Sem crédito na praça e com dívidas a vencer no curto prazo, as usinas de cana-de-açúcar negociam com credores a conversão de parte das dívidas em participações acionárias. Na lista dos que tiveram que realizar esse tipo de operação, estão o grupo Baldin, em 2013, e mais recentemente, a Aralco. Neste momento, o Grupo Virgolino de Oliveira (GVO), um dos mais tradicionais do segmento, segue pelo mesmo caminho. Em muitos casos nessa linha, essas negociações podem culminar na tomada do controle do negócio pelos credores.
A conversão de dívida em ações vem se tornando uma saída praticamente compulsória às usinas muito alavancadas, agora que o mercado de captação por meio de emissão de dívida externa secou. Muito usado nos últimos três anos para alongar débitos, o mercado de dívida se fechou às empresas sucroalcooleiras com a entrada da Aralco em recuperação judicial menos de um ano após a emissão de bonds e com o risco elevado de "default" do GVO.
Especialistas em avaliação de risco da agência Fitch, que acompanha a situação financeira de uma dezena de empresas do agronegócio, não veem espaço para novas captações do gênero por usinas de cana no curto prazo - nem a taxas de juros mais elevadas.
Nas últimas semanas, ao menos duas grandes companhias com operações no agronegócio e consideradas de baixo risco de crédito (Cosan e JBS) tentaram emitir títulos de dívida no exterior, mas desistiram porque o mercado estava cobrando caro demais para absorver os papéis. "Para o setor de cana-de-açúcar, que tem risco elevado, praticamente não há neste momento 'preço' para emissões externas", diz o analista corporativo da Fitch, Mauro Storino.
As companhias sucroalcooleiras mais endividadas já há alguns anos não tinham mais limite de crédito no mercado bancário tradicional, que também não oferece linhas de longo prazo, mais adequadas à necessidade dessas empresas. No entanto, encontraram no mercado de bonds investidores com mais apetite por títulos de maior risco - e remuneração mais elevada.
Captações pontuais já haviam sido feitas antes pelo setor sucroalcooleiro, mas foi a partir de 2011 que elas passaram a ser mais frequentes. Desde então, ao menos quatro grupos de médio porte emitiram dívida externa. Somando-se GVO, Aralco, Tonon Bioenergia e grupo USJ, o montante captado chega a US$ 1,79 bilhão.
No primeiro bimestre de 2015, o GVO tem a pagar US$ 40,71 milhões somente dos juros dos cupons semestrais aos bondholders - US$ 23,09 milhões em janeiro e US$ 17,62 milhões no início de fevereiro. Neste momento, a empresa negocia com esses credores uma proposta de conversão de dívidas em participação acionária. Com US$ 735 milhões captados por meio de três emissões, o grupo tende, ao fim do acordo, a perder o controle do negócio, segundo fontes ouvidas pela reportagem.
Normalmente, a conversão de dívida em ações resulta também em "desconto" da dívida. "Não é incomum que isso aconteça, pois é preciso fazer a dívida 'caber' no equity da devedora", explica o advogado Joel Thomaz Bastos, do escritório Dias Carneiro Advogados. Mesmo quando os credores assumem a propriedade do negócio, ainda que consigam vendê-lo, a recuperação dos créditos acaba sendo parcial.
A pressão no caixa das empresas tende a acelerar mais as negociações de conversão de dívida. A partir de agora, quando começa a entressafra da cana-de-açúcar, as usinas endividadas têm pouco estoque (de açúcar e etanol) a vender, o que torna a já baixa geração de caixa ainda mais apertada para arcar, muitas vezes, com compromissos básicos, como o pagamento da folha salarial.
Na semana retrasada, por exemplo, funcionários da usina Catanduva, localizada em São Paulo e uma das principais unidades sucroalcooleiras do GVO, acamparam frente à empresa para reivindicar salários atrasados. Fornecedores de cana também têm parcelas em atraso a receber do grupo.
Pressão no caixa das empresas tende a acelerar mais as negociações de conversão de dívida
A conversão de dívida em ações foi a saída dos credores da Aralco para resolver a situação da companhia, com débitos estimados em R$ 1,2 bilhão. A empresa pediu recuperação judicial em abril de 2014, menos de um ano depois de emitir bonds de US$ 250 milhões para alongar dívidas. Em novembro passado, os credores aprovaram o plano de conversão de 60% da dívida em participação acionária. O prazo dessa conversão é de 15 anos, portanto, se antes disso as usinas do grupo (transformadas em Unidades Produtivas Independentes) forem vendidas, os credores podem usar os recursos para recuperar seus créditos.
Um dos primeiros casos do setor a adotar esse tipo de solução foi o do Grupo Baldin, que detinha duas usinas de cana-de-açúcar em São Paulo. No primeiro trimestre de 2013, os credores do grupo, já dentro de um processo de recuperação judicial, converteram dívidas de R$ 500 milhões em 80% do capital social da empresa. Com isso, os fundadores da empresa ficaram com uma participação minoritária no negócio. O plano, apesar de aprovado em assembleia de credores, foi contestado na Justiça e sofreu alguns ajustes, mas se manteve o formato da conversão de ações em equity.
As usinas que não conseguiram partir para essa modalidade estão apelando para outros recursos. O grupo Unialco, com operações em São Paulo e em Mato Grosso do Sul, há um ano costura um acordo com credores, e está prestes a fechar um acordo por meio do qual entregaria suas duas unidades aos credores, a maior parte bancos, que têm a receber R$ 600 milhões. Os atuais acionistas da empresa devem ficar com as terras onde estão plantadas cana-de-açúcar, cuja propriedade está no nome de membros da família (pessoas físicas). Mesmo esperando para vender as usinas no melhor momento do mercado, os credores, no entanto, devem receber menos do que lhes seria devido.
Com dívidas que superam seu faturamento, as usinas de cana-de-açúcar atravessam uma crise que se arrasta desde 2008 e que deriva de uma combinação de elevados investimentos em aumento de capacidade, contenção dos preços dos combustíveis no país e anos consecutivos de baixos preços do açúcar. Desde então, 80 usinas de cana fecharam as portas no Brasil e 67 entraram em recuperação judicial.
Outras nove unidades, em condições financeiras muito ruins, podem não conseguir retomar as operações na próxima safra, a 2015/16, que começa em abril. "São empresas endividadas e sem produto (etanol e açúcar) para vender a partir de agora até o início da próxima safra, em abril", afirma o diretor técnico da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), Antonio de Padua Rodrigues.
Agrava a situação desses grupos o fato de os bancos estarem relutantes em injetar dinheiro novo neste momento nas companhias alavancadas. "Renovações de crédito estão sendo feitas com novas garantias ou com taxas de juros mais salgadas", afirma o analista da Fitch, Cláudio Miori.
O maior caso de conversão de dívida em ações do setor foi o que sucedeu a compra da Santelisa Vale pela francesa Louis Dreyfus Commodities. Em 2009, quando a aquisição foi feita, a própria Dreyfus avaliou a nova companhia, na época batizada de LDC-SEV e hoje Biosev, em R$ 8 bilhões. Naquela época, os bancos credores da Santelisa converteram parte da dívida em 9% da nova empresa.
 
 
Segmento tem formas alternativas de captação
 
Levantamento da consultoria FG Agro feito com 35 usinas de cana-de-açúcar que publicam balanços identificou que as empresas do setor com dívida líquida equivalente a até três vezes o lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda) têm potencial para acessar outras formas de captação mais atrativas que as linhas tradicionais, tais como os chamados títulos incentivados, que oferecem isenção de Imposto de Renda aos investidores. Nos últimos dois a três anos, alguns grupos sucroalcooleiros acessaram o mercado de recebíveis, captando em operações de emissão de Crédito de Recebíveis do Agronegócio (CRA). No setor de açúcar e álcool, fizeram operações do gênero o grupo Balbo em 2012, com a captação de R$ 50 milhões, a ETH Bioenergia (atualmente Odebrecht Agroindustrial), com R$ 110 milhões, os fornecedores da então ETH, R$ 40 milhões, além dos grupos Nardini (R$ 120 milhões), Jales Machado (R$ 41,5milhões),CMAA(R$ 99milhões), e da Raízen, que captou R$ 500 milhões por meio desses títulos Incentivados. "As usinas que têm condições de acessar esse mercado estão captando a taxas mais baixas do que as linhas bancárias tradicionais. A isenção de IR se reflete em um incentivo equivalente a três pontos percentuais", explica o sócio da FG Agro, Luiz Gustavo Torrano Correa. Ele acredita que as debêntures incentivadas, que assim como os CRAs dão isenção de IR ao investidor, tendem a avançar entre as usinas sucroalcooleiras. "Esse instrumento de captação já existia para o setor de infraestrutura e o de etanol foi incluído este ano", afirma. No estudo comparativo feito com as 35 usinas, a FG Agro identificou que a relação entre dívida líquida e Ebitda dessas companhias varia de 2 vezes a 9 vezes. "A situação do setor tem uma dispersão grande. Há empresas com margem Ebitda de 60%, outras, com 20%", observa.
 
 
Sinais de melhora nos 'caminhos da cana'
 
Ainda que 2015 tenda a ser marcado pela continuidade de um processo de concentração aprofundado pela crise dos últimos anos, o segmento sucroalcooleiro tem hoje mais motivos para acreditar em dias melhores do que no início de 2014. É o que sinaliza o estudo "Caminhos da Cana", recém-concluído pela Markestrat, organização de projetos e pesquisas com sede em Ribeirão Preto, no interior paulista. "Em razão do cenário econômico complicado, o problema do endividamento das usinas deverá se agravar. O clima continua a ser uma preocupação, mas, mesmo assim, é possível prever o início de uma tendência de recuperação do segmento", afirma Marcos Fava Neves, conselheiro da Markestrat e professor titular da FEA/USP. "Essa recuperação, contudo, não será suficiente para evitar a continuidade de uma dolorosa depuração", diz. Fava Neves também ressalva que, para se confirmar, esse cenário menos negativo depende da concretização de uma série de medidas e iniciativas que terão de ser adotadas pelos setores público e privado. Ele observa que muitas recomendações consideradas importantes para uma virada positiva continuarão apenas no papel. Todavia, enxerga nas que estão em andamento e em promessas que deverão de fato virar realidade um arcabouço já suficiente para que muitos "players" comecem a contornar problemas financeiros. Na agenda do setor público, o especialista destaca como fatores positivos praticamente garantidos a volta da cobrança da Cide na gasolina, que confere maior competitividade ao etanol hidratado, e o aumento da mistura de etanol anidro no combustível fóssil, dos atuais 25% para 27,5%. Além disso, destaca o início da aprovação de legislações que tornam obrigatória a divulgação, nas bombas dos postos, que as emissões de CO2 do biocombustível são menores. "Isso já está acontecendo em Olímpia [município paulista] e vai se espalhar". Fava Neves realça que as leis ambientais têm sido mais respeitadas do que no passado, o que é bom para o segmento. Ele acredita que haverá mais estímulo para a expansão da cogeração de energia e nota que o governo tem fortalecido as linhas de crédito para áreas agrícolas de cana e irrigação, para as quais a demanda tem se mostrado aquecida. Já questões como a melhoria e a simplificação da legislação trabalhista, do sistema tributário e do judiciário, que tanto poderiam beneficiar o segmento, dificilmente se tornarão realidade no curto prazo. Apesar de o estudo da Markestrat pregar a instituição de um programa oficial de recuperação financeira de usinas, produtores de cana e indústrias de base focadas nesse mercado, Fava Neves também não vê possibilidades reais de isso acontecer. E o especialista é igualmente pessimista quanto a melhorias logísticas, concessões de subsídios ou mesmo em relação à evolução de programas de educação e capacitação. Na agenda do setor privado, o trabalho, que é focado na região Centro-Sul do país, elege como prioridades medidas como o desenvolvimento de renovação e melhoria nos tratos culturais dos canaviais, aumento da produtividade, melhorias na mecanização, aportes em irrigação e em agricultura de precisão, intensificação de pesquisas em biotecnologia e em etanol de segunda geração (celulósico), modernização de equipamentos de usinas, avanço na gestão e adoção de melhores estratégias comerciais para o etanol. E defende o fortalecimento de associações e cooperativas de fornecedores independentes de cana - que, de acordo com Fava Neves, têm de se firmar como "produtores integrados". "Há muitos agricultores arrendando suas terras e saindo da atividade, seja por causa de envelhecimento e ausência de sucessores ou em virtude do aumento de custos, de problemas climáticos ou da queda dos preços. Mas a tendência é que os produtores integrados organizados ampliem sua participação no suprimento de cana". De acordo com Fava Neves, os próprios produtores estão cada vez mais conscientes de seu papel e sabem que precisam evoluir em algumas frentes. Nesse sentido, pesquisa da Markestrat captou entre 548 produtores independentes quais seriam suas seis "ações primordiais". As respostas que mais apareceram foram "melhorar minha produção no campo", "melhorar a gestão do meu negócio", "aumentar minha cultura associativista", "melhorar minha atuação política", "ser ativo na comunicação do setor" e "buscar melhores formas de relacionamento com usinas". Nada exatamente novo, mas medidas que se tornam mais urgentes a cada dia. Fava Neves: apesar da melhora do cenário, processo de "depuração" vai continuar