Entre as discussões envolvidas na Operação Lava- Jato, uma delas chama atenção em especial. Diz respeito à denúncia de que fornecedores do governo e de empresas estatais atuariam como cartel. Cartel é uma daquelas palavras que possui uma definição técnica e usos leigos com diversas conotações. Apenas a definição técnica vale e só ela pode ser considerada crime. Cartel é um acordo entre empresas independentes atuantes em um mesmo mercado que combinam práticas comerciais, no sentido de limitar a competição, em prejuízo do consumidor: fixação de preços, divisão de mercado, limitação da oferta.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou vários cartéis em diversos mercados, nas suas diferentes modalidades, compondo uma experiência robusta e técnica de investigação. Os processos de cartel são tipicamente longos e dependem de farta produção de provas documentais, de evidências econômicas de sua operação e efeitos no mercado. Esses elementos precisam ser irrefutáveis.

Para que o combate aos cartéis seja efetivo, é preciso assegurar um exame criterioso e estritamente técnico

Na esfera leiga, há uma tendência de generalização do termo cartel. É comum que coincidência de práticas ou comportamentos por empresas concorrentes seja considerada “cartel”. Fala-se, por exemplo, em “cartel” das empresas de telefonia, pelo simples fato de que são poucas e porque em seus serviços de callcenters todos falam mais ou menos a mesma coisa, ou porque os preços, planos e pacotes são muito parecidos, ou ainda, simplesmente porque se consideram os preços “muito caros” sem uma dimensão de sua estrutura de custos. A coincidência ou proximidade de práticas pode levantar suspeita, mas não é prova de que decorre de conluio: ao contrário, pode ser fruto da interação competitiva e busca por cada uma das melhores práticas observadas no mercado.

Outra confusão constante é entre cartel e concentração de mercado, quando muitas vezes se usa também a expressão “clube”. É o que a técnica antitruste chama de “oligopólio”. Por exemplo: há no Brasil mais de 500 indústrias farmacêuticas, mas 40% do mercado está nas mãos de oito laboratórios. Embora existam 121 bancos no Brasil, quatro instituições privadas e duas públicas são dominantes. Das 19 marcas de automóveis fabricadas no Brasil, quatro detêm 70% do mercado. Os exemplos de concentração se repetem em diversos setores: bebidas, suco de laranja, carne. Mas oligopólio não é infração à concorrência, muito menos crime.

A engenharia talvez seja um dos mercados mais pulverizados do mundo. Bastam dois amigos engenheiros e nasce uma empreiteira. Naturalmente, o espectro de empresas habilitadas a tocar uma obra está relacionado à complexidade do projeto. A relação de construtoras em condições de fazer um metrô, uma hidrelétrica, uma usina nuclear é muito menor do que a de empresas capazes de pavimentar uma rua. Quanto mais tecnologia e experiência o edital de licitação exigir, menor é o número de concorrentes. No caso da Petrobras, poucas construtoras em atividade no país possuem competência técnica para construir uma refinaria ou uma plataforma de petróleo. Quanto mais técnico o mercado e diferenciado o produto, mais difícil é encontrar um arranjo de cartelização.

O fato de haver poucas empresas participantes em um processo licitatório não é, por si só, prova suficiente de cartel. Reflete em grande medida barreiras técnicas e de capital à entrada no mercado relevante. Lembre-se, além disso, que, em vários segmentos, o poder de mercado está concentrado na Petrobras. Para vários itens a estatal é a única compradora, algo que em economês é chamado de monopsônio. Em muitos casos é a própria Petrobras que dita as condições comerciais.

As acusações levantadas devem ser minuciosamente apuradas e complementadas com outras evidências. A literatura econômica oferece um conjunto de testes que podem ser aplicados para comprovar a plausibilidade de determinadas alegações, verificando sua racionalidade à luz dos efeitos provocados no mercado. Para tanto, é necessário o respeito ao devido processo legal e à análise especializada das evidências disponíveis. Sem um estudo técnico, as atuais investigações podem dar em nada; ou, o que é pior, o feitiço virar contra o feiticeiro. Punições inapropriadas, redução de competidores e prejuízos à cadeia produtiva reduziriam a capacidade do setor de infraestrutura brasileiro de atender à demandas governamentais, além de contrariar os esforços dos últimos anos de o governo federal desenvolver um mercado nacional para atender ao crescimento da indústria do petróleo.

A atual situação oferece uma oportunidade preciosa de efetuar correções de rumo e melhorar a governança nos setores público e privado. Mas para que isso seja possível e o combate aos cartéis seja efetivo, o primeiro passo é assegurar um exame criterioso e estritamente técnico nas investigações em curso.

Gesner Oliveira é ex-presidente do Cade, professor de Economia da EASP-FGV e sócio da GO Associados.

Fernando Marcato é professor da FGV-Direito SP e sócio da GO Associados.

Pedro Scazufca é mestre em economia pela FEA-USP e sócio da GO Associados.