Quando todos os detalhes da operação Lava-Jato forem enfim revelados, ganhará intensidade a acusação de que a lambança ocorrida na Petrobras é prova eloquente da falência do nosso sistema político partidário, corretamente sintetizado pela expressão "presidencialismo de coalizão". Quando todos os detalhes da operação Lava-Jato forem enfim revelados, ganhará intensidade a acusação de que a lambança ocorrida na Petrobras é prova eloquente da falência do nosso sistema político partidário, corretamente sintetizado pela expressão "presidencialismo de coalizão". O fio da meada acusatório conecta o presidencialismo de coalizão à distribuição de cargos da administração federal a apaniguados dos políticos aliados. Daí à corrupção seria um passo, pequeno. O raciocínio é persuasivo. Ademais, parece corroborado pela realidade. Afinal, o escândalo envolvendo a Petrobras não é justamente uma prova cabal de que o presidencialismo de coalizão alimenta a corrupção? Não, não é. A correlação percebida entre presidencialismo de coalizão e corrupção é espúria. O presidencialismo de coalizão é simplesmente um rótulo engenhoso que descreve o modelo institucional que organiza a política em países nos quais convivem o sistema presidencialista e o pluripartidarismo, como ocorre no Brasil e em outros países. Não há no presidencialismo de coalizão uma malignidade intrínseca que o condene a ser necessariamente um vetor para a corrupção. Avançamos no combate à corrupção não por dádiva de um grupo político, mas pela construção coletiva Ou melhor, para quem, por impulso ou de maneira refletida, defende o contrário, existe sim um ovo de serpente incrustrado nesse modelo: a ocupação política do Estado, aqui entendida como a distribuição de cargos para políticos e partidos aliados. Subjacente a esse raciocínio está a concepção de que os políticos profissionais são mais propensos à corrupção que os demais mortais. Caso contrário, ao menos quanto ao aspecto da corrupção - se a questão for a eficiência da gestão, a discussão é outra -, não haveria problema algum em deixar nas mãos dos políticos e seus aliados uma diretoria de estatal que "fura poço e acha petróleo", como dizia o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, afastado do cargo pouco tempo depois dessa declaração, após surgirem provas de que extorquia o concessionário do restaurante da Câmara. Para muitos é indiscutível que os políticos são mais corruptíveis. Essa, contudo, pode ser uma visão preconceituosa, pois não há evidências sólidas que a sustentem. A Lava-Jato, por exemplo, está revelando participação relevante de não políticos na roubalheira. Aliás, acerca da corrupção há poucas evidências sólidas, para não dizer nenhuma. É uma atividade que transcorre na penumbra e, como tal, não se presta a mensurações objetivas. Se o senso comum estiver errado e se políticos e não políticos tiverem a mesma propensão a delinquir, não há porque reclamar da ocupação política do Estado. Mas, e se os políticos, por alguma razão que não importa discutir aqui, forem mesmo inclinados à corrupção, terão razão os que pregam contra a possibilidade de os políticos ocuparem direta ou indiretamente postos no governo? Sob o ponto de vista estritamente lógico, a resposta é afirmativa. Mas isso não é o ponto final da discussão. Ao contrário, torna-a mais complicada, pois a ocupação política do Estado é inerente ao regime democrático. A eleição, em última instância, serve justamente para isso. É uma maneira de selecionar entre grupos políticos rivais aquele que terá legitimidade, conferida pelo voto, para, respeitados os limites da lei, assumir o controle da máquina do governo. Portanto, no sistema democrático é impossível barrar integralmente o acesso dos políticos ao aparelho estatal. Essa, simplesmente, não é uma medida viável de combate à corrupção, seja qual for o sistema político vigente. Vale para o presidencialismo de coalizão ou para o seu antípoda mais evidente, o presidencialismo bipartidário. Por certo, as próprias exigências da administração pública moderna impedem que a ocupação política do estado se estenda por toda a máquina pública, como ocorria no chamado spoil system vigente nos Estados Unidos até o início da década passada. Não há como trocar todos os servidores públicos a cada vez que um grupo político substitui outro no comando do governo. Resta então a questão de estabelecer qual é a repartição mais adequada da máquina pública entre os postos burocráticos e os abertos à ocupação política. É conveniente entregar diretorias da Petrobras a grupos políticos? É adequado manter na estrutura do governo federal 20 e tantos mil cargos comissionados de livre provimento, e, portanto, disponíveis a serem preenchidos por indicações políticas? É muito? Qual número então seria adequado? 10 mil, cinco mil, algumas centenas, dezenas, trinta e nove (número atual de ministérios do governo Dilma)? Embora a resposta possa ser balizada por parâmetros técnicos e econômicos, a linha demarcatória, ao final das contas, será fixada politicamente pela sociedade, em primeiro lugar, e, posteriormente, pelo grupo político governante. Se os políticos, em tese, são, em média, mais propensos à corrupção e se não há como na democracia insular plenamente o Estado da política, estamos então de mãos atadas para combater a corrupção? Não, e a operação Lava-Jato mostra isso com bastante clareza. O combate efetivo e realista à corrupção deve ser feito por meio de um arranjo institucional capaz de fiscalizar e punir os desvios. Quanto a isso estamos avançando no Brasil, não por dádiva de um grupo político, mas pela construção coletiva da sociedade e da classe política que, na Constituinte, consagraram a independência do Judiciário e do Ministério Público e fundaram as bases para a autonomia operacional do aparato policial do Estado. Complementado pela liberdade de opinião e pela imprensa livre, esse arranjo está se tornando progressivamente eficaz na batalha contra a corrupção, mesmo sob o tão criticado presidencialismo de coalizão. Enfim, o arcabouço essencial de combate à corrupção já existe e está começando a funcionar bem, o que, quanto a esse aspecto, torna a reforma política dispensável.

 

 

Ricardo Ribeiro é mestre em ciência política pela USP e analista político da MCM Consultores.