Mesmo empurrando o pagamento de R$ 226 bilhões em compromissos assumidos em anos anteriores para 2015, a equipe econômica não conseguiu impedir que o governo central - que reúne as contas do Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central - registrasse o primeiro déficit primário desde o início da série disponível, em 1997.

O resultado foi negativo em R$ 17,242 bilhões (-0,34% do PIB) no ano passado. Se considerada a discrepância em relação aos números divulgados pelo Banco Central (BC) até novembro, esse desempenho foi ainda pior e chega a um déficit de R$ 20 bilhões, número antecipado pelo Valor PRO, serviço de informações em tempo real do Valor, na semana passada. A expectativa se volta agora para os dados consolidados do BC que serão divulgados nesta sexta-feira.

A deterioração nas contas públicas no ano passado é reflexo dos gastos elevados, devido, por exemplo, a estimativas subestimadas, em cenário em que a receita foi impactada pelo baixo crescimento econômico. O resultado seria ainda pior não fosse a postergação de pagamentos de despesas para 2015 - as chamadas "pedaladas fiscais". "O resultado não é bom, mas é a apuração encerrada nesta semana", disse o secretário do Tesouro Nacional, Marcelo Saintive.

Do lado das despesas, o déficit da Previdência Social ficou R$ 7,506 bilhões superior ao projetado pelo governo, atingindo a marca de R$ 56,698 bilhões. Já a receita líquida total teve queda de R$ 13,777 bilhões em relação ao esperado.

"Houve uma frustração de receita de 1,7% e aumento das despesas de 0,4% na comparação entre o resultado de 2014 e o que estava programado", disse Saintive, referindo-se as estimativas apresentadas no relatório de receitas e despesas, divulgado em novembro pelo Ministério do Planejamento.

O expressivo aumento do estoque de restos a pagar - que passou de R$ 128,684 bilhões em 2011, segundo dados do site Contas Abertas para R$ 226 bilhões em 2015 - incorpora parte das "pedaladas fiscais". Para que o peso dessa conta não prejudique o cumprimento da meta de superávit primário de 1,2% do PIB deste ano, o secretário do Tesouro avisou que nem todo o passivo será pago em 2015 e que as despesas passarão por uma análise. Um grupo de trabalho interministerial foi criado para acompanhar os gastos públicos. "Estamos buscando entender essa despesa e fazer a programação adequada. O importante é dar previsibilidade para esses pagamentos", afirmou.

Questionado sobre o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) apontado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) devido aos bancos públicos financiarem despesas obrigatórias, Saintive disse que a atual administração trabalha "com transparência, tempestividade e cumprimento das regras" e que o assunto vem sendo acompanhado pela Advocacia Geral da União (AGU).

Na avaliação do secretário, o resgate da credibilidade do Tesouro está diretamente ligado ao cumprimento da meta de superávit primário. "A recuperação de credibilidade do Tesouro Nacional é cumprir essa meta. E nós vamos cumprir", destacou. Apesar de estar comentando o resultado de 2014, o secretário reforçou a sinalização de que a meta de primário de 1,2% neste ano será cumprida.

Ele não fez previsões sobre como se comportará as receitas neste ano e o que será feito para compensar possível frustração na economia estimada de R$ 18 bilhões com as medidas de restrições na concessão de seguro-desemprego, abono salarial e pensão por morte, anunciadas recentemente e que podem ser afrouxadas. "Não faremos previsão do comportamento das receitas neste ano", destacou. "É prematuro falar sobre estratégia fiscal de 2015", emendou.

O secretário reafirmou que não houve mudança no entendimento do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, com relação a não utilização de R$ 9 bilhões do orçamento deste ano para auxiliar a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). "O ministro já se pronunciou. Tenho convicção do ministro não alterou", contou.

 

Parte das despesas que foram represadas foi normalizada no fim de 2014

 

O resultado divulgado ontem pelo Tesouro mostra que parte do movimento conhecido como "pedaladas" foi ajustado, mas algumas despesas foram jogadas para 2015. Entre as despesas, os dados divulgados pelo Tesouro sugerem que alguns pagamentos que ao longo do ano foram represados (e bancados pelos bancos públicos) chegaram ao fim do ano normalizados. Enquadram-se nesse grupo os pagamentos do abono salarial, seguro-desemprego e da própria Previdência.

Nessa situação, o economista-chefe da corretora Tullet Prebon, Fernando Montero, destacou que as despesas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) encerraram o ano com gasto de R$ 54,4 bilhões, após o acumulado em doze meses cair até R$ 43,3 bilhões em julho. Na Previdência, o ano terminou com déficit de R$ 56,7 bilhões, bem acima do acumulado em 12 meses até abril - R$ 43,8 bilhões.

Entre as despesas atrasadas, as chamadas discricionárias somaram apenas R$ 13,7 bilhões em dezembro passado, valor bem inferior a média mensal de R$ 17,9 bilhões nessa rubrica no período de julho a novembro do ano passado.

Felipe Salto, especialista em contas públicas, destaca o conjunto do grupo outras despesas de custeio e capital. As despesas de capital (leia-se investimento) recuaram 18% sobre dezembro do ano passado, sendo que em novembro elas ainda cresceram. "Dezembro mostrou uma mudança drástica nos investimentos", afirma ele. Uma parte dessa redução de gastos indica compromissos que deverão ser quitados em janeiro e outros podem ser postergados, e virar corte efetivo, no futuro.

Entre despesas que ficaram abaixo do esperado - e que por isso viram despesas represadas para 2015 - estão uma parcela a ser paga para a Conta de Desenvolvimento Energético (a despesa estimada era de R$ 10,5 bilhões e o ano encerrou com R$ 9,2 bilhões, diz Montero em relatórios aos clientes.

Ele também destaca os gastos menores que o usual para dezembro na conta de custeio e capital, os subsídios não ressarcidos e um repasse ainda inferior ao devido para Estados e municípios referente à Lei Kandir.

 

Rombo elevado no ano passado obriga governo a esforço fiscal maior em 2015

 

O déficit primário em torno de R$ 20 bilhões do governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central) no ano passado, antecipado pelo Valor PRO, serviço de informação em tempo real do Valor, resultou de uma equação simples, que geralmente dá problema: as receitas tiveram queda real, em relação ao ano passado, e as despesas registraram uma expansão exagerada, de 12,8% em termos nominais. Só poderia ter dado déficit. É simples assim.

Pela metodologia do Tesouro, o déficit do governo central foi de R$ 17,2 bilhões, mas o que vale para efeito da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é o déficit calculado pelo BC, que será divulgado hoje e ficará em torno de R$ 20 bilhões.

Houve certa surpresa de alguns analistas com o tamanho do déficit de 2014 porque, em sua última entrevista, o ex-secretário do Tesouro Arno Augustin havia garantido que o resultado de dezembro seria positivo e de dois dígitos, ou seja, igual ou acima de R$ 10 bilhões. O superávit primário foi de apenas R$ 1 bilhão em dezembro, pela metodologia do Tesouro. O pequeno superávit indica que o governo decidiu pagar em dezembro mais despesas do que previa. Em outras palavras, "pedalou" menos despesas para o ano seguinte.

A "pedalada" ocorre quando o Tesouro emite ordens bancárias para pagar gastos nos últimos dias do mês, fazendo com que elas só sejam efetivamente sacadas e impactem o caixa no mês ou ano seguinte. Com a manobra, garante superávit primário maior. O resultado de dezembro confirma que o governo começou a "despedalar" alguns gastos.

O déficit primário de todo o setor público (incluindo Estados, municípios e estatais), a ser divulgado hoje pelo BC, deve ser maior que os R$ 20 bilhões do governo central. E vai mostrar que o esforço fiscal deste ano será bem maior do que o inicialmente previsto pelo governo. Isto porque o setor público partirá de um déficit de cerca de 0,4% do PIB em 2014 para atingir um superávit de 1,2% do PIB em 2015 - um esforço colossal de 1,6 ponto percentual do PIB.

Os dados divulgados ontem mostram que o governo nunca gastou tanto como em 2014. A despesa cresceu R$ 117 bilhões em comparação com 2013. Os gastos do Tesouro subiram R$ 80,5 bilhões e os da Previdência, R$ 37,2 bilhões. O BC reduziu despesas em R$ 745 milhões. Mas é preciso fazer um pequeno reparo nos dados divulgados, pois eles incluem uma despesa intraorçamentária que é a compensação que o Tesouro faz à Previdência pela perda de receita com a desoneração da folha.

Em 2014, essa despesa ficou em R$ 18 bilhões, contra R$ 9 bilhões em 2013. A exclusão é necessária, pois essa despesa não é real. Por lei, o Tesouro é obrigado a cobrir qualquer que seja o déficit previdenciário. Com a exclusão, o gasto primário da União no ano passado aumentou R$ 108 bilhões em comparação com 2013. O gasto total de 2014 ficou em R$ 1,013 trilhão, o que corresponde a 19,7% do PIB. O valor do PIB de 2014 estimado pelo BC em R$ 5,134 trilhões.

Em 2010, último ano do governo Lula, a despesa da União ficou em R$ 700,1 bilhões. Mas desse total é preciso excluir R$ 42,9 bilhões referentes à capitalização da Petrobras, pois não foi um gasto pago com receita primária. Assim, a despesa de 2010 ficou em R$ 657,2 bilhões, ou 17,4% do PIB.

Dilma, portanto, aumentou o gasto primário da União nos quatro anos de seu primeiro mandato em 2,3 pontos percentuais do PIB (19,7% do PIB menos 17,4% do PIB). Nos seus oito anos de governo, Lula elevou as despesas da União em 1,5 ponto percentual do PIB, pois, ao fim do segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a despesa estava em 15,9% do PIB.

Isso mostra que a causa principal do déficit de 2014 foi a alta contínua da despesa nos últimos quatro anos. Durante esse período, o baixo crescimento e as elevadas desonerações deprimiram a receita. A maior elevação dos gastos no governo Dilma ocorreu em 2014, o ano da eleição presidencial.

Os gastos com o seguro-desemprego e abono salarial subiram 21,8% no ano passado, em comparação com 2013, enquanto que as despesas assistenciais cresceram 13,6%, o auxílio ao setor elétrico (Conta de Desenvolvimento Energético) aumentou 17% e os benefícios previdenciários, 10,4%. Os investimentos subiram 22,6%, porque o governo inclui no cálculo as despesas com subsídios do Minha Casa, Minha Vida.

A receita total da União atingiu R$ 1,224 trilhão em 2014, contra R$ 1,181 trilhão em 2013 - aumento de R$ 42,9 bilhões. A elevação nominal foi de 3,6%, tendo ocorrido, portanto, queda real. A maior queda ocorreu com a receita de concessões (- R$ 14,1 bilhões). A receita da Cofins caiu R$ 6,3 bilhões, refletindo a contração da atividade e a receita do IR subiu 5,6%, ficando abaixo da inflação, principalmente devido à queda na lucratividade das empresas.

 

Especialistas acreditam no ajuste, mas economia fraca pode exigir mais imposto

 

A promessa do governo de entregar um superávit primário de 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2015 deve ser cumprida, mas não sem esforços adicionais. Diante de uma queda real na arrecadação de quase 2% no ano passado, já se admite que o ritmo da atividade econômica cada vez mais lento tem potencial para piorar bastante esse quadro, levando o governo a pensar em novos cortes de despesas ou a lançar mão até mesmo de mais impostos para fechar a conta.

Os economistas chamam atenção para o fato de a dinâmica da arrecadação estar cada vez mais associada à atividade econômica e esta, por sua, vez, estar cada vez mais contida. Fabio Klein, especialista em contas públicas da Tendências Consultoria, avalia que, embora o superávit primário de R$ 66,3 bilhões já possa ser visualizado, a queda do PIB pode atrapalhar os planos do governo.

A Tendências prevê recuo de 0,5% para o PIB em 2015, o que deve interferir nas contas públicas, especialmente do lado da receita. "Vimos que as maiores quedas em arrecadação em 2014 foram em impostos ligados ao faturamento e ao lucro das empresas e isso pode ser pior em 2015", diz Klein. Por outro lado, ressalta ele, resta a dúvida de quanto a elevação da alíquota de alguns tributos, como a do IPI sobre automóveis, compensaria essa queda na base de arrecadação.

Caso o estrago na receita se mostre mais forte, Klein afirma que a saída pode ser cortar mais despesas, principalmente onde é mais alcançável, ou seja, em investimentos e custeio como material de consumo e serviços terceirizados. Ele vê ainda uma outra forma de compor receita: contribuições extraordinárias para tentar fazer caixa, como a volta da CPMF. "Mas eu acho que seria uma saída política ruim".

Rafael Bistafa, economista da Rosenberg & Associados, lembra ainda que, no ano passado, o governo contou com receita de cerca de R$ 19 bilhões em dividendos, R$ 20 bilhões com o programa de parcelamento de dívidas, o Refis, além de R$ 5,1 bilhões com a outorga do direito de exploração da banda larga 4G. "Essas receitas extraordinárias evitaram um déficit primário ainda maior, o que é bastante preocupante".

O especialista em contas públicas Felipe Salto ressalta que o comportamento da arrecadação e da atividade tem andado em linha no período recente. "No passado, commodities em alta, abertura de capital, lucros maiores, entre outros movimentos, permitiram à arrecadação crescer acima do PIB, mas essa não é mais a realidade, ainda mais diante de tantas desonerações", pondera Salto. Em sua avaliação, a estimativa embutida no orçamento de 2015, de alta de 0,8% do PIB, está superestimada, mas é em cima dela que as receitas para este ano foram projetadas.

Para Bistafa, diante da dificuldade para atingir a meta de superávit primário em 2015, é possível que o governo volte a negociar a desoneração da folha de pagamentos. No ano passado, segundo a Receita Federal, o governo abriu mão de R$ 21,6 bilhões com o benefício. O restabelecimento da alíquota de 20% da folha para alguns setores, por exemplo, pode compensar em parte a frustração com o PIB.

Por enquanto, diz, a Rosenberg estima que o governo vai conseguir entregar o resultado prometido por Levy, mas não sem dificuldades. "Estamos dando um voto de confiança e acreditamos que o governo vai cumprir a meta, especialmente porque todas as medidas tomadas desde o fim do ano passado foram no sentido correto. Mas sabemos que é difícil em um quadro de recessão".

Menos otimista, Salto avalia que para chegar ao superávit de 1,2% do PIB em 2015, o esforço fiscal do governo terá de ser da ordem de R$ 100 bilhões. Esse é o valor que será necessário para dar conta da herança de 2014 e bancar a economia deste ano. Além dos já anunciados R$ 20 bilhões em aumento de impostos, ele espera novas medidas de aumento da carga tributária (principalmente recomposição de IPI e de PIS-Cofins) que podem trazer mais R$ 17 bilhões a R$ 20 bilhões para o caixa federal.

Além desse reforço na arrecadação, diz Salto, o restante do ajuste deve vir de corte de despesas, que só será efetivo com uma redução de R$ 40 bilhões nos investimentos previstos (o orçamento projeta R$ 65 bilhões, incluindo as obras do PAC), e mais R$ 25 bilhões em despesas discricionárias. "Passados alguns meses, se a dinâmica da economia for mesmo muito ruim, talvez o governo precise revisar a meta. Se acontecer, será fundamental assumir isso oficialmente."

Partindo-se do déficit primário de R$ 17,2 bilhões do governo central, a Tendências reviu a projeção e agora prevê um resultado negativo para o setor público consolidado de R$ 18,6 bilhões, ou 0,36% do PIB. Isso se Estados e municípios encerrarem o ano passado com um esforço fiscal zero. Supondo, porém, que eles cumpram a meta de 0,15% do PIB esperada, o déficit cairia para R$ 12,5 bilhões, ou 0,24% do PIB esperado para 2014.