Pelo menos 81 parlamentares federais que não se reelegeram - e, portanto, não têm mais mandato desde o início da nova Legislatura - perderam o foro privilegiado e deixarão de responder processos no Supremo Tribunal Federal (STF). As ações e inquéritos irão para outras instâncias, tendo de ser analisados por outro juiz. Ao todo, 228 deputados e 23 senadores deixam de ser parlamentares, alguns tendo renunciado semanas ou meses antes para assumir outros cargos. Deles, quatro senadores e 77 deputados eram processados ou investigados no STF.

O ex-presidente do STF Carlos Velloso é crítico da prerrogativa de foro, que leva a constantes mudanças de juizado. Segundo ele, essa "dança de foro" favorece a impunidade. Velloso destacou ainda que o STF tem "um mundo de ações" para julgar, não podendo parar para analisar uma ação penal. É uma referência ao julgamento do mensalão, que praticamente monopolizou os trabalhos da Corte no segundo semestre de 2012.

— Isso é ruim. Não é bom. É decorrência do mal maior que é a existência do foro privilegiado. Tem casos inclusive que o processo vem para o Supremo, depois baixa novamente, sobe novamente. Quer dizer, é uma dança de foro. O ideal seria que voltássemos à situação originária que integra a história da República: o foro comum do juiz natural de primeiro grau — afirmou Velloso.

Ayres Britto, outro ex-presidente do STF, tem um ponto de vista diferente. Segundo ele, a mudança de instância não necessariamente vai atrasar o processo.

— Não arriscaria a dizer que vai procrastinar, dificultar o andamento do processo. Isso vai depender do juiz, do promotor, dos advogados (envolvidos no caso), talvez mais do que dos fatos — disse Ayres Britto.

O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Alexandre Camanho, afirmou que as recentes condenações de autoridades feitas pelo STF não permitem um juízo definitivo sobre vantagem ou desvantagem do foro privilegiado. Ele observou que a tramitação de processos no STF é mais lenta, mas a possibilidade de recursos é mais limitada. Já a eventual maior celeridade na primeira instância pode ser anulada diante da infinidade de recursos posteriores.

— É preciso discutir democraticamente se faz bem ou não para o país a existência de foro e não deixar que situações momentâneas, como uma ou outra composição do STF interfiram nessa avaliação — afirmou Camanho.

O levantamento desconsiderou processos já arquivados e também aqueles para os quais já houve absolvição e o Ministério Público não vai recorrer, embora formalmente ainda não tenham sido extintos. Processos tratando de crimes de opinião, como calúnia, injúria e difamação, também não foram levados em conta. Esses processos muitas vezes refletem disputas políticas entre os parlamentares e seus adversários.

Há na lista crimes de homicídio e trabalho escravo. No primeiro caso, estão os agora ex-deputados Júlio Campos (DEM-MT), Alexandre Roso (PSB-RS) e Paulo Cesar Quartiero (DEM-RR). Respondem por trabalho escravo João Lyra (PSD-AL), Camilo Cola (PMDB-ES) e Urzeni Rocha (PSD-RR). A maior parte dos procedimentos é por crimes contra a administração pública, como peculato, corrupção e contra a lei de licitações, ou eleitorais.

Dos 81 ex-parlamentares que perdem o foro, 66 responderão às acusações na primeira instância, da mesma forma que os demais cidadãos. Dois foram eleitos governadores e serão processados no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os demais ocupam cargos que os permitem responder perante os tribunais de justiça de seus estados. Os parlamentares são de 19 partidos e somente no estado de Sergipe não foi encontrado ninguém nessa situação.

Quartiero é quem tem o maior número de pendências no STF. São sete ações penais, fase processual mais adiantada em que o acusado já pode ser chamado de réu, e cinco inquéritos, quando a investigação está ainda no começo. Ele foi eleito vice-governador de Roraima e responderá as acusações no TJ local. Uma das investigações aparece no sistema da Corte como homicídio. Seu advogado, Ticiano Figueiredo, afirmou que a acusação é de tentativa de homicídio. De acordo com ele, o MP apontou Quartiero como responsável em um conflito entre arrozeiros e indígena na época da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. No confronto, um indígena foi alvejado, mas não veio a falecer. Figueiredo afirmou que seu cliente não estava na região e não tem qualquer ligação com aquele confronto.

A defesa de Quartiero informou que as ações são fruto de perseguição política por sua liderança contra a demarcação. Disse que ele foi absolvido de diversas acusações na Corte e espera o mesmo destino para as demais pendências. Entre elas estão duas ações por sequestro e cárcere privado. Ambas, segundo a defesa, também são relativas aos conflitos mencionados e o deputado não teria envolvimento.

A acusação de homicídio contra Júlio Campos também envolve conflito por terra. Ele é acusado de mandar matar duas pessoas em 2004 para se apropriar de terras em Mato Grosso que seriam ricas em diamante e outras pedras preciosas. Procurada pelo GLOBO, a assessoria disse não ter conseguido localizar o parlamentar. A defesa de Júlio Campos negou que ele tenha participação no crime.

 

Roso, por sua vez, é médico e a acusação contra ele é pela morte de cinco pessoas por complicações decorrentes de cirurgias de gastroplastia realizadas entre 2001 e 2003. Rafael Favetti, seu advogado, disse que a defesa está tranquila e esperando o fim da perícia pedida. Segundo ele, não há nexo entre as cirurgias feitas e as mortes.

— Qualquer pessoa está na mira quando vira político. A gente acredita que essa situação vem muito da opção de ter se tornado político — disse Favetti.

As acusações de trabalho escravo são todas relativas à possível exploração de trabalhadores em fazendas. João Lyra já foi o parlamentar mais rico do Congresso e o grupo de usinas que leva seu nome está em situação falimentar. O coordenador jurídico do grupo, Flávio Moura, disse não conhecer ainda o detalhe das acusações contra o usineiro, mas nega que tenha ocorrido qualquer condição análoga a escravidão nas fazendas de Lyra.

— Essa questão de trabalho escravo se vulgarizou. O Ministério Público passou a entender que salários atrasados ou outras situações seriam análogas. As empresas passam processo falimentar e tem dificuldades financeiras, mas a gente tem a consciência que o doutor João Lyra não contribuiu direta ou indiretamente para qualquer situação de trabalho escravo — afirmou Moura.

O agora ex-deputado Jânio Natal (PRP-BA), com três ações penais e sete inquéritos aparece logo atrás de Quartiero. Entre os crimes atribuídos a ele estão sonegação de contribuição previdenciária, falsidade ideológica, peculato, quadrilha e violação da lei de licitações. O terceiro colocado no ranking de maior número de processos é Lira Maia (DEM-PA), com acusações como crime de responsabilidade, crime contra a lei de licitações e compra de votos. A maioria é relativa ao tempo em que foi prefeito de Santarém (PA), entre 1997 e 2004.

— Tudo tem como origem a motivação política local. Não me preocupo com essas ações. Já fui absolvido de várias outras e para mim não faz diferença ir para a primeira instância – disse Lira Maia.

São sete os ex-parlamentares do Rio de Janeiro na lista. Entre eles está Anthony Garotinho (PR-RJ), que fracassou na tentativa de voltar ao governo do Rio de Janeiro no ano passado. Ele é réu em uma ação penal que trata de corrupção passiva, quadrilha e lavagem de dinheiro. Responde ainda a um inquérito por peculato.

Também do Rio, Adrian (PMDB-RJ) é investigado por crimes eleitorais em um inquérito. Dr. Paulo César (PR-RJ) responde a inquérito para apurar crimes da lei de licitações e contra a paz pública. Rodrigo Bethlem (PMDB-RJ) responde a inquérito por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Vitor Paulo (PRB-RJ) é réu em ação penal por crime de falso eleitoral, que consiste na omissão de informação ou inclusão de dados falsos para fins eleitorais. Walney Rocha (PTB-RJ) é réu por corrupção passiva e investigado em outro inquérito pelo mesmo crime.

Eurico Júnior (PV-RJ) é investigado por crimes na lei de licitações. O ex-deputado informou que a acusação foi motivada pela licitação que resultou na venda da folha de pagamento dos servidores de Vassouras (RJ), cidade da qual já foi prefeito, mas negou irregularidades.

— O procedimento foi normal, abrimos a licitação para que os bancos pudessem ter a folha de pagamento - afirmou Eurico.

Entre os ex-senadores não reeleitos, há três com processos pendentes: Cícero Lucena (PSDB-PB), Gim Argello (PTB-DF) e Jayme Campos (DEM-MT). Lucena responde a quatro inquéritos por violação da lei de licitações, crime de responsabilidade e crimes ambientais. Argello tem também quatro inquéritos no STF, que incluem os crimes de violação à lei de licitações, corrupção ativa, peculato e lavagem de dinheiro.

Jayme Campos é réu em uma ação de peculato e violação da lei de licitações, por problemas constatados em um convênio da Secretaria de Saúde de Mato Grosso, estado que governou entre 1991 e 1994. Há ainda três inquéritos em que é investigado, abrangendo crimes da lei de licitações, além de crime de responsabilidade e crimes do Sistema Nacional de Armas. O advogado de Campos, João Celestino, disse que as acusações são frutos da disputa política.

— São atribulações políticas de um homem de 65 anos e que dedicou 45 anos à vida pública. Fazer o quê? Num país litigioso, não teria como ser diferente. Ele já respondeu a 20 processos e nunca foi condenado. E não vai ser — afirmou o advogado.

Há ainda o caso do ex-senador Wellington Dias (PT-PI), que tinha mandato até o ano passado, mas se elegeu governador. Ele é réu numa ação penal que apura sua responsabilidade sobre as nove mortes provocadas pelo rompimento da barragem Algodões, no Piauí, em 2009, quando também era governador. O caso irá para o STJ. No processo, é acusado de autorizar a volta de famílias que tinham sido removidas pelo perigo representado pela barragem. Mas a assessoria jurídica do governo do Piauí diz que a autorização se referia a famílias que moravam em áreas fora de risco. Os mortos seriam, na verdade, pessoas que desrespeitaram as ordens de remoção.

 

Além de Dias, o STJ também será o local de julgamento do governador de Alagoas, Renan Filho (PMDB-AL), que até o ano passado era deputado. Ele é investigado em um inquérito sobre crimes de responsabilidade, contra a lei de licitações e de improbidade administrativa da época em que foi prefeito de Murici (AL). O GLOBO não conseguiu contato com a secretaria de comunicação do estado nem conseguiu localizá-lo por telefone celular.

O ex-deputado Antônio Andrade (PMDB-MG), vice-governador de Minas Gerais, responde por falsidade ideológica por fatos relacionados ao financiamento da campanha municipal de 2012. A defesa rebate dizendo que as contas do PMDB mineiro naquela eleição foram aprovadas. O vice-governador de São Paulo, Márcio França (PSB), foi alvo no STF de pedido de inquérito por crime tributário. Segundo a assessoria, a acusação tinha por base uma declaração de imposto de renda feita de forma incorreta por sua mãe. Ela teria colocado como doação a França e seus irmãos um benefício que foi recebido como herança. Os irmãos já foram absolvidos e a defesa acredita que o mesmo ocorrerá com França.

O GLOBO não obteve retorno dos deputados Garotinho, Adrian e Jânio Natal, e do senador Gim Argello. Os deputados Vitor Paulo, Walney Rocha, Camilo Cola e Urzeni Rocha não foram localizados. O GLOBO mandou um e-mail para a defesa de Dr. Paulo César, mas não obteve resposta. Rodrigo Betlhem e Cícero Lucena não quiseram comentar as acusações.