O risco de racionamento acentuado neste ano não é explicado apenas por fatores climáticos. A situação crítica evidencia falhas na execução do planejamento energético do governo federal, segundo especialistas ouvidos pelo Valor. Análise com base no primeiro Plano Decenal de Energia (PDE 2006-2015) elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), criada no governo Lula para retomar o planejamento do setor, indica que pelo menos 33 hidrelétricas previstas para entrar em operação até este ano não saíram do papel ou tiveram o cronograma postergado. 

Conforme antecipado ontem pelo Valor PRO, serviço de informação em tempo real do Valor, os 33 empreendimentos que poderiam estar contribuindo para a oferta de energia no país somam 11.855 megawatts (MW) de capacidade instalada. O volume equivale a quase 10% da capacidade do parque gerador brasileiro e supera a potência da hidrelétrica de Belo Monte, de 11.233 MW, principal obra de geração do país e que será a segunda maior usina em operação no Brasil, atrás apenas de Itaipu Binacional, de 14 mil MW. 

Localizada no rio Xingu (PA), Belo Monte constava no primeiro plano decenal de energia do governo Lula. No documento, estava previsto que a usina teria uma capacidade de 5,5 mil MW já disponível em dezembro de 2013. A usina, porém, foi licitada apenas em 2010. E, conforme antecipado pelo Valor, o projeto está novamente atrasado, de acordo com relatório de fiscalização da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). 

Além de Belo Monte, outras duas usinas da lista, Baixo Iguaçu (PR, 350 MW) e São Roque (SC, 135 MW), foram licitadas e estão em construção. A primeira tem situação mais delicada, pois as obras estão interrompidas por questões ambientais. Já São Roque está em implantação e deve entrar em operação em 2016. 

Outros dois empreendimentos ainda não licitados, Telêmaco Borba (PR, 120 MW) e Itapiranga (RS/SC, 580 MW), figuram na última versão do plano decenal de energia (2014-2023), com previsão de entrada em operação em 2019 e 2021, respectivamente. Os outros 28 projetos da lista não estão incluídos no último plano. 

Entre esses projetos estão as hidrelétricas do complexo do Parnaíba (PI/MA), que chegaram a ser licitados por duas vezes em leilões da Aneel, mas não atraíram o interesse do investidor, devido à baixa taxa de remuneração proposta pelo governo. 

Segundo especialistas, os principais motivos para a maioria das hidrelétricas previstas no plano não ter saído do papel ou ter o cronograma alterado são entraves ambientais e jurídicos. 

"Temos visto muitas restrições, são poucos projetos [ofertados nos leilões], que não têm capacidade de armazenamento, as chamadas usinas a "fio d"água", e isso tudo dificulta o atendimento do crescimento da demanda", diz Priscila Lino, diretora da consultoria PSR. 

Outro problema, segundo Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, voltado para estudos do setor elétrico, é que a EPE dedica muitos esforços à viabilização de hidrelétricas de grande porte, mais complexas do ponto de vista ambiental, e prejudica o andamento de inúmeros projetos de médio porte, que ficam praticamente paralisados. 

Segundo um executivo de uma empresa do setor, o governo demora a reconhecer problemas nos projetos incluídos nos planos. 

"Faltando um mês para as térmicas do grupo Bertin entrarem em operação, muitas das usinas do grupo não tinham feito nem terraplanagem. 

E o governo ainda contava com elas", disse. Ele lembrou ainda o caso do sistema de conexão da Chesf com eólicas do Nordeste, que demorou a ficar pronto e impediu que a energia de parques já concluídos pela Renova Energia fosse entregue ao sistema. 

Parte da oferta não atendida por hidrelétricas previstas no PDE 2006-2015 foi preenchida por outras fontes, como eólicas e termelétricas. 

Mas a lacuna não foi inteiramente ocupada. Hoje, a capacidade de todas as eólicas em operação no país soma cerca de 5 mil MW, segundo a Aneel. E, mesmo assim, o fator de capacidade (percentual de energia de fato produzida) das eólicas é inferior ao das hídricas. 

Entre as termelétricas, a principal contribuição veio das usinas a gás natural e carvão da Eneva, antiga MPX, controlada pelo empresário Eike Batista e a alemã E.On, totalizando cerca de 2,4 mil MW. 

O PDE 2006-2015, porém, também teve projetos termelétricos previstos e não concluídos. O principal deles é a usina nuclear de Angra 3, de 1.405 MW, prevista no plano para iniciar a operação em 2012. A estimativa atual, de acordo com o último plano decenal, é meados de 2018. Outra térmica incluída no primeiro plano do governo Lula, Jacuí (RS, 350 MW), a carvão, estava prevista para 2008, mas até hoje não saiu do papel. 

Segundo Priscila Lino, não é possível mensurar qual fator, entre hidrologia ruim e atrasos nos projetos, tem "mais culpa" em relação ao cenário crítico atual . "A situação hidrológica é um fator, mas sozinha não deveria estar causando o que vemos hoje", afirmou ela. 

De acordo com dados do Ministério de Minas e Energia, em 2014, foram adicionados ao sistema 1 mil MW a mais do que os 6 mil MW previstos inicialmente. 

Priscila, porém, diz que é preciso separar o que de fato estava previsto para 2014 e quanto que entrou no sistema se referia a projetos atrasados e que deveriam ter entrado nos anos anteriores. 

"O volume em atrasos é enorme e isso já observamos em 2013 e em 2014. Qual o recado disso? Que não adianta entrar um volume grande de capacidade, se esse volume se refere a obras que já deveriam ter entrado no passado. 

Precisamos ver o que está entrando para atender ao crescimento da demanda", diz ela. 

Procurado, o Grupo Bertin informou que obteve na Aneel uma revisão do compromisso de geração e a consequente redução das obrigações. "Esse novo planejamento de entrega está em discussão junto à agência reguladora desde dezembro de 2012", afirmou, em nota. O grupo acrescentou ainda que, diante da grave crise hidrológica, pode contribuir com cerca de 1 mil MW, "dado que seus projetos podem ser concluídos entre 10 e 18 meses". 

O Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) prevê o acréscimo de 6.410 MW de capacidade ao sistema em 2015. 

 

O "estilo Dilma" do ministro Eduardo Braga

 

Eduardo Braga, engenheiro eletricista de 54 anos, vive, no comando do Ministério de Minas e Energia, sua primeira experiência de trabalho como subordinado.

 

Em sua trajetória política, iniciada aos 21 anos, o ex-governador e senador licenciado pelo PMDB do Estado do Amazonas nunca teve um chefe a quem prestar contas. 

Com menos de um mês no cargo, porém, ele por pouco não levou um puxão de orelhas da presidente Dilma Rousseff. A brecha foi dada quando, na terça-feira, o ministro depositou em um "Deus brasileiro" as esperanças de dias melhores para os reservatórios das hidrelétricas do país. A forma como ele tratou um assunto tão grave não agradou nem aos seus pares no governo. 

A exemplo de Dilma, o ministro, segundo seus subordinados, é ríspido, impaciente e, sobretudo, orgulhoso. A experiência de trabalhar com chefe chegou em um momento especialmente delicado. 

Não bastassem os graves problemas estruturais e financeiros, o setor elétrico é - ao menos em tese - a "praia" de Dilma, o que impõe ao ministro alguma pressa em se inteirar do cenário. 

Nas três primeiras semanas de trabalho, foram 38 reuniões, além de despachos internos, visitas a estatais e muita pesquisa na internet. Braga tem o hábito de trabalhar madrugada adentro. 

Quando estava no Senado, não costumava aparecer no gabinete antes das 11h da manhã. 

De temperamento forte, na chegada ao trabalho seu humor raramente é bom. "Ele não dá muita prosa. É só um "oi" e olhe lá", conta um ex-assessor do ministro. 

Nos bastidores, o estilo de Braga é constantemente associado ao de Dilma - algo que o ministro reconhece e não o incomoda. 

A comparação não se limita ao temperamento, mas também à objetividade com que trata assuntos e pessoas. 

"Se você não souber bem o que quer, é melhor nem começar a falar. 

Ele também não se envolve emocionalmente com nada", complementa o auxiliar. 

Mesmo não tendo exercido a engenharia, a formação na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), concluída em 1981, ajuda Braga na compreensão das especificidades técnicas da função no ministério. "Apesar de ele ter se formado em uma realidade bem diferente da atual, questões como planejamento energético fazem parte da grade curricular", explica Rubem Rodrigues de Souza, professor do departamento de engenharia elétrica da Ufam. 

Mas a atual situação do setor elétrico nacional - com empresas em dificuldades financeiras, obras atrasadas e capacidade de suprimento colocada em xeque - vai exigir do ministro muitas outras habilidades, sobretudo as políticas. Um dos primeiros desafios é convencer o colega da Fazenda, Joaquim Levy, a não secar totalmente a fonte de recursos para o setor. Ao menos nessa empreitada, Braga tem a seu favor a empatia com Dilma, que está inclinada a não eliminar totalmente os subsídios. 

O ministro assumiu prometendo mais diálogo com as entidades do setor, que foram recebidas em uma grande reunião no dia 9. Uma semana depois, Braga convidou a Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) para novo encontro. Dessa vez, queria ouvir mais do que falar e causou boa impressão ao presidente da entidade, Nelson Leite. 

"Ele tem tomado consciência dos problemas e trabalhado muito para se inteirar. Ficamos satisfeitos com as propostas e acreditamos no potencial do ministro", elogiou o dirigente. 

Entre as propostas apresentadas por Braga na reunião está um programa de modernização da infraestrutura de distribuição de energia elétrica no país. O ministro pediu que as empresas elaborassem um plano de investimentos tanto para a distribuição quanto para a chamada geração distribuída, instrumento pelo qual empreendimentos de geração são construídos próximos aos consumidores. 

Se encaixam no modelo de geração distribuída, por exemplo, painéis fotovoltaicos, geradores movidos a resíduos e PCHs (pequenas centrais hidrelétricas), entre outros. De acordo com o presidente da Abradee, o plano pode ser apresentado no próximo dia 3 , quando deve haver nova reunião com Braga.

Além dos representantes das associações, o ministro também vem conversando com os presidentes dos principais órgãos ligados ao setor, como Romeu Rufino (Aneel), Maurício Tolmasquim (EPE), José da Costa Carvalho Neto (Eletrobras), Hermes Chipp (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e Luiz Barata (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). 

Da porta para dentro do ministério, Braga ainda não mexeu na equipe. De acordo com a assessoria de imprensa da pasta, ele vem sendo abastecido de informações pelos atuais técnicos. 

Recentemente, Braga deu a entender que manterá no cargo o atual secretário-executivo, Márcio Zimmermann, mas a verdade é que as nomeações do segundo escalão só devem ser liberadas por Dilma após a eleição do Congresso , em 1o de fevereiro. 

Pessoas próximas ao ministro garantem, entretanto, que as mudanças virão. "Ele atendeu a um pedido do [ex-ministro Edison] Lobão, para "dar um tempo" nas trocas", disse um interlocutor de Braga. "Ele chegou em um momento sensível e está cuidando dos casos mais urgentes, mas assim que possível montará sua própria equipe", disse outro auxiliar do ministro, antes de lembrar que Braga mantém ótima relação com Lobão. 

Ao comentar, o blecaute ocorrido há três dias em 11 Estados e no Distrito Federal, o ministro seguiu a mesma linha do antecessor, ao garantir que o sistema elétrico brasileiro é "robusto" e afastar os riscos de desabastecimento. 

Porém, ao contrário do que fez Lobão em fevereiro do ano passado, quando outro "apaguinho" foi deflagrado, Braga já começou a alertar a população para a necessidade de economia no consumo de energia elétrica. Não por problemas de oferta, ressaltou, mas pelos preços maiores que serão praticados neste ano. 

Conselheiros de Braga consideraram "infeliz" o apelo do ministro a Deus, mas entendem que a frase reflete, mais do que qualquer outra coisa, estilo dele. 

Relata uma pessoa do seu convívio: "Ele não costuma frequentar a igreja, mas é religioso e fala muito em Deus". 

 

Brasil volta a importar energia da Argentina

 

O Brasil voltou a importar energia da Argentina. De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o sistema brasileiro "puxou" 90 megawatts (MW) médios do país vizinho na quarta-feira, volume inferior aos cerca de 165 MW médios importados terça- feira. Essa importação ocorreu nos dois dias seguintes ao blecaute acontecido na segunda-feira. 

Em nota, o ONS sinalizou que a importação de energia da Argentina deve ser frequente neste verão , para atender à demanda no horário de pico, por volta de 15h. "O intercâmbio de energia nos dois sentidos vem sendo adotado em diversos momentos ao longo de vigência do acordo", informou o ONS, referindo-se ao acordo em vigor com a Cammesa, operador do sistema elétrico argentino. 

O Brasil havia importado energia da Argentina pela última vez em 2010, quando foram entregues cerca de 12 MW. Em outras ocasiões depois, o Brasil exportou energia para o vizinho. 

O ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, disse ontem que o Brasil pode enfrentar problemas graves de abastecimento de energia - incluindo a necessidade de adotar um plano de racionamento -, se o nível dos reservatórios das principais hidrelétricas atingir patamar igual ou inferior a 10%. 

Sobre a importação de energia da Argentina , Braga disse que o procedimento é "natural". Ressaltou que o contrato firmado com o país vizinho não envolve compra, mas sim compensações. "Desde 2006, fazemos troca de volumes de energia elétrica com a Argentina."