A injeção na economia de bilhões de euros recém-impressos, usados para comprar títulos, poderia provocar a alta dos preços, algo necessário agora, mas que pode se tornar problemático no futuro.Bloomberg News

O Banco Central Europeu está prestes a cruzar novas fronteiras na sua reunião de política monetária de quinta-feira, quando deve decidir se vai ou não lançar um polêmico programa de compra de títulos soberanos destinado a estimular a estagnada economia da zona do euro.

O banco terá o desafio de elaborar um plano que agrade os investidores, seja aceito pelos dirigentes mais conservadores do BCE e — acima de tudo — ajude a tirar a Europa da pasmaceira.

As apostas são altas, e não apenas para os 19 países que utilizam o euro. A perspectiva de um amplo estímulo do BCE já provocou abalos no mundo dos bancos centrais. Na semana passada, a fraqueza persistente do euro acabou forçando o Banco Nacional da Suíça a abandonar um limite para a valorização do franco suíço em relação à moeda comum, causando turbulências nos mercados financeiros globais.

 

Ontem, o banco central da Dinamarca decidiu cortar suas taxas básicas de juros, também numa aparente antecipação ao programa do BCE.

A expectativa de que o BCE vai embarcar numa compra em grande escala de títulos governamentais está tão disseminada que o presidente da França, François Hollande, declarou ontem com inusitada franqueza que o BCE vai se decidir pelo programa na quinta-feira. O banco central, que defende vigorosamente sua independência contra a ingerência política, não quis comentar. Angela Merkel, a chanceler alemã, ressaltou mais tarde que o BCE toma suas decisões de forma independente e que ela “não diria que é uma semana de ‘vai ou racha’ para o euro”.

Os investidores dizem que um potencial amplo estímulo do BCE já foi em grande parte absorvido pelo mercado. Cerca de 25% do mercado de títulos soberanos da zona do euro, que movimenta 5 trilhões de euros (US$ 5,8 trilhões), está agora pagando rendimentos negativos, segundo o Bank of America Merrill Lynch, comparado com apenas 10% em outubro — um sinal de que os investidores se posicionaram para um programa de compra de títulos em alta escala, que vai tender a elevar os preços dos títulos e reduzir os rendimentos.

As próprias autoridades do BCE têm alimentado essas esperanças, indicando nas últimas semanas que pretendiam adicionar até 1 trilhão de euros à carteira de ativos do banco. O mercado de títulos soberanos é a única classe de ativos na Europa que atinge essa magnitude.

Mas há desafios maiores que simplesmente encontrar grandes quantidades de títulos de dívida para comprar. O BCE está às voltas com a fraqueza crônica de um grupo de economias, como França, Grécia e Itália. A instituição também enfrenta questões relativas a seu papel e identidade — principalmente se um banco central criado à imagem do conservador Bundesbank, o banco central alemão, e cuja filosofia gira em torno das preocupações inflacionárias do século XX pode agora se lançar ao uso de ferramentas inovadoras para combater crises financeiras recorrentes e ameaças deflacionárias.

“O BCE deveria realmente se graduar como um banco central moderno que usa esse instrumento”, diz Paul De Grauwe, professor da London School de Economics. “A única maneira de atingir esse ponto é fazendo.”

Compras de títulos de dívida pública em larga escala, uma prática conhecida como relaxamento quantitativo (ou QE, na sigla em inglês), tornou-se parte integrante do kit de ferramentas de bancos centrais nos Estados Unidos, Reino Unido e Japão para reduzir os juros de longo prazo.

Mas mesmo depois das várias experiências de outros bancos centrais, o BCE — que foi criado em 1998 — enfrenta muitas incertezas. Não há ativos federais para comprar porque a zona do euro não tem um mercado de dívida comum. Em vez disso, o bloco conta com 19 mercados diferentes de títulos com classificações de crédito que vão desde alto risco (Grécia) até a máxima AAA (Alemanha). Os rendimentos dos títulos estão perto de mínimos recorde em quase toda a região, um sinal de que o BCE pode não conseguir empurrá-los muito mais para baixo.

Ainda assim, diante da primeira queda em cinco anos nos preços ao consumidor da zona do euro e do crescimento anêmico da economia da região, estimada em US$ 13,2 trilhões, a imagem do BCE como instituição mais confiável da Europa pode sair arranhada se o banco lançar o relaxamento quantitativo na quinta-feira e a medida não gerar resultados rápidos.

“O maior risco é definitivamente que o BCE decepcione. A expectativa é tão grande”, diz Iain Lindsay, gestor de portfólio de renda fixa da Goldman Sachs GS +0.81% Asset Managment, que administra US$ 1 trilhão em ativos.

Nick Gartside, diretor de investimento em renda fixa da J.P. Morgan Asset Management, traça um paralelo com o início do relaxamento quantitativo no Japão, em abril de 2013. Na época, os títulos japoneses caíram, a bolsa disparou e o iene se desvalorizou cerca de 25% ante o dólar diante da promessa do Banco do Japão de injetar cerca de US$ 1,4 trilhão na economia.

Isso mostra que QE pode ter um impacto muito poderoso sobre mercados locais de câmbio e ações, diz Gartside, que acredita que o mesmo deve ocorrer com as bolsas europeias.

O BCE já recorreu à compra de títulos soberanos antes, tendo adquirido mais de 200 bilhões de euros em bônus da Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália em 2010 e 2011, no auge da crise da dívida grega. Mas, diante da sua pequena escala e da oposição da Alemanha, o programa não conseguiu restaurar a ordem na zona do euro. O Bundesbank — o banco central mais poderoso da Europa — sinalizou que vai se opor ao QE na quinta-feira.

A compra de títulos públicos desperta duas velhas fobias nos alemães: inflação e o controle político de bancos centrais. A injeção na economia de bilhões de euros recém-impressos, usados para comprar os títulos, poderia provocar a alta dos preços, o que é necessário agora, mas poderia se tornar problemático no futuro, dizem críticos do QE. E se os rendimentos dos títulos caírem ainda mais, países muito endividados, como a Itália, podem se sentir menos pressionados a fazer reformas de alto custo político. “É uma operação muito arriscada considerando os desincentivos para que os governos coloquem ordem nas suas casas”, diz Jürgen Stark, economista alemão e ex-membro do conselho executivo do BCE.

Enquanto o BCE se prepara para lançar seu programa de compra de ativos, o Federal Reserve, banco central americano, continua na sua trajetória para elevar os juros de curto prazo neste ano. As políticas divergentes para estimular o crédito numa região e restringí-lo na outra são emblemáticas de um cenário de desequilíbrio na economia global que não se observava em quase 20 anos. A diferença entre os níveis de desemprego na Europa (11,5% em novembro) e nos EUA (5,6% em dezembro) é a maior desde o surgimento do euro, em 1999.

Quando as economias se movem em sincronia, é mais fácil para as autoridades coordenar suas respostas, como ficou evidente durante a crise financeira de 2007 a 2009, quando bancos centrais, incluindo o BCE e o Fed, coordenaram cortes de juros e linhas de swaps cambiais para conter o pânico que se espalhava pelos mercados.

Ainda assim, o Fed está discretamente apoiando a iniciativa do BCE. A ata da última reunião do banco central dos EUA mostra receios de que as respostas de outros países à fraqueza da economia não sejam suficientes.