Um dia após a ocorrência de um blecaute controlado que afetou Sul, Sudeste e Centro-Oeste, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) solicitou na terça-feira o intercâmbio de até 1 mil megawatts (MW) de energia da Argentina para o Brasil, para atender o sistema nacional no horário de pico da demanda. A medida, antecipada pelo Valor PRO, serviço de informação em tempo real do Valor na manhã de ontem, expõe a escassez de oferta de energia para atender o pico de consumo do sistema brasileiro, segundo especialistas.

"Houve intercâmbio internacional da Argentina para o Brasil, a pedido do ONS em tempo real, das 10h23, às 12h e das 13h às 17h02, entre 500 MW e 1.000 MW, para contribuir no atendimento à ponta do SIN [Sistema Interligado Nacional]", disse o operador, em relatório sobre a operação de ontem do sistema.

De acordo com um técnico do ONS, é raro o Brasil importar energia da Argentina. Ele não se recorda quando foi a última vez que isso ocorreu. Segundo ele, o que acontece em alguns momentos, e mesmo assim com pouca frequência, é o Brasil fornecer energia ao país vizinho e, receber o mesmo montante de energia de volta, em outro período, quando a situação do sistema argentino se normaliza.

A operação não foi anunciada pelo ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, e o diretor-geral do ONS, Hermes Chipp, nas respectivas entrevistas, na terça-feira, após a reunião na sede do órgão, que discutiu as causas que necessitaram o blecaute controlado.

Procurado, o MME informou que a medida está prevista em um acordo internacional firmado entre o ONS e a Cammesa, operadora do sistema elétrico argentino, e que não depende de qualquer intervenção do ministério para que as transferências de energia ocorram entre os dois países. O MME acrescentou que o intercâmbio não ocorre necessariamente em situação de emergência.

No fim do dia de ontem, o ONS divulgou nota à imprensa informando que o acordo entre os dois países foi assinado em 2006. "Em caso de situações especiais, a Cammesa e o ONS podem realizar importações de energia, a serem compensadas em função de acerto direto entre os dois operadores", afirmou o ONS, acrescentando que o intercâmbio nos dois sentidos "vem sendo adotado em diversos momentos ao longo da vigência do acordo".

No início dos anos 2000, o intercâmbio entre os dois países era feito por linhas de transmissão operadas pela Companhia de Interconexão Energética (Cien), do grupo Endesa. Na época, o intercâmbio envolvia transações comerciais.

Segundo a diretora da consultoria Engenho, Leontina Pinto, o intercâmbio elétrico entre os dois países está previsto em contrato, mas não é comum. Ela, que participou da criação do modelo computacional utilizado na operação diária do ONS, disse que uma leitura detalhada da nota divulgada pelo operador no dia do blecaute controlado permite concluir que houve um "racionamento de ponta de demanda".

O coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel/UFRJ), Nivalde Castro, também acredita que a importação de energia da Argentina evidencia que há um problema de atendimento da demanda do sistema no horário de pico. "Estamos com desequilíbrio conjuntural entre oferta e demanda. O nível dos reservatórios hidrelétricos está muito baixo e estamos sem capacidade para fornecer [energia] para carga na ponta".

No passado, o horário de ponta era por volta de 18h, quando as pessoas retornavam para as suas casas, acendiam lâmpadas e ligavam aparelhos eletrodomésticos. O horário de ponta hoje, porém, passou para cerca de 15h, quando ocorrem as temperaturas mais elevadas e o consumidor sente necessidade de ligar aparelhos de ar condicionado.

Segundo o ONS, não houve recorde de carga na terça, mas ela continuou elevada. A demanda máxima no sistema, de 83.830 MW, foi obtida às 14h48.

 

Consumo cresce acima do PIB desde 2010 e tendência persiste

 

O consumo de energia será pouco afetado pela desaceleração da economia neste ano e não vai dar refresco ao sistema de geração elétrica do país. Especialistas do setor projetam que a demanda seguirá alta e descasada da atividade, ainda que ela fique um pouco menor do que os 3,7% registrados em 2014 ante o ano anterior, em função da bandeira tarifária e dos gordos reajustes esperados na conta.

Residências, comércio e o setor de serviços, "equipados" com mais produtos eletrônicos em função do crescimento da renda e da economia nos últimos anos, continuarão com demanda alta. Na divisão por setores, o último boletim da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), de novembro, mostra que no acumulado em doze meses a demanda das residências cresceu 5,9% ante os doze meses anteriores, a do comércio aumentou 7,6%, e a de serviços foi de 5,2%.

O professor da UFRJ Nivalde de Castro atenta para o fato de que nos últimos anos dissipou-se no Brasil a elasticidade entre crescimento da economia e a demanda por energia. Ou seja, o consumo de energia não acompanha mais o aumento da atividade. Ano passado, o Produto Interno Bruto (PIB) do país cresceu 0,4% segundo o último Boletim Focus, com a mediana das projeções do mercado, enquanto o consumo de energia aumentou 3,7%, segundo o Operador Nacional do Sistema (ONS). "Outras variáveis ganharam importância, como o calor, por exemplo, uma vez que a renda e o consumo de eletrônicos aumentaram. A demanda por energia cresce à revelia do PIB", afirma Nivalde de Castro.

A indústria é o único setor que conservou elasticidade entre produção e demanda ao encolher a atividade ano passado. Ainda segundo o informe da EPE, o setor demandou 2,9% menos energia em 2014. "A indústria é o único setor que tem dado uma folga ao sistema. A sobrecarga que estamos assistindo, que culminou no blecaute, foi causada basicamente por comércio e residência. Tivesse o PIB crescido 1,5% ano passado, como se achou que poderia ocorrer, o sistema não teria aguentado", diz Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), que projeta aumento do consumo total "ao redor de 3%" neste ano.

A caracterização da demanda puxada não pela produção do país mas por quem consome bens finais levou a um quadro díspar neste início de ano. O boletim da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) da segunda semana de janeiro mostra que o consumo total caiu 7,1% no mês até o dia 13, na comparação com o mesmo período de 2014. Mesmo assim, o ONS registrou picos de demanda recorde na semana passada. Ou seja, a desaceleração da atividade - a queda em janeiro foi mais forte em setores da indústria -, mesmo que desafogue o consumo na média, não afeta os horários nos quais o sistema elétrico sofre demanda maior por parte dos consumidores.

Também coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da UFRJ, Nivalde de Castro afirma que esse comportamento explicita o descasamento entre nível de consumo e crescimento da atividade. "Em um sistema no limite do fornecimento, aumentos de temperatura levam a picos de demanda, pois já existe uma maior capacidade instalada de consumo potencial", afirma.

O mercado livre, que responde a um quarto do fornecimento de energia, é mais sensível à atividade justamente pela maioria de seus clientes ser indústrias eletrointensivas, como a automobilística e a siderúrgica. Mikio Kawai Júnior, diretor executivo da comercializadora Safira Energia, prevê, em um cenário de 2015 sem racionamento, incremento de 3,2% no consumo total do mercado cativo e de 0,9% no mercado livre. O recuo em relação ao ano passado se deve à adoção da bandeira tarifária e dos reajustes programados ao longo do ano, que devem encarecer a conta em até 40%. "Mesmo assim não haverá um efeito inibidor forte", diz ele.

 

Ausência de medidas preventivas deixa situação crítica para ano de alta de tarifas

 

 Ao não tomar medidas para estimular a redução do consumo de energia no ano passado, o governo terá uma tarefa mais árdua para incentivar o consumidor a racionalizar o uso da energia este ano, quando ao mesmo tempo haverá um reajuste tarifário superior a 20% e podendo chegar a 40%. A avaliação é de especialistas consultados pelo Valor e que defendem a adoção de ações de estímulo à economia de energia. Segundo Priscila Lino, diretora da consultoria PSR, o risco de um racionamento de energia já supera 50% nas regiões Sudeste, Centro- Oeste e Sul, devido aos baixos volumes de vazões registrados em janeiro e às sucessivas baixas nos níveis dos reservatórios hidrelétricos dessas regiões. A estimativa atual, segundo Priscila, tem como base a informação hidrológica divulgada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) na última sexta-feira. Em dezembro, a consultoria previa um risco significativamente mais baixo, de 21%. A estimativa, porém, é de "um indicador bastante dinâmico e fortemente influenciado pela evolução das condições de suprimento do sistema", que incluem oferta e demanda, além da situação hidrológica, afirma Priscila. Para contornar essa situação, é preciso implantar um programa de racionalização do uso da energia, com conscientização da população do uso adequado para poupar recursos naturais, diz ela. "Como o 'tarifaço' para repasse dos custos acumulados de 2013 e 2014 é inevitável, o governo precisa conscientizar a população de que a economia de energia é a solução para evitar problemas nos orçamentos familiares". Joísa Dutra, ex-diretora da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (FGV/ CERI), concorda com essa avaliação. "O governo tem responsabilidade de propor realismo não apenas tarifário. Da mesma forma que se postergou essa questão do realismo tarifário, é importante que agora pelo menos se aprenda com isso. Se existem dificuldades [no suprimento], é preciso entender que existem benefícios em apresentar as condições aos consumidores", explicou ela. Joísa lembrou que, após a crise de 2001, foi observado o potencial de resposta do consumidor aos problemas do sistema. "A resposta da demanda é um dos recursos mais rápidos", afirmou. Diretora da consultoria Engenho e uma das criadoras do modelo computacional utilizado pelo ONS para a operação do sistema, Leontina Pinto ressalta que medidas de racionalização do uso de energia deveriam ter sido adotadas desde o ano passado, mas foram postergadas devido ao prejuízo político em ano eleitoral. "Bato muito na tecla que racionamento não é vergonha. O sistema é planejado para um determinado risco. Se você quisesse correr um risco menor ainda, você teria uma energia muito mais cara. O risco geralmente é de 5%. Isso é premissa básica do setor. O ruim é que, em um momento desses, a gente [governo] nega o risco e o consumidor continua estimulado a consumir", disse a especialista. A diretora da Engenho afirmou que a primeira medida que deve ser adotada é a conscientização da população e a negociação com grandes consumidores industriais. "No racionamento passado aconteceu isso. Houve uma conversa grande com os consumidores. A pior coisa que pode acontecer é um corte intempestivo", explicou Leontina,que defendeu ainda a divulgação de uma campanha na televisão. Para Leontina, o custo do "realismo tarifário", ou o repasse das medidas adotadas pelo governo nos últimos anos para socorrer as distribuidoras e evitar pressão tarifária em período eleitoral, será superior aos 40% já cogitados no mercado. Segundo ela, fazer redução do consumo de energia este ano é pior do que se isso tivesse sido feito no ano passado. "Agora vai ter que convencer a população a aceitar um reajuste de 40% e ainda ter que cortar energia". Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel/UFRJ), também é a favor de um programa de incentivo à redução do consumo de energia. "Enquanto o governo não buscar estimular a redução do consumo, vamos ficar sujeitos a um problema de blecaute como esse", disse Castro, se referindo à última segunda-feira. Ontem, o presidente da concessionária Santo Antônio Energia, Eduardo de Melo Pinto, rebateu a posição do governo de que o atraso na construção da usina de mesmo nome, localizada no rio Madeira (RO), contribuiu para a ocorrência da interrupção no fornecimento que atingiu as regiões da última segunda-feira. "A usina não está atrasada, nunca esteve e continuará sem estar", disse o executivo. Ele explicou que o compromisso de prazo assumido no leilão da usina, realizado em dezembro de 2007, está em dia. Segundo ele, na época do leilão, foi prevista uma antecipação de 12 meses para vender energia no mercado de curto prazo (spot), que não exerce pressão direta sobre a demanda das distribuidoras nos últimos dias. Ele ressaltou que apenas esse prazo não foi cumprido integralmente, com atraso efetivo de três meses. Pinto disse ainda que propôs ao Ministério de Minas e Energia o acréscimo de 150 MW médios à usina. Segundo ele, a iniciativa "pode ajudar" o governo a enfrentar a crise atual de oferta no sistema elétrico. A ideia dos empreendedores da hidrelétrica é garantir ao projeto um aumento da garantia física, parâmetro que reflete a capacidade de geração efetiva de uma usina. O presidente da Santo Antônio Energia afirmou que a medida não exigiria a instalação de turbinas adicionais, apenas ajustes na unidades de geração atualmente previstas. Se a medida fora aprovada pelo governo, o acréscimo pode ser oferecido entre 60 e 90 dias.

 
 
"Está bem claro que a situação atual tem a ver com o clima", diz especialista
 

A estrutura do sistema elétrico brasileiro foi desenhada para ele ser abastecido majoritariamente pelo regime de chuvas. Uma seca prolongada como a atual, que vem desde o início do ano passado e ameaça durar ao menos dois anos, retirou o "combustível" que abastece a geração das hidrelétricas, com capacidade instalada para atender a até 90% da necessidade do país. Além disso, um segundo problema se somou à seca para pintar um 2015 com dificuldades no abastecimento de energia a indústrias, comércio e residências: o parque suplementar - termelétricas - não foi desenhado para funcionar ininterruptamente na capacidade total, o que o torna sujeito a possíveis falhas. Essa é a avaliação da situação atual e dos entraves do sistema elétrico brasileiro de Virginia Parente, professora do Instituto de Energia Elétrica (IEE) da USP. A seguir os principais trechos da entrevista. Valor: A que se deve o blecaute ocorrido no país nesta semana? Virginia Parente: O parque gerador brasileiro é como se fosse uma frota de automóveis. 70% dela é composta por carros movidos a água (hidrelétricas) e 30% movida a outros combustíveis (termelétricas). Em condições normais, esses 70% de máquinas são suficientes para atender a 90% da demanda. O restante é coberto por quem tem o combustível mais barato da outra frota. O que excede a demanda fica de prontidão caso haja alguma dificuldade com os carros movidos a água. O problema é que, como falta combustível (água) para esses 70% de máquinas rodarem como poderiam, foi preciso acionar a outra parte da frota. E essa outra frota está rodando no limite desde o ano passado mesmo sem ser desenhada para isso. Logo, o sistema, sob estresse, não consegue atender à demanda de maneira satisfatória. Mas não porque faltam máquinas (hidrelétricas), mas sim porque estamos em uma situação de escassez de combustível (água) desde o começo do ano passado. Valor: Mas o parque gerador não deveria prever esse tipo de situação? Virginia: Há um deslocamento entre o que foi previamente planejado para o sistema e a necessidade de despacho de energia. Foi planejado que as térmicas funcionassem menos, primeiro para poder ser feita a manutenção e segundo, e principal, em função do aumento de custo que elas trazem ao sistema. Agora, todas as usinas estão operando o tempo todo, pois estamos diante de um momento climático muito atípico, com recorde atrás de recorde de temperatura e escassez absurda de água. Isso significa que mesmo que exista folga de capacidade instalada, o que é real, o sistema ficou muito pressionado, porque grande parte dele está sem combustível para rodar. Valor: A diminuição do nível de reserva de operação no ano passado não foi um dos responsáveis pela insegurança do sistema? Virginia: Havia uma situação de reservatórios pressionados e custos já nas alturas. Se você tenta manter os 5% de reserva em relação à demanda, mesmo que essas outras usinas não precisem entregar a energia aos consumidores, elas recebem só por ficar de prontidão. A questão é: vale ter mais térmicas instaladas para ficar de "stand by" e encarecer o preço futuro de uma conta que já está salgada? E lembrando que uma térmica demora dois anos para ser construída. Valor: Então quais são as opções executáveis para não ser necessário o racionamento no segundo semestre? Virginia: No curtíssimo prazo, só tem como atuar na restrição dademanda, com campanhas de uso consciente de energia e incentivos para quem diminuir consumo nos horários de pico ou taxas para quem aumentar. Acho que está bem claro que a situação atual tem a ver com o clima. O processo tem que ser o mais transparente possível e a população precisa ser alertada de que estamos em um momento atípico e que a energia é um bem escasso e caro. No médio prazo, seria necessário considerar mais térmicas ou eólicas, que possuem espaço para crescer. No longo prazo, é preciso aumentar o tamanho dos reservatórios já existentes. Mas, se mesmo assim não vier chuva, a situação permanecerá muito delicada.