Título: A multiplicação de um problema
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Fonte: Correio Braziliense, 06/07/2011, Opinião, p. 15

Osmar Mendes Paixão Côrtes Advogado, é doutor em processo civil pela PUC-SP e mestre em direito público pela UnB Fernando Hugo R. Miranda Advogado, é professor do UniCeub e mestre em direito do trabalho pela USP

Nesta última semana, o Senado aprovou o Projeto de Lei do Senado nº 77/2002, que acrescenta um capítulo na CLT que versará sobre a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT), alterando, ainda, dispositivos da Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93). O texto será encaminhado à sanção presidencial. É possível dizer que a inovação legislativa foi motivada pela intenção de estimular empresas a resolver mais rápido pendências relativas a obrigações trabalhistas já definitivas. Seriam elas: i) obrigações afirmadas em decisão transitada em julgado; ii) obrigações ajustadas em acordos perante o Ministério Público do Trabalho ou em Comissões de Conciliação Prévia. A CNDT certificará que as obrigações nessas condições já foram cumpridas em relação a todas as filiais da empresa, apresentando-se como documento essencial à habilitação da empresa em um processo de licitação.

Embora não haja dúvidas sobre a nobreza da iniciativa ¿ é inegável o gargalo na execução dos créditos trabalhistas ¿, impõe-se o exame sobre sua efetividade. A medida apresenta-se como meio eficiente de combate ao problema, próprio da falta de infraestrutura na administração da Justiça? Considerando o panorama dos processos afetados pela iniciativa, a resposta parece ser negativa por diversas razões. É criada condição de habilitação no processo de licitação. É ela a fase inicial do certame, no qual é verificado pela administração pública se as empresas possuem condições materiais de cumprir com o objeto da licitação.

O objetivo natural da fase de habilitação é impedir que empresas sem condições de prestar o serviço vençam o certame e, no curso do contrato, deixem de cumprir com o que se obrigaram, gerando prejuízos à contratante, ou seja, aos contribuintes. É preciso atentar que o texto se distancia do objetivo natural da habilitação, criando verdadeiro objetivo artificial, estranho a sua finalidade. Para tentar resolver o problema das execuções trabalhistas, cria-se fator de burocratização de um processo de licitação já abarrotado de procedimentos incoerentes com sua finalidade.

A previsão mais realista quanto à eficácia da nova lei aponta para o sentido de um aprofundamento da judicialização das licitações, enfraquecendo a boa gestão. A lei, embora bem-intencionada, repita-se, deixou de observar que, segundo o devido processo legal, qualquer pessoa ¿ física ou jurídica ¿ tem o direito constitucional de defender-se também na fase de execução de um processo judicial. Não há espaço, por isso, para discriminações em procedimentos públicos quando uma empresa optar por exercer um direito de defesa processual que lhe seja garantido. Segundo as disposições processuais, após o trânsito em julgado da decisão, é aberta a fase de cálculos para indicação de um valor a ser pago.

Tal procedimento ¿ liquidação ¿ perdura, no mínimo, por um mês (prazo de 10 dias às partes e ao INSS). Como, então, proibir uma empresa de participar de um certame em decorrência da existência de uma só ação, no país, em que ainda se desenvolva tal procedimento? E se a empresa contar com variadas ações, como conseguir uma janela no tempo em que todas elas estejam devidamente liquidadas? Note-se que, nesta fase, não há necessidade, segundo a lei, de se oferecer bens em garantia, única situação que autorizaria a participação de empresas com processos em execução no certame, segundo o texto aprovado.

A liquidação foi, simplesmente, desconsiderada pelo projeto de lei. Vale anotar que também foi esquecida a possibilidade, afirmada e confirmada por nossas cortes trabalhistas, da defesa em sede de execução sem o oferecimento de bens em garantia (exceção de pré-executividade). Acrescente-se ainda que, de acordo com o texto aprovado, o inadimplemento de obrigações ajustadas com o Ministério Público (MPT) também tornaria a empresa inelegível a uma licitação. Não se sabe, contudo, como será a questão operacionalizada: a partir da denúncia de descumprimento apresentada pelo MPT, ou apenas com o trânsito em julgado da decisão que examinará tal denúncia.

A incerteza é fator de desestímulo à realização de tais ajustes. Há, portanto, situações legais de defesa que, olvidadas pelo novo texto, não o serão pelas partes ou pelo Poder Judiciário, que certamente será chamado a se pronunciar quando uma empresa deixar de ser habilitada em tais condições. Eis o aumento da judicialização dos procedimentos licitatórios que, como adiantado, parecer ser irremediável efeito colateral da vigência do novo texto. Multiplica-se o problema da falta de infraestrutura da administração da Justiça.