A última vez em que a China foi a maior economia mundial, Pequim era uma cidade de cerca de 700 mil habitantes e seu bairro de Wangjing nada mais era do que um amontoado de áridas colinas artificiais construídas a fim de proteger o norte da capital de invasores bárbaros. Corria o ano de 1890. Atualmente, a população de Pequim é de mais de 21 milhões de habitantes, e Wangjing é uma extensão de escritórios e torres residenciais meio vazias ou meio acabadas incrustrada no quinto anel viário da cidade.

A China reconquistou seu título de maior economia do mundo, suplantando os Estados Unidos em termos de poder de compra pela primeira vez em 125 anos, mas esse bairro periférico em crescimento constitui o exemplo por excelência dos crescentes problemas com que o país se defronta. O restabelecimento de sua posição de destaque ocorre no momento exato em que a China cai na conhecida “armadilha da renda média” e em que tensões graves acumuladas nos últimos anos ameaçam chegar a um ponto crítico.

Com seu misto de antigos prédios de apartamento e fulgurantes, mas vazias, torres de escritório futuristas, Wangjing é típica da construção de imóveis movida a crédito dos últimos dez anos que impulsionou o crescimento, mas a um alto preço.

A taxa oficial de crescimento da China, de 7,4% em 2014, foi o ritmo mais lento desde 1990, quando o país ainda enfrentava sanções em consequência do massacre da praça da Paz Celestial, em 1989. O Fundo Monetário Internacional (FMI) baixou neste ano sua projeção de crescimento para a China de 7,1% para 6,8%, e prevê que, pela primeira vez em várias décadas, o Produto Interno Bruto (PIB) do país crescerá mais lentamente que o da Índia no ano que vem.

Lugares como Wangjing são representativos do “enorme volume de estoque imobiliário, do potencial para crises de endividamento regionais e das mudanças demográficas desfavoráveis que farão com que o desaquecimento imobiliário dure por pelo menos mais três anos”, segundo o analista de mercado imobiliário Ai Jingwei.

Embora a expansão de 7,4% (ou mesmo a de 6,8%) continue fazendo inveja às economias desenvolvidas ocidentais, de expansão lenta, ela está longe da média de dois dígitos de crescimento anual mantida pela China por três décadas a partir do fim dos anos 1970. Ainda no início de 2010, a economia da China crescia cerca de 12%, numa disparada de crédito e construção civil desencadeada por Pequim para fazer frente aos efeitos da crise financeira mundial de 2008.

Um dos maiores problemas com que a China se defronta atualmente é que a desaceleração ocorre num momento em que o crédito e a construção civil, os principais propulsores do crescimento, se mantêm quase em pleno vigor. Embora os bairros periféricos de Pequim, como Wangjing, sejam típicos desse excesso de crédito e de construção, o problema mostra¬se ainda mais agudo em cidades menores, que nunca terão a mesma demanda por imóveis que, espera¬se, na capital uma hora acabará alcançando a oferta.

Considerados os setores de apoio, a construção de imóveis responde por cerca de 25% da economia chinesa, de US$ 10 trilhões, proporção maior que a verificada em EUA, Irlanda ou Espanha no auge de suas bolhas imobiliárias, na década passada. Quase dez anos de atividade frenética de construção criaram uma enorme capacidade excedente e deixaram amplos cinturões de prédios de apartamentos vazios em torno da maioria das cidades chinesas.

Desaceleração ocorre num momento em que o crédito e a construção civil se mantêm quase em pleno vigor. No ano passado, as altas vertiginosas praticadas na década anterior, que viu os preços quadruplicarem nas principais cidades, finalmente chegaram ao fim. A média dos preços dos imóveis residenciais em todo o país caiu 4,3% em dezembro, se comparada ao mesmo mês do ano anterior.

Mas, ainda assim, o total dos investimentos no setor aumentou 10,5% no ano e a área ocupada não comercializada tinha crescido mais de 26% no fim de dezembro, segundo dados oficiais. Os dados sugerem que a correção do setor imobiliário chinês não chegou, na verdade, sequer a ter início. Quando o setor começar a contrair, o que poderá ocorrer já neste ano, a taxa de crescimento oficial poderá cair de forma muito mais acelerada, e o país poderá passar por uma onda de falências ¬ além de uma possível crise de endividamento, advertem economistas.

“A desaceleração da China poderá se transformar numa reversão desordenada de vulnerabilidades financeiras com implicações consideráveis para a economia mundial”, advertiu neste mês o Banco Mundial. O impacto já está se fazendo sentir nos preços mundiais das commodities, inclusive o petróleo, e no desempenho claudicante das economias de Brasil, Alemanha, Austrália e de boa parte da Ásia, que dependem cada vez mais da demanda chinesa.

Os preços das commodities, como minério de ferro e cobre ¬ componentes fundamentais de qualquer surto de crescimento da construção civil ¬ estão perto dos níveis observados pela última vez em plena crise financeira mundial, e isso antes que a correção propriamente dita da construção civil pela China tenha começado a ocorrer.

As vulnerabilidades financeiras se concentram especialmente no nível dos governos regionais, onde as autoridades provinciais ignoraram as restrições orçamentárias e a proibição à tomada de empréstimos e incorreram numa farra de crédito e de construção.

Em meados de 2013, a última vez em que o governo publicou dados sobre esse quesito, a dívida pendente dos governos regionais totalizava 18 trilhões de yuans (cerca de US$ 2,9 bilhões), revelando uma alta de 80% em apenas dois anos. Esse aumento ocorreu mesmo após Pequim ter proibido as autoridades regionais de captar quantias excessivamente elevadas.

Mas, apesar de a economia ter desacelerado no ano passado e de as autoridades terem sido encarregadas de intensificar o crescimento com ainda mais investimentos em infraestrutura, a tomada de empréstimos pelos governos provinciais parece ter voltado a disparar. Dados estatísticos parciais sobre as captações dos governos regionais mostram que eles venderam um total de 1,66 trilhão de yuans em bônus em 2014, comparativamente aos 900 bilhões de yuans comercializados em cada um dos dois anos anteriores.

A exemplo do que ocorre com a persistente expansão dos investimentos em imóveis, a meta declarada do governo de realizar a desalavancagem ainda não teve início, o que significa que, quando começar, a economia do país poderá desacelerar de forma muito mais acentuada.

As ligações entre esses dois maiores riscos à economia chinesa ¬ o setor imobiliário e a dívida dos governos provinciais ¬ tornam a situação mais alarmante. A venda de terrenos responde por 35% da arrecadação dos governos provinciais, segundo pesquisa do Deutsche Bank, e virtualmente toda a sua dívida pendente é garantida por terras de propriedade do governo, cujo valor, muitas vezes, é gravemente superestimado.

Em recente estudo que desperta preocupações quanto à sustentabilidade das atuais taxas de crescimento, Zhang Zhiwei, economista chefe para a China do Deutsche Bank, detectou que os governos provinciais se tornaram os principais compradores de terrenos nos últimos anos. Para cumprir a proibição de contabilizar déficits, os governos regionais formaram milhares de “veículos de financiamento” integralmente controlados por eles, que tomaram dinheiro em seu nome junto aos bancos estatais, aos mercados de bônus e às instituições paralelas, esparsamente regulamentadas.

Esse processo é tecnicamente ilegal, mas foi tolerado porque fortaleceu o crescimento na esteira da crise financeira mundial. Com a queda vertical das vendas de imóveis e com a evaporação da demanda por terrenos por parte das construtoras de imóveis comerciais, as autoridades regionais começaram a usar esses veículos de financiamento para adquirir terrenos de si mesmas, usando crédito tanto dos bancos estatais quanto dos paralelos. Autoridades e analistas se preocupam com o fato de isso se constituir numa tentativa insustentável de fortalecer o crescimento de curto prazo e a debilitada arrecadação fiscal.

“Em 2015 muito provavelmente a China enfrentará seu maior desafio fiscal desde 1981 [período anterior à aceleração do crescimento]“, escreveu Zhang em seu relatório. “Acreditamos que a derrocada fiscal [a queda da arrecadação] seja o principal risco para a economia chinesa, e um risco que, consideramos, não vem sendo bem identificado pelo mercado.” Além de trazer o crescimento mais lento do último quarto de século, 2014 também marcou a primeira vez em que o Partido Comunista não conseguiu alcançar sua meta de crescimento anual desde o auge da crise financeira asiática, de 1998.

Autoridades e alguns analistas argumentam que a meta do ano passado, de um crescimento de “cerca de 7,5%”, não foi, na verdade, descumprida, porque o governo, ao prever um ritmo mais lento, abrandou¬a ao introduzir, de forma inédita, a expressão “por volta de”. O governo deverá anunciar uma meta de crescimento de “por volta de 7%” neste ano.

Mas mesmo o ministro das Finanças da China, Lou Jiwei, diz às autoridades que visitam seu país que a liderança em Pequim ficará satisfeita com um crescimento de 6% nos próximos anos. Em particular, ele adverte que só para manter esse crescimento serão necessários níveis muito elevados de investimento em infraestrutura, promovido pelo governo. Quase dez anos de atividade frenética deixaram amplos cinturões de prédios de apartamentos vazios. Diante dos problemas internos cada vez maiores, não surpreende que os dirigentes chineses vejam o título de maior economia mundial como um fardo que atrai um grau de atenção indesejada. De fato, Pequim até agora se recusou sequer a reconhecer as novas estimativas, que tentam incorporar o valor relativo dos produtos e serviços não negociáveis das diferentes economias.

“Houve recentemente alguns estudiosos e alguns profissionais da mídia que estimaram que o PIB da China já ultrapassou o dos EUA em termos corrigidos pelo poder de compra, mas a China e o Departamento Nacional de Estatística não reconhecem essas opiniões”, disse na semana retrasada o diretor de estatística da China ao divulgar os mais recentes dados sobre o crescimento do país.

“O problema provém do fato de não podermos incluir produtos idênticos na complexa cesta de produtos usada para comparação [de diferentes economias]. Na cesta de produtos de consumo da China os principais itens da alimentação são pão cozido no vapor e arroz, enquanto os europeus talvez tenham muito pão na cesta deles. Não é possível, na verdade, compará¬las.” Independentemente das discussões sobre o valor relativo dos carboidratos, as autoridades destacam, com bom grau de razão, que a China está no 89º lugar no mundo em termos de PIB per capita, um indicador melhor da riqueza de uma população, o que a coloca na mesma posição que as Maldivas e o Peru. As autoridades também dizem que as mais recentes estimativas superestimam grandemente a qualidade dos produtos disponíveis no mercado chinês.

“A China acaba apenas de ingressar nas fileiras das economias de renda média, e enfrenta todos esses problemas, portanto, o país não quer, na verdade, aceitar as responsabilidades mundiais (…) de ser a primeira economia do mundo”, diz uma pessoa envolvida nas acaloradas discussões em torno da nova estimativa. Com base nas atuais taxas de câmbio do governo, o PIB em desaceleração da China ultrapassou os US$ 10 trilhões pela primeira vez no ano passado, enquanto o PIB dos EUA está acelerando e supera os US$ 17,5 trilhões.

De acordo com pesquisas do economista britânico Angus Maddison, a China teve a maior economia mundial por quase dois milênios, e em 1820 respondia por 33% do PIB mundial, aproximadamente a mesma proporção da participação da economia dos EUA em 2000. Mas, em 1890, após décadas de rebeliões internas e investidas externas, a China tinha perdido sua liderança para os EUA em termos de poder de compra.

Naquela época, as exportações chinesas eram responsáveis por apenas 0,6% do PIB, não havia, virtualmente, qualquer importação de maquinário ou outros implementos modernos e o ópio ainda tinha uma participação de mais de 25% nas importações chinesas.

Atualmente a China é a maior comercializadora de mercadorias e a maior consumidora de vários produtos, desde minério de ferro até leite em pó. Portanto, ao contrário da década de 1890, quando sua economia ainda era, em grande medida, autossuficiente e tinha pouco impacto em termos globais, o restante do mundo agora precisa prestar muita atenção às torres de escritório semiacabadas dos bairros periféricos de Pequim.

 

 

Crescimento real do PIB seria de 5,6%

 

Alguns economistas acreditam que a economia chinesa já está crescendo muito mais lentamente do que Pequim admite. Rodney Jones, que chefiou o escritório de pesquisas da Soros Fund Management, em Hong Kong, de 1994 a 2000, e a quem credita-se a previsão da crise financeira asiática, estima que a taxa de crescimento chinesa no ano passado, oficialmente de 7,6%, foi, na realidade, de 5,6%. Jones argumenta que o índice oficial é distorcido pela forma como Pequim calcula o valor adicionado pelos setores industrial e manufatureiro. Em vez disso, ele usa os próprios números não ajustados do governo, referentes à produção industrial, para recalcular o Produto Interno Bruto. "A taxa de 5,6% é muito mais coerente com o que vemos acontecendo nos mercados globais de commodities, e com outros indicadores, como os de produção de energia", diz Jones, que dirige sua própria consultoria, a Wigram Capital. "Essa taxa também é coerente com a deflação nos preços cobrados pelo produtor, que tem atormentado a China há 34 meses consecutivos - o mais longo período já registrado no país." Os preços de muitas commodities estão próximos dos níveis deprimidos a que chegaram durante a crise financeira mundial. Os preços no atacado caíram 3,3% no fim de 2014 e a geração de eletricidade cresceu apenas 3,2%. Altas autoridades do governo chinês dizem que seu plano é apoiar a economia continuando a injetar grandes quantidades de crédito e investimentos em infraestrutura no sistema. Mas elas veem isso como uma medida paliativa capaz de dar-lhes tempo para reformar um modelo econômico obsoleto e fazer com que o crescimento seja impulsionado por consumo, serviços e inovação. A incógnita é se o Partido Comunista tem condições de manter um crescimento suficiente para garantir empregos e evitar a agitação social no médio prazo, ao mesmo tempo em que reforma o modelo que funcionou tão bem por mais de três décadas.