Apesar de todas as ajudas dadas ao longo do ano passado, o Tesouro Nacional ainda “deve” dezenas de bilhões às principais empresas estatais. Os economistas Gabriel Leal de Barros, Bernardo Guelber Fajardo e José Roberto Afonso, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), vasculharam os balanços das cinco estatais mais importantes e encontraram um passivo líquido do Tesouro com essas controladas no valor de R$ 34,6 bilhões.

O levantamento considera as dívidas e os créditos das estatais entre si e delas diretamente com o seu controlador comum – as chamadas “relações cruzadas” -, mas com o olhar para aquelas operações com impacto no resultado primário da União. Na avaliação dos economistas, o volume reflete, justamente, as alterações da política econômica ao longo do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, com ênfase nas chamadas políticas anticíclicas.

O montante, explica Barros, representa apenas uma parcela da dívida total, já que não inclui os restos a pagar (que também têm impacto no resultado primário do setor público) e desconsidera dívidas financeiras (porque não possuem impacto fiscal de curto prazo). A principal conta é direta do Tesouro com o BNDES, na qual a instituição financeira tem a receber R$ 30,6 bilhões referentes à equalização de juros de diferentes programas, entre eles o Programa de Sustentação do Investimento (PSI). Na direção oposta, a maior devedora é a Eletrobrás, que tem uma conta a pagar de R$ 14,4 bilhões, metade devida à Petrobras, metade ao BNDES, sempre de acordo com informações registradas no balanço de uma ou mais dessas companhias.

Para chegar a esses dados, os pesquisadores do Ibre identificaram quais estatais possuem maior representatividade nos valores mobiliários da União. Eles buscaram essa informação na “Prestação de Contas Anual do Presidente da República – 2013″. Com base nesse documento, chegaram às conhecidas Petrobras, Eletrobrás e Banco do Brasil (sociedades de economia mista) e BNDES e Caixa Econômica Federal (empresas públicas).

A partir daí, analisaram os relatórios financeiros do terceiro trimestre (no caso da Petrobras, foi utilizado o balanço do primeiro semestre), restringindo a análise aos balanços patrimoniais e suas respectivas notas explicativas. Barros relata que a tarefa foi extremamente difícil, porque a abertura dos balanços não é homogênea, e passivos listados em um não necessariamente aparecem como ativos na demonstração da estatal correspondente. “Por isso, tratamos esse valor como uma aproximação, um primeiro resultado do que pode ser o tamanho do ‘buraco’”, observa ele.

Um exemplo dessa “diferença” está na relação entre BNDES e Eletrobrás. O BNDES registra que detém R$ 7,2 bilhões a título de créditos contra o sistema Eletrobrás, mas esse montante não está identificado nos demonstrativos do grupo estatal do setor elétrico.

Barros pondera que a proliferação de operações envolvendo o Tesouro e as estatais – e estas entre si – criaram uma espécie de orçamento paralelo, sobre o qual existe pouca transparência. Como exemplos dessa política, os economistas listam a capitalização da Petrobras (que envolveu o fundo soberano e o BNDES), em 2010, as capitalizações das instituições federais, em especial o BNDES, a “vigorosa escalada” dos pagamentos de dividendos das estatais ao Tesouro, os empréstimos dos bancos públicos para socorrer as distribuidoras de energia e o atraso de pagamento de despesas primárias (as chamadas “pedaladas”), que levaram a Caixa Econômica a bancar várias destas despesas.

“Esse passivo dos anos anteriores, em algum momento, vai ter que entrar na conta do ajuste fiscal”, observa Barros. Fajardo acrescenta que a intenção do estudo, nesse primeiro momento, foi verificar os “esqueletos” que teriam impacto no resultado primário e que não são contabilizados na dívida pública. “Ou seja, a pergunta é: se o Tesouro quisesse normalizar as contas e quitar esses esqueletos, quanto ele teria que desembolsar?”, explica o economista. E a resposta é que essa fatura é de cerca de R$ 35 bilhões em cálculos preliminares.

 

Relatório do TCU revela que BC deixou R$ 40 bilhões de fora da dívida federal

Murillo Camarotto e Alex Ribeiro De Brasília

 

Após fiscalizar por quase dois meses a contabilidade do governo, os auditores do Tribunal de Contas da União (TCU) defenderam que oBanco CENTRAL (BC) incorpore à dívida pública um esqueleto de quase R$ 40 bilhões, construído na esteira das chamadas “pedaladas fiscais”. O montante se refere a dívidas da União com bancos e fundos federais que não foram devidamente contabilizadas, resultando em distorções significativas no resultado fiscal dos últimos anos.

O “esqueleto” foi sendo acumulado ao longo do tempo, aproveitando flancos na contabilidade usada pelo Banco CENTRAL para apurar o resultado primário e a dívida líquida e bruta do setor público. De acordo com números constantes no relatório de fiscalização do TCU, obtido pelo Valor, somente nos seis primeiros meses de 2014 o governo “pedalou” o equivalente a R$ 7,1 bilhões em pagamentos ao Banco do Brasil, BNDES e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

“Pedaladas” é como ficaram conhecidas as postergações de pagamentos de despesas pelo governo para melhorar resultados fiscais no curto prazo, empurrando o problema para frente. 

Em todo o ano de 2013, o rombo que deixou de ser incluído na Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) foi de R$ 7,5 bilhões, segundo documentos colhidos junto aos órgãos pelos técnicos do Tribunal.

A conta já exclui as pedaladas feitas em operações com a Caixa Econômica Federal, que teve que usar recursos próprios para quitar benefícios do programa Bolsa Família, do seguro-desemprego e do abono salarial. Essas transações também não vinham sendo contabilizadas na dívida pública, mas o BC passou a registrá-las poucos dias após a denúncia que deu origem à fiscalização do TCU, em agosto. Ao assimilar todos os débitos retroativos dessas pedaladas, o BC já incorporou esse esqueleto na DLSP.

O esqueleto de R$ 40 bilhões equivale a aproximadamente 0,8% do PIB. Sem as pedaladas, provavelmente o governo registraria um déficit primário em 2014, e não o equilíbrio (proporção zero do PIB) previsto pelos analistas econômicos do mercado. Também teria dificuldades em cumprir as metas de primário de anos anteriores.

Do total de passivos que deixaram de ser contabilizados nos últimos anos, o mais representativo recai sobre as operações com o FGTS. Somente os atrasos nos repasses relacionados à arrecadação da contribuição social adicional ao FGTS pagas pelos empregadores quando dispensam trabalhadores sem justa causa somavam R$ 10 bilhões em outubro do ano passado. Já os adiantamentos feitos pelo FGTS para o financiamento do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida estavam em R$ 7,6 bilhões em setembro de 2014. 

Questionado sobre os motivos de não ter contabilizado os valores na dívida pública, o BC argumentou aos auditores que os recursos do FGTS “pertencem aos trabalhadores, que nele mantêm contas nominalmente identificadas”.

Além disso, a autoridade monetária alegou não ter atribuição fiscalizatória sobre o fundo.

Mas a tese não convenceu os técnicos do TCU, que recomendaram ao ministro relator do caso, José Múcio Monteiro, que determine o registro integral dos valores apontados.

Outro buraco negro identificado na dívida pública federal está no Programa de Sustentação do Investimento (PSI), coordenado pelo BNDES. De acordo com o relatório, o BC tem que registrar na dívida líquida do setor público passivo total de R$ 19,6 bilhões, o que representa acréscimo de R$ 12,1 bilhões em relação ao valor contabilizado em junho de 2014. 

Também há problemas em programas subsidiados do Banco do Brasil. O maior deles está na equalização das taxas de juros do programa de safra agrícola. O relatório do TCU aponta a necessidade de contabilização, na DLSP, de R$ 7,9 bilhões em passivos da União com a instituição financeira. 

Há ainda R$ 1,8 bilhão contabilizados pelo BB como “títulos e créditos a receber do Tesouro” e que não estão registrados na DLSP. 

Os quase R$ 40 bilhões pendentes de contabilização na dívida federal descortinam o vasto repertório de brechas que permitiram que as pedaladas ocorressem. Sem a devida identificação nos livros contábeis, o déficit dessas operações se apresentou menor do que deveria, motivo pelo qual, além de recomendar que o BC reconheça os passivos, o TCU determinou o recálculo do resultado primário de todas as operações. 

“O fato de o Banco CENTRAL não registrar um passivo da União nas estatísticas fiscais faz com que o déficit primário a ser apurado seja postergado para o momento em que a União efetua o pagamento do respectivo passivo e não para o momento em que o mesmo se tornou devido”, explica o relatório do TCU

A auditoria reconheceu que em todas as operações mencionadas houve operação de crédito entre bancos federais e União, o que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Além dos empréstimos ilegais identificados no pagamento, pela Caixa, de benefícios do programa Bolsa Família, os técnicos do tribunal viram operação de crédito configurada com o BNDES.

“Frise-se que, ainda que vedada, a operação de crédito ocorreu.

Desse modo, deixaram de ser observadas as condições da Lei de Responsabilidade Fiscal”, diz o relatório, referindo-se a uma operação com o BNDES.

O fato de o TCU querer a correção das estatísticas fiscais de forma retroativa pode ajudar nos esforços fiscais da nova equipe econômica, porque faz a limpeza de esqueletos. A obrigação de por em dia pagamentos de subsídios e outras pedaladas são um dos fatores que tornam mais difíceis o cumprimento da meta de superávit primário de 1,2% do PIB definida para este ano.