O sangrento ataque de ontem à sede de uma revista satírica em Paris deixou a França em estado de choque e pôs toda a Europa em estado de alerta. A polícia francesa disse realizar uma “caçada sem precedentes” dos atiradores. Houve manifestações de apoio à revista e à liberdade de expressão em cidades francesas e de outros países. Líderes mundiais condenaram o ataque, que pode inflamar mais o crescente sentimento contra a imigração muçulmana na Europa.

Um comando formado por três homens encapuzados e portando fuzis de assalto invadiu na manhã de ontem a sede da revista “Charlie Hedbo”, matando 12 pessoas na operação, incluindo quatro dos mais importantes cartunistas franceses: Cabu, Charb, Tignous e Wolinski. Outras quatro pessoas foram gravemente feridas. Wolinski, de 80 anos, influenciou gerações de cartunistas pelo mundo com seu humor erótico-político.

Nenhum grupo tinha assumido a autoria do ataque até a noite de ontem, mas, segundo relatos, os atiradores diziam ser membros da rede terrorista Al Qaeda do Iêmen, estar “vingando o profeta” e gritavam “Allahu Akbar” (deus é grande, em árabe). Segundo a mídia francesa, os três seriam os irmãos Said Kuachi e Cherif Kuachi, ambos franceses, de 32 e 34 anos, respectivamente, e Hamyd Murad, de 18 anos, de nacionalidade ainda desconhecida. A polícia cercou um prédio em Reims, a cerca de 150 quilômetros de Paris, mas não havia confirmação sobre se os suspeitos haviam sido presos.

A “Charlie Hedbo” já havia sido ameaçada várias vezes devido à publicação de charges consideradas ofensivas por muçulmanos, inclusive representando o profeta Maomé, o que é proibido no islamismo. Em 2011, a sede da revista foi atacada por uma bomba incendiária, mas não houve feridos.

Por causa das ameaças, o editor-chefe da “Charlie Hedbo”, Stephane Charbonnier, conhecido como Charb, tinha proteção policial. Ele e o policial foram os primeiros a serem mortos na redação. Outro policial foi morto na rua.

Autoridades francesas disseram que o país montou uma “caçada sem precedentes” para capturar o grupo, que agiu com frieza e parecia ter experiência militar. Vários países europeus elevaram o alerta de segurança e reforçaram a proteção de meios de comunicação.

Analistas admitem uma possível ação da Al Qaeda. O grupo vem perdendo espaço dentro do radicalismo islâmico com a recente ascensão da milícia Isis na Síria e no Iraque. A Al Qaeda, que se celebrizou pelos atentados de 11 de setembro de 2001, nos EUA, estaria precisando de alguma ação com visibilidade para recuperar seu prestígio. Mas muitos países vêm alertando também contra o retorno de jihadistas com nacionalidade europeia que foram combater com a milícia Isis.

“Era um comando bem armado numa missão”, disse Emmanuel Quemener, do sindicato de policiais Alliance. “Eles tinham armas de guerra, incluindo Kalashnikovs. Nunca vimos nada disso antes.”

O presidente francês, François Hollande, disse que foi um ato “de excepcional barbárie” e que outros atentados foram evitados recentemente, sem dar detalhes. Ele pediu aos franceses que se unam num momento de insegurança. “Vamos nos unir, e nós venceremos.”

O presidente dos EUA, Barack Obama, ligou para Hollande e prometeu ajuda na caça aos terroristas. “Os valores que compartilhamos, a crença universal na liberdade de expressão, não podem ser silenciados por causa da violência de uns poucos”, disse Obama.

A presidente Dilma Rousseff divulgou nota dizendo-se indignada e condenando o “ataque inaceitável” à liberdade de imprensa.

Vários jornais europeus anteciparam ontem suas capas de hoje, dedicadas ao ataque e à defesa da liberdade de expressão. A frase “Je Suis Charlie” (eu sou Charlie), de apoio à revista, tomou conta das redes sociais ontem.

O ataque ameaça inflamar o crescente, ou pelo menos cada vez mais visível, sentimento contra a imigração muçulmana em vários países europeus. O Pegida, movimento anti-islâmico surgido na Alemanha, disse que o ataque reforça a ameaça da violência islâmica. Nas últimas semanas, houve manifestações na Alemanha, promovidas pelo grupo, que diz combater a islamização da Europa, e na França. Na Suécia, três mesquitas foram alvos de ataques, sem vítimas. Houve também manifestações a favor dos imigrantes.

O atentado pode ainda favorecer partidos e grupos de extrema-direita que se opõem à imigração e ao islamismo na Europa. “Acabou o tempo para negação e hipocrisia. A absoluta rejeição do fundamentalismo islâmico precisa ser proclamada alta e claramente”, disse Marine le Pen, da Frente Nacional e que aparece à frente nas pesquisas para a Presidência na França.

Líderes de países islâmicos e entidades civis e religiosas muçulmanas de vários países, inclusive do Brasil, condenaram o ataque e buscaram dissociar o radicalismo violento da religião e das comunidades islâmicas.

 

Um ataque calculado contra a democracia

 

O ataque sangrento à revista "Charlie Hebdo" só pode provocar a mais profunda repulsa. Essa foi uma atrocidade terrorista terrível que já custou a vida de pelo menos 12 pessoas inocentes.

Nossa primeira reação deve ser lamentar as vítimas, quatro das quais eram bem conhecidos cartunistas da revista e dois eram policiais. Mas isso foi mais do que uma tragédia humana. Foi um ato calculado de intimidação, um ataque à liberdade de expressão que é o pilar de qualquer sociedade democrática. Foi idealizado para semear uma forma insidiosa de autocensura. Isso precisa ser condenado firme e desafiadoramente.

Quase uma década se passou desde que um jornal dinamarquês atraiu a ira de muçulmanos devido à publicação de caricaturas satirizando o profeta Maomé. O que começou com protestos pacíficos e boicotes de consumidores logo virou violência. Essa não é a primeira vez que o "Charlie Hebdo" foi atacado por publicar seus próprios cartuns satirizando o Islã.

Mas os acontecimentos de ontem assinalam um novo e sinistro passo na escalada do conflito entre a fé e a liberdade de expressão. A visão de três homens mascarados empunhando fuzis no meio de uma capital europeia, atirando em policiais e varrendo os escritórios da revista em busca de suas vítimas, deverá, compreensivelmente, repercutir em todo o Ocidente.

Para os serviços de segurança na França e em toda a Europa, o ataque suscitará muitas perguntas. Não sabemos se os atacantes estavam no radar das autoridades francesas e se eram ajudados por grupos militantes no exterior.

Muitos dos ataques jihadistas recentes - em Sydney e Ottawa - foram realizados por "lobos solitários". A natureza concertada do ataque de ontem - e também a fuga dos atacantes da cena, em vez de recorrer a táticas de cerco e suicídio - sugere um modus operandi menos familiar.

Nos próximos dias, muitos estarão observando o impacto na sociedade francesa. Num momento de profundo mal-estar político e econômico, a Frente Nacional anti-imigrantes de Marine Le Pen poderá beneficiar-se de uma nova explosão de sentimento anti-islâmico. O ataque é um problema para as autoridades, que agora precisam encontrar os atacantes e levá-los aos tribunais. O desafio mais amplo, porém, é no sentido de os políticos e a opinião pública aderirem aos valores seculares fundamentais da França e expressarem vigorosa reação sem alimentar as chamas de uma vingança cega.

Em qualquer sociedade democrática, deve sempre haver espaço para um debate civilizado sobre os limites de bom-gosto e decoro quando se trata de zombar de qualquer fé religiosa. Mas o que não pode ser contestado é o direito fundamental de todos os cidadãos de expressarem-se livremente dentro da lei. Numa época caracterizada pelo crescimento em crenças religiosas e maior politização da fé, toda religião deve estar aberta a opiniões, análises e sátiras.

No último quarto de século, houve muitas tentativas de recorrer à intimidação para silenciar a sátira e o dissenso. O regime iraniano criou o precedente, ao decretar uma "fatwa" contra o escritor Salman Rushdie, em resposta ao seu livro "Os Versos Satânicos". A Coreia do Norte valeu-se de violência cibernética para impedir a distribuição de um filme ridicularizando seu líder, Kim Jong Un.

Agora temos o espetáculo terrível em Paris. A resposta do mundo livre a isso necessita ser inflexível. O "Charlie Hebdo" pode ser uma publicação muito distinta da nossa, mas a coragem de seus jornalistas - e seu direito de publicar - não pode ser posta em dúvida. Uma imprensa livre nada vale se seus praticantes não se sentirem livres para falar.

 

Livro sobre islamização da França foi destaque na capa da "Charlie Hebdo"

 

Michel Houellebecq não poderia ter previsto uma sequência tão horrivelmente imediata na vida real para a sua mais recente provocação literária, o romance “Soumission” (submissão), lançado ontem na França. O semanário “Charlie Hebdo” dedicou sua última capa ao romance sobre a islamização da França.

Houellebecq tem uma história de antagonismo a militantes islâmicos. Em seu romance de 2001, “Plateforme”, terroristas matam a esposa do protagonista. Ele também chamou o islamismo de “a religião mais boba [de todas]”. Ameaçado de morte, fugiu para a Irlanda – tudo isso antes do 11 de Setembro. “Você está salvo”, teria lhe dito o escritor Michel Deon enquanto assistiam aos desdobramentos do atentado ao World Trade Center. Mas, agora, Houellebecq voltou à berlinda.

O instituto Pew Research projetou em 2011 que os muçulmanos serão 10% da população da França em 2030, em relação aos 7,5% atuais. É impossível que um partido político islâmico – como a fictícia Fraternidade Muçulmana descrita em “Soumission” – possa ter adesão superior a 20% às vésperas das eleições de 2022, obrigando os partidos tradicionais a se unirem a ela para derrotar a Frente Nacional, de extrema direita.

Mesmo assim, o livro é uma poderosa ficção política recheada de nomes reais. O presidente da França, François Hollande, que, no livro, conquista a reeleição mas termina sua carreira ignorado e ridicularizado, disse que leria o romance “porque ele favorece o debate”. Marine Le Pen, que perde para o candidato muçulmano Mohammed ben Abbes no romance, disse que ele era “ficção que pode se tornar realidade”, porque os partidos tradicionais estão de fato, em sua opinião, conspirando contra ela e permitindo o florescimento do fundamentalismo islâmico.

Muitos na Europa querem que os imigrantes muçulmanos se adaptem à sociedade anfitriã. Na França, onde há uma profunda escassez de mesquitas, proíbe-se o uso em público de véus muçulmanos que cobrem o rosto.

E se, pergunta o livro, os franceses fossem orientados a se integrar aos muçulmanos nas condições deles – adotar a poligamia, proibir as mulheres de trabalhar ou exigir que se convertam ao Islã para poder dar aula na faculdade?

O autor argumenta que os muçulmanos não têm “nenhuma representação” no atual sistema político. Sugerir que, assim, militantes e terroristas se chamem para si a tarefa de defender as minorias muçulmanas na Europa é decorrência lógica desse pensamento. O “Charlie Hebdo” é, de modo geral, anticlerical, mas só foi atacado após ridicularizar o Islã, como numa edição que listava o profeta Maomé como “editor visitante”.

Não espanta que a extrema direita europeia retrate a integração como um jogo em que em que um lado precisa se submeter ao outro – afinal, não é isso o que os muçulmanos querem? Como diz um personagem de “Soumission”:

“Eles não colocam a economia no centro das coisas. Para eles, a dinâmica demográfica e a educação são essenciais. A subpopulação que tem a maior taxa de natalidade e que consegue transmitir seus valores vence. A seus olhos, a economia, mesmo a geopolítica, são apenas engodo: os que controlam as crianças controlam o futuro.”

Não precisa ser assim. Os europeus precisam aceitar imigrantes que não querem abrir mão de suas tradições, oferecendo, ao mesmo tempo, oportunidades de uma representação política mais forte. Pode ser então mais fácil, para a maioria dos muçulmanos, reconhecer que os europeus, também, têm direito às suas tradições mais caras, como a irreverência e a liberdade intelectual.

 

Número de jihadistas europeus é alto



 

 
"Eu sou Charlie", diz cartaz na manifestação em Marselha, na França, em homenagem aos mortos no ataque à revista As autoridades francesas temiam - e alertavam para - a possibilidade de um grande ataque terrorista em solo local havia meses, uma preocupação alimentada pelo grande número de franceses recrutados por grupos islamistas lutando no Oriente Médio e pelos incidentes prévios com mortes. Em visita ao local em que 12 pessoas morreram baleadas, na região central de Paris, o presidente François Hollande declarou de imediato tratar-se de um ataque terrorista. "Não há dúvidas", disse. As suspeitas imediatas recaíram sobre militantes islamistas. A "Charlie Hebdo" repetidamente caçoou do Islã e de outras religiões com caricaturas ofensivas. Seus escritórios, sob guarda policial há anos, haviam sido atacados com bombas incendiárias no passado, depois de a revista ter parodiado a xaria, a lei canônica islâmica. A França é fonte de grandes números de cidadãos e residentes europeus que partiram para juntar-se aos militantes jihadistas na Síria e no Iraque nos últimos anos. As autoridades alertavam há algum tempo sobre o risco de "consequências negativas" com esses militantes quando regressassem. No fim de 2013, as estimativas oficiais calculavam em cerca de mil pessoas o número de cidadãos ou residentes franceses que haviam estado ou estavam em grupos islamistas no exterior. Na época, os números oficiais apontavam que cerca de 200 haviam retornado à França, dos quais mais de 50 haviam sido presos. Alguns dos que voltaram podem ter ficado desiludidos com a causa jihadista, mas as preocupações de segurança centram-se nos que podem ter driblado os controles e chegado motivados em trazer a luta para casa. A agência francesa de inteligência, a Direction Générale dela Sécurité Intérieure (DSGI), impediu cinco planos terroristas significativos nos 18 meses até dezembro, segundo o Ministério do Interior. O governo introduziu no ano passado uma legislação antiterror mais rígida em resposta à ameaça islamista, que prevê o confisco de passaportes de suspeitos jihadistas potenciais, poderes mais fortes para prender e cláusulas contra o apoio ao terrorismo pela internet. O exemplo mais claro da ameaça ocorreu em maio passado, quando Mehdi Nemmouche, um cidadão francês de 29 anos, foi detido em Marselha e acusado de um atentado ao museu Judaico em Bruxelas, alguns dias antes, em que dois israelenses e um francês foram mortos. Nemmouche havia passado um ano na Síria. Isso se seguiu ao caso de Mohammed Merah, cidadão francês que atirou contra três paraquedistas franceses e depois matou três alunos e um professor de uma escola judaica de Toulouse, em março de 2012. Ele era um "lobo solitário" que viajara, aparentemente de forma independente, ao Paquistão e ao Afeganistão, onde recebeu treinamento de grupos radicais islâmicos. Uma enxurrada de incidentes antes do Natal, no qual pedestres foram atacados por motoristas de veículos, foram minimizados pelo governo, que se mostrou relutante em rotulá-los como episódios de terrorismo. Mas eles elevaram as tensões num país que ostenta a maior população muçulmana da Europa, estimada em de 5% a 10% da população total, de 66 milhões de habitantes (a França não tem estatísticas sobre filiação religiosa).