Título: Sarney desde Vargas
Autor: Cunha, Ari
Fonte: Correio Braziliense, 10/07/2011, Opinião, p. 21

Ninguém neste país pode acusar o presidente do Senado de arrogante. Político desde o tempo de Getúlio Vargas, mantém a fleuma de não ser humilde. Trata-se de um homem sem jactância. Trabalha horas no Senado, tem tempo para cuidar da família e mantém singularidade que encanta seus amigos.

Não se negou a assumir a Presidência, embora não tivesse sido diplomado. Era chamado pela primeira vez ao poder máximo. Ao contrário, enquanto outros fugiam, José Sarney enfrentava as dificuldades que aparecessem. Viu-se elogiado no país, e combatido às escondidas. Criticado por mais gente, não perdeu o senso de humor e a amabilidade com que trata os que se chegam.

Ocorre que José Sarney sentiu que o país necessitava de comando com urgência e foi fiel à posição de quem não foge do perigo. Assumiu a Presidência da República como vice-presidente eleito, sem receber a faixa. Impoluto, não deu marcha a ré. A sua obrigação era aquela.

Compareceu ao hospital fora de horário, para não receber as palmas que os presidentes recebem. Visitou Tancredo Neves, que fora operado de emergência, quando foi feita a foto no hospital distrital. Mostrava a falsa disposição com que se encontrava para assumir a Presidência da República. Essa foto ainda hoje é divulgada. O doente é segurado por uma pessoa que não aparece, rodeado de médicos e familiares. A foto exemplifica a maldade da ideia. O estado de saúde de Tancredo Neves piorou rapidamente. Foi levado às pressas para o Hospital das Clínicas, em São Paulo. Fotógrafos e cinegrafistas queriam um registro. Saindo da ambulância, o hospital cercava o paciente por lençóis que impediam a visibilidade dos curiosos. Na visita, as palavras de José Sarney, já presidente, começavam assim: "Fugindo à liturgia do cargo"... e começou a chorar pela dificuldade vivida pelo amigo em estado de pré-agonia.

Ao assumir a Presidência da República, não levava outro documento senão a voz do povo e o direito que sentia de substituir o amigo. O ocupante da cadeira presidencial, que esperava colocar a faixa no presidente, ao sentir que era outro, desceu a escada às escondidas e foi direto para a garagem, em sinal de repúdio.

José Sarney era acostumado a manter a paciência. Foi preso, perseguido, desde o governo de Getúlio Vargas.

Chefiando a República, estava sozinho no parlatório do Palácio do Planalto. Entre o povo, enaltecidas pela satisfação de sentir o chefe da família assumindo o ponto alto do governo da República, estavam a esposa, dona Marly, e a sogra, dona Kiola. No meio da multidão, sentindo o "cheiro do povo", esposa e sogra ouviram as palmas ao novo presidente da República.

José Sarney falou a este jornal, e disse com clareza que "os partidos não são o povo". Expressava na entrevista o pensamento sobre partidos e eleitores. Não disse, mas talvez quisesse dizer que os partidos querem os votos, e os eleitores, as vantagens.

"Feridas não cicatrizam", foi o desabafo solene do homem que iniciou a vida política muito cedo. Não esperava passar dos 80 anos e continuar ditando exemplos a serem seguidos pelos sucessores. Na sua idade é um gigante. Certo dia, como presidente da República, nos convidou para o café da manhã no Alvorada. Lá estavam com o presidente os assessores, inclusive um simpático oficial de Marinha, que ficaram a distância para o caso de serem chamados. Nosso café foi regado a boas frutas e conversas interessantes.

Muitas vezes governou o Maranhão dentro das necessidades do povo. Como a massa mantém uma intelectualidade invejável, criou escolas, ginásios e universidades.

Mais de 40% do povo prefere o interior. O número é alto. Ocorre que o maranhense prima pelas coisas diferentes.

José Sarney tem sido acusado, principalmente pelo governador, que certo dia assumiu o posto e prometeu endireitar o estado. Pode ser que tenha tido vontade. Falava como um papagaio e fez piorar a situação do estado muito pobre. Historicamente, é a única cidade colonizada pelos franceses.

Dos europeus, herdou muita coisa, principalmente o valor humano e a intelectualidade para não repetir o evento da Marselhesa, que é o hino da França.

"Não falo sobre adversários. Eles sentem o mesmo que eu sinto", disse José Sarney. Vem daí o gesto de não misturar alhos com bugalhos.

O Maranhão não se fez no luxo, mas na obediência e no trabalho. Quando José Sarney deixou a Presidência da República, pensou como herança mostrar seu trabalho em um museu. Invejosos assacaram contra o fato e divulgaram que José Sarney estava promovendo seu endeusamento. Afinal, um intelectual que assume a Presidência deve guardar no tempo a memória de quem comandou o país.

Setenta e quatro ginásios foram abertos nos municípios. A função é dotar os estudantes de visão, além do horizonte que habitam.

A cidade de São Luís não possuía luz elétrica. A energia brotava de quatro motores movidos a lenha. Não havia óleo diesel e o equipamento era velho, porém atendia a contento.

O senador José Sarney é um baobá que enfrenta dificuldades e não se verga mesmo diante do vento mais forte.

Passado dos 80, mantém cuidados de saúde que o levarão distante ¿ é a esperança dos amigos.

Silencioso e matreiro, o senador José Sarney preside o Senado com a mesma atenção aos pares.

Tremeu de raiva quando disseram que abaixo da mesa havia uma sala onde despachavam as pessoas mais chegadas e que de lá saíam os atos de nomeações escondidas.

Na verdade, a sala foi criada para que o presidente do Senado chegasse ou saísse do gabinete diretamente, sem as interrupções dos que não desejam falar, mas pedir favores.

Isso ele faz com o coração na mão, mas atende a quem necessita. Esse é o presidente do Senado, de onde emanam diretrizes para o Brasil.

História de Brasília Nelson Hungria aposentado. Um homem de bem, que deixa o trabalho diário depois de distribuir justiça a vida inteira. Que a vida lhe seja justa também, deixando-o em Brasília, na Superquadra do Ipase, onde a criançada o adora pelas histórias de carochinha que ele conta. E quando mais uma geração crescer à sua sombra, mais gente haverá no mundo para admirá-lo e respeitá-lo. (Publicado em 16/4/1961)