A solução para a mudança do clima passa pela descarbonização do sistema energético mundial. Quem defende essa ideia é o economista queniano Adnan Z. Amin, 57 anos, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Renovável (Irena). Ele diz que, se mais de 80% das emissões de CO2 produzidas por atividades humanas vêm da queima de combustíveis fósseis, aumentar o uso de energias renováveis é o caminho mais lógico para se enfrentar o desafio.

Amin construiu sua carreira nas Nações Unidas e é economista especializado em desenvolvimento sustentável. Dirige a Irena desde 2011, agência intergovernamental com sede em Abu Dhabi e referência nos estudos das energias renováveis no mundo, embora ainda desconhecida no Brasil.

O estudo "REthinking energy", por exemplo, estima que em 2030 a população global deva ter mais de 8 bilhões de pessoas e demandar 60% mais eletricidade do que hoje. O relatório encoraja a adoção rápida de tecnologias de geração de energia renovável como "a rota mais viável para se reduzir as emissões de carbono e evitar mudanças climáticas catastróficas."

Há um bom pano de fundo para estimular esse caminho. Nos últimos cinco anos, o preço da energia solar fotovoltaica caiu 80%. Os preços de energia eólica em terra (onshore) estão 30% menores. Em 2014, investiu-se US$ 260 bilhões em renováveis no mundo, um aumento de 15% sobre 2013. A capacidade instalada global das energias renováveis cresceu 85% na última década e chegou a 1.700 GW em 2013. "Com a tecnologia e o custo que as renováveis têm hoje, podemos fazer uma mudança dramática enquanto construímos uma economia mais forte e sistemas de geração de energia mais saudáveis e limpos", diz Amin.

Ele propõe que o Fundo Climático Verde - com recursos de US$ 10 bilhões, até agora -, criado nas negociações do acordo climático, seja transformado em um mecanismo de empréstimo atraente que financie energias renováveis. "Precisamos de um novo paradigma na cooperação internacional para buscar diminuir o custo financeiro das tecnologias", diz. "Essa pode ser a solução para a mudança do clima", acredita. Para Amin, a transformação do setor energético irá ocorrer "com ou sem um acordo climático global".

Renováveis podem usar 200 vezes menos água do que as fontes convencionais de geração de energia e ser uma solução para grandes cidades. Conceitos modernos, como "Nexus" conduzem estudos de pesquisadores que analisam, ao mesmo tempo, as conexões entre produção de energia, de água e de alimentos.

O Brasil ainda não faz parte da Irena, que em quatro anos tornou-se o maior fórum mundial de promoção das renováveis, um clube que já reúne 151 países mais a União Europeia e tem outros 20 prestes a ingressar.

O queniano diz que as energias renováveis estão "virando o jogo", com modelos de geração distribuída e consumidores tornando-se produtores de energia. "O fundamental é vermos como o setor energético, desenhado como um modelo de geração para os séculos XIX e XX, irá evoluir para lidar com a realidade do século XXI, que é limpa, de baixo carbono, de geração descentralizada e que está mudando a cena em muitas partes", diz. "O velho modelo estagnou."

Amin falou a um grupo de jornalistas na semana passada, nos Emirados Árabes Unidos, durante a Semana de Sustentabilidade de Abu Dhabi (ADSW). Dezenas de especialistas, investidores, empresários e representantes de governos estiveram no evento que reuniu 30 mil participantes do setor de energia, 5 mil do setor de água e 800 empresas de 40 países, mas sem participação expressiva brasileira. Veja trechos da entrevista:

Como funciona a Irena?

Adnan Z. Amin: Irena é um mecanismo intergovernamental internacional baseado em um novo modelo de cooperação flexível, moderno, inclusivo e que busca encontrar soluções para o futuro. Estamos sendo reconhecidos pela comunidade internacional como uma ideia cujo tempo chegou. Viramos o parâmetro das mudanças que estamos assistindo.

A capacidade instalada de energia renovável no mundo cresceu 85% em dez anos, segundo a Irena. Como se explica esse desempenho?

Amin: As oportunidades são imensas, as mudanças, transformadoras. Estamos começando a ver acontecer coisas com as quais trabalhamos há anos, de um jeito que jamais imaginamos.

Como o quê, por exemplo?

Amin: Estamos em um momento de mudança fundamental e de transformação nos sistemas globais de energia. As renováveis estão tendo papel cada vez mais importante no mix energético global. Nos últimos quatro anos, a capacidade tem crescido ano a ano e atingiu 1.700 GW em 2013. Registramos uma capacidade adicional de 120 GW de renováveis no sistema global em 2013. Não temos ainda os números de 2014, mas os sinais são de que os 120 GW serão superados. Os investimentos também vêm crescendo. Em 2014, investiram-se US$ 260 bilhões em renováveis, aumento de 15% sobre 2013 - e este é um tempo de austeridade financeira para muitos governos. As energias renováveis estão virando o jogo.

Virando o jogo?

Amin: A geração de energia foi dominada pelo modelo centralizado de governança, com grandes empresas que dominam a produção de energia, são donas da rede e gerenciam a distribuição. Nos últimos anos, com o surgimento da geração distribuída, isso mudou. Consumidores começaram a tornar-se produtores. Há mais e mais empresas querendo participar disso, como a Ikea [empresa escandinava de móveis e acessórios] ou o Google, que têm a ambição de produzir sua própria energia do sol e do vento, assim como muitas outras que estão chegando.

Esse processo, iniciado na Alemanha há 20 anos, vem sendo copiado no mundo?

Amin: A maior parte da geração de eletricidade na Alemanha vem de renováveis e não pertence a uma empresa centralizada, mas é pulverizada entre indivíduos, comunidades, lojas, empresas. O modelo descentralizado criou um novo ambiente pelo qual o setor energético pode evoluir no futuro. A maior indicação disso é que algumas das grandes empresas centralizadas que investem em energia convencional começaram a perder dinheiro. Há poucos meses, uma das maiores, a E.On alemã, anunciou a divisão de seu negócio em dois, disse que irá se concentrar em renováveis e que a parte convencional e nuclear ficará de lado. É uma mudança fundamental. Hoje, em cada país, há casos de sucesso em energias renováveis. Todos sabem que são uma possibilidade e muitos países já conseguiram 5%, 10% ou 15% de participação de renováveis na matriz.

Quais os desafios dessa transformação?

Amin: O fundamental é vermos como o setor energético, desenhado como um modelo de geração de energia para os séculos XIX e XX, irá evoluir para lidar com a realidade do século XXI, que é limpa, de baixo carbono, de geração descentralizada, lucrativa e que está mudando a cena em muitas partes do mundo. Isso é crucial para encontrarmos novas maneiras de ter crescimento econômico, emprego e prosperidade em uma era de austeridade financeira. O velho modelo estagnou. Precisamos de novas polaridades de crescimento.

Dizem que energias renováveis são muito caras.

Amin: Analisamos qual o real custo dessas tecnologias, o que exatamente está acontecendo em milhares de projetos que vêm sendo implantados ao redor do mundo. O custo está caindo dramaticamente. Nos últimos cinco anos, nosso relatório mostra, vimos os painéis solares reduzirem seu custo em 80%. Os preços de energia eólica em terra [onshore] caíram 30% e assistimos ao aumento na produtividade de biocombustíveis, que já são competitivos em alguns mercados. Geotérmica e hidrelétrica são as melhores opções, em preço, onde o recurso existe.

Na assembleia da Irena, neste ano, mudança climática esteve pela primeira vez em destaque. Por quê?

Amin: Nesse assunto crucial a posição das energias renováveis nunca foi melhor. Ao mesmo tempo, as forças convencionais, que são extremamente bem financiadas e organizadas, não irão aceitar a mudança doméstica de seu modelo de negócios. Vamos ter que criar condições e mecanismos para que a mudança aconteça e que todos possam ganhar com isso.

O senhor pode ser mais claro?

Amin: Esse é o ano da mudança do clima. O sistema energético global responde por 80% das emissões de gases-estufa, tanto em termos de geração de energia como de transporte, para resfriar e aquecer ambientes e cozinhar. Portanto, o jeito mais lógico de enfrentar a mudança do clima é descarbonizando energia. Temos uma negociação internacional de mais de 20 anos em curso com impasses em muitos pontos e temos a possibilidade de fazer investimentos onde todos podem se beneficiar da mudança tecnológica e de um momento positivo de crescimento. Com a tecnologia e o custo que as renováveis têm hoje, podemos fazer uma mudança dramática enquanto construímos uma economia mais forte e um sistema de geração de energia mais saudável e limpo. Temos projetos na África, América Central, Oriente Médio, em pequenas ilhas que querem fazer a transição com 100% de energia renovável. A mudança está chegando e será dramática.

Mas o problema é a transferência de tecnologia. O senhor acha que irá ocorrer, algum dia?

Amin: Venho de um país em desenvolvimento e vejo um tipo de crença ingênua nesse debate. Muita gente pensa que transferência de tecnologia, de maneira muito simplista, é pegar uma excelente tecnologia, ser legal com alguém e dizer, vá em frente, use-a. Este não é o mundo em que vivemos. Pessoas investem milhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento e quando chegam a um ativo intelectual, querem ganhar dinheiro com ele. O grande desafio que temos é criar modelos de negócios em que todos ganhem. Tecnologia é resultado de investimentos. Funciona assim e não porque alguém acha que tem que ser doada.

Políticas públicas são fundamentais para o desenvolvimento das energias renováveis?

Amin: Políticas nacionais são chave para o desenvolvimento do setor. Não temos investimento público para criar benefícios em renováveis no nível que necessitamos. O que é muito claro é que temos que ter investimento privado, mas os governos têm papel-chave em desenvolver políticas e legislação. Há um melhor entendimento de quais modelos funcionam. Fizemos uma análise em 2014, sobre a evolução das políticas para renováveis. Tivemos uma situação difícil, com a crise econômica e governos que estavam comprometidos com o modelo "feed-in tariff" [sistemas que preveem pagamentos para consumidores de energia renovável que passam a gerar também] por vários anos e ficaram em dificuldades. Isso teve impacto negativo, alguns saíram do negócio. Temos que ter melhor noção de qual política funciona.

O senhor diz que há alguns "cartões postais do futuro". O que quer dizer? Pode citá-los?

Amin: Alguns leilões estão entregando eletricidade de renováveis com preços abaixo do gás e carvão. O exemplo mais recente é o de Dubai, com a oferta pública de 100 MW de energia solar fotovoltaica comprada por uma empresa da Arábia Saudita por US$ 0,06 por quilowatt/hora, a mais baixa que já tivemos. Esse é um cartão postal do futuro.

Qual o impacto no mercado desse leilão? E como vê a crise que afeta algumas empresas europeias?

Amin: O mercado ficou abalado com o leilão. Isso mostra que se tivermos o modelo de negócios adequado, pode-se diminuir o custo da transição e escolher a melhor tecnologia. O problema das empresas europeias, que têm incrível capacidade e conhecimento e são bastante competitivas, é que a demanda nesses países está estagnada e o mercado está crescendo em economias em desenvolvimento. Elas têm que ser encorajadas a competir nesses mercados.

Quando se vê o que está acontecendo com o preço da energia solar e dos combustíveis fósseis não é difícil imaginar sinais de ruptura no mercado e fazer paralelos com casos como a Kodak ou fitas cassete. Como o senhor vê esse momento?

Amin: O chamado para despertar começou. Tem havido um debate grande em instituições financeiras no mundo, incluindo o Goldman Sachs, por exemplo, sobre o que irá acontecer com as reservas de combustíveis fósseis que estão no solo hoje. São ativos que nunca serão usados? Pessoas que investirem em petróleo e gás que estão no solo correm o risco de não ter ativos no futuro? Há uma grande discussão sobre "stranded assets" [ativos imobilizados] no momento. Também há um grande movimento de desinvestimento em petróleo e gás. Muitos fundos estão começando a anunciar que estão deixando esses investimentos. A história não contada do petróleo é que o custo de capital dos investimentos para exploração subiu muito. Em muitos mercados, petróleo barato é antieconômico. Há empresas perdendo dinheiro e acionistas preocupados. Grandes empresas que operam no modelo centralizador de energia convencional estão perdendo dinheiro e valor. Estamos esperando para ver qual será a primeira das grandes produtoras de petróleo a sair do carbono. Há uma grande mudança acontecendo.

Há quem não confie nas tecnologias de renováveis, dizem que esses sinais de mercado são temporários.

Amin: Acho que eles têm que acordar. Estamos vendo preços baixos de energias renováveis em muitas partes. Eu não subestimaria esse novo setor, que tem analistas espertos e observadores das tendências de mercado.

Energias renováveis podem ajudar cidades ou são adequadas apenas a áreas remotas? Como torná-las uma solução para grandes cidades de países em desenvolvimento, como São Paulo, que sofre com uma forte seca e vive brigas pela água com cidades vizinhas e entre o setor elétrico e o de abastecimento?

Amin: Cidades têm tanto o potencial de produzir como o de consumir energia. A enorme musculatura da energia solar na Alemanha, com seu sistema descentralizado, aponta o caminho. Se a Alemanha pode produzir energia solar, países do hemisfério Sul podem fazê-lo também. O negócio existe, o que se necessita é um novo tipo de infraestrutura. Logo vamos ver um movimento em direção à mobilidade elétrica. Vamos ter eletricidade como combustível para veículos. Como esta eletricidade será produzida, claro, será um tópico importante. Outro ponto é em relação ao back-up e à intermitência das renováveis: como estocar energia. Projetos de estocagem em larga escala, embora estejam com preços em queda, ainda não são economicamente viáveis. E há o impacto no abastecimento de água, por isso o conceito conhecido por Nexus é fundamental.

Nexus, do que se trata?

Amin: Há três fontes que irão determinar a viabilidade da vida na Terra em algumas décadas - comida, energia e água. Existe uma relação muito clara entre elas. Energia e água, por exemplo. Energias renováveis podem usar 200 vezes menos água do que as convencionais. O investimento em renováveis não relaciona apenas carbono e energia, mas também direciona a sustentabilidade para outros setores.

Há países esperando as negociações internacionais de clima para avançar em energias renováveis?

Amin: Não. Hoje 150 países já têm seus estudos e há metas nacionais bastante ambiciosas. Estive em Lima, tivemos os impasses usuais nas negociações. Mas era fora das salas onde as conversas reais estavam acontecendo e elas eram dominadas pelo potencial das energias renováveis. Se vão ser parte das negociações ou não, é difícil de dizer. Mas isso irá acontecer com ou sem acordo climático. A solução para mudança do clima em larga parte se baseia na transformação do setor energético. Clima não é um cenário que só trará perdas. Sabemos que há países responsáveis por isso, mas eles não têm dinheiro para pagar na escala dos danos. Essa situação é muito difícil de resolver e acredito que precisamos de um novo paradigma na cooperação internacional, especialmente para buscar diminuir o custo financeiro das tecnologias e fazer com que energias renováveis sejam uma possibilidade para todos. Essa pode ser a solução para a mudança do clima e talvez também para as finanças climáticas.

O assunto do clima é sensível em muitos países que não querem que seja usado como inibidor do desenvolvimento.

Amin: Sim. Veja, há muitos pobres ainda na Índia, o benefício do desenvolvimento ainda não os alcançou. Mas ao mesmo tempo, as energias limpas e renováveis apresentam um cenário de crescimento, não necessariamente uma limitação. Acho que é mais fácil falar de renováveis e investimento do que de limite de emissões, no caso da Índia, por exemplo.

Quais suas expectativas para a conferência de clima de Paris?

Amin: Estou esperançoso de resultados positivos. Mas, se será um acordo legalmente vinculante, global e com a ambição que todos querem, não sei. As finanças climáticas também precisam acontecer, mas não dá para fazer assim: temos US$ 10 bilhões no Fundo Climático Verde, 150 países, vamos dividir e dar um pedaço para cada um, porque isso não é nada. O que nós propomos é pegar o Fundo Climático Verde e criar um mecanismo de empréstimo garantido para financiar energia renovável. Se se conseguir usar isso para abaixar as taxas dos empréstimos praticadas nos bancos, estaremos mudando a regra do jogo.

A jornalista viajou a Abu Dhabi a convite da Irena