia não responderam até o fechamento desta edição, assim como os demais parlamentares mencionados.

Defensor de uma repactuação dos contratos das empreiteiras investigadas, o presidente do TCU, Augusto Nardes, disse não descartar a hipótese de que, se necessário, as empresas sejam consideradas inidôneas, o que as impedirá de assinar contratos com o poder público. "A repactuação é uma primeira fase. Não quer dizer que não podem ser declaradas inidôneas", disse.

 

Para Janot, é difícil haver acordo sem culpa por ilícitos

 

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, classificou ontem como "muito difícil" um acordo entre o Ministério Público e as empreiteiras citadas na Operação Lava-Jato sem que os executivos dessas empresas assumam a culpa pelos atos revelados nas investigações.

"Acho muito difícil a possibilidade de um acordo em que as pessoas físicas dessas empresas não assumam a culpa pelos atos ilícitos que estão sendo investigados", disse Janot, ao chegar à sessão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ele confirmou que foi procurado na terça-feira, mais uma vez, por advogados de empreiteiras interessadas em negociar acordos de delação premiada. O procurador indicou aos advogados que, como os executivos dessas companhias não têm foro privilegiado, as conversas devem se dar diretamente com os procuradores responsáveis pela Lava-Jato em Curitiba, na primeira instância do Judiciário.

"Fui procurado e, primeiro, indiquei que o caminho correto seria procurar os meus colegas da força-tarefa no Paraná. A parte que me toca é exatamente a parte com prerrogativa de foro. Quem não tem prerrogativa de foro tem que tratar em primeiro grau", disse Janot.

Segundo o procurador, a sondagem foi feita por "vários advogados", que teriam dito ser "muito difícil" para as pessoas físicas reconhecer culpa. A proposta de uma empreiteira incluía, por exemplo, o pagamento de multa e a previsão de períodos sem participar de licitações ou fazer doações para campanhas eleitorais, mas não a confissão de crimes por parte de pessoas físicas.

Janot apontou que os responsáveis pelos acordos com as empreiteiras são os procuradores que atuam em Curitiba, mas voltou a expressar sua opinião: "No meu entendimento, falando teoricamente sobre o caso, a partir do momento que não se quer reconhecer culpa, não tem possibilidade de acordo".

O procurador também falou que espera receber, ainda nesta semana, a íntegra da delação premiada do doleiro Alberto Youssef. O documento será encaminhado pelo Ministério Público Federal em Curitiba.

Ao receber os depoimentos, Janot poderá pedir a abertura de inquéritos contra políticos citados nas delações feitas por Youssef e pelo ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, que citam dezenas de políticos.

O procurador evitou estimar, entretanto, quando se posicionará sobre novos inquéritos. "[A delação] ainda não chegou às minhas mãos, deve chegar nesta semana ainda. Tenho que abrir esse pacote para ver o que tem lá dentro, porque até agora não sei."

A delação de Costa já foi homologada pelo ministro Teori Zavascki, relator dos procedimentos da Lava-Jato no STF, e analisada por Janot. Agora, o mesmo será feito quanto à delação de Youssef. O procurador já indicou que, ao receber o documento, proporá a cisão das investigações entre o STF, para pessoas com foro privilegiado, e a primeira instância, para acusados sem prerrogativa de foro.

"Estamos aguardando o Youssef. Juntando os dois [as delações do doleiro e do ex-diretor da Petrobras] a gente tem a visão de contexto, de conjunto, para definir a estratégia do processamento aqui perante o STF", disse Janot.

Questionado sobre a possibilidade de abrir inquéritos contra políticos ainda neste ano, ele disse que o momento dependerá do conteúdo da delação de Youssef. "Eu não sei o que vem. Mas darei prioridade a esse trabalho com certeza."