A forte piora das contas públicas observada ao longo do ano passado e o primeiro resultado negativo na balança comercial desde 2000 levaram a soma dos déficits fiscal e em conta corrente do País a alcançar 10,9% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2014. É o equivalente a cerca de R$ 550 bilhões. Esse montante cresceu com rapidez no último ano: no fim de2013, asoma desses dois indicadores, conhecidos como "déficits gêmeos" e importantes indicadores da vulnerabilidade externa do País, era de 6,9% do PIB, uma alta de 60% em apenas um ano.

 

É o maior valor da série histórica, iniciada em 2003. Mesmo em momentos de crise, como 2009, em que o Governo elevou gastos para combater a desaceleração da economia, os "déficits gêmeos" chegaram a, no máximo, 5,7%.

 

A evolução negativa dessas variáveis, avaliam economistas, reflete o forte aumento da necessidade de financiamento do setor público e maior vulnerabilidade externa do País e são o resultado da política econômica adotada no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. Por isso, dizem, é a grande fragilidade do Brasil, monitorada atentamente pelas agências de classificação de risco e por investidores estrangeiros.

 

A necessidade de redução dos "déficits gêmeos", conceito econômico no qual déficits fiscais acabariam resultando em saldo negativo nas contas externas, deve exigir aumento expressivo de poupança pública e privada - o que significa consumo menor - e desvalorização mais acentuada da taxa de câmbio. Esse ajuste, dizem, é mais premente em um momento em que a liquidez internacional pode deixar de ser tão farta quanto nos anos anteriores, mesmo com o afrouxamento monetário anunciado pelo Banco Central Europeu (BCE).

 

Para Alberto Ramos, diretor de pesquisas econômicas para a América Latina do Goldman Sachs, a relação entre o déficit fiscal de 6,7% do PIB e o déficit em conta corrente de 4,2%, ou US$ 90,9 bilhões, em 2014, é "clara e forte".

 

Ramos avalia que a piora do resultado primário a partir de 2012 reduziu a poupança pública. Como o resultado em conta corrente é dado pela diferença entre a taxa de investimentos da economia e a taxa de poupança, o aumento dos gastos do Governo teria resultado em crescimento do rombo nas contas externas, apesar da queda dos investimentos no período.

 

Outro ponto relevante, na avaliação de Ramos, é que o "descontrole fiscal" minou a efetividade da política monetária. Ou seja, mesmo com juros altos, a despesa crescente do setor público contribuiu para que a inflação no Brasil se mantivesse mais alta do que em outros países. Assim, a desvalorização em termos reais (já descontada a inflação) da taxa de câmbio é menor do que sugere a perda de valor nominal do real frente ao dólar, o que impede maior ganho de competitividade das exportações.

 

"Déficits combinados de mais de 10% do PIB são evidência clara da deterioração macroeconômica nos últimos anos, com desequilíbrios criados pela política mais intervencionista observada no mandato anterior", avalia Ramos.

 

Para o professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Simão Silber, a relação entre piora do quadro fiscal e maior rombo em conta corrente foi mais direta no último ano, embora nem sempre tenha sido verdadeira. O Brasil passou de superávit para um déficit em conta corrente a partir de 2008, avalia, por causa da redução de poupança do setor privado, com maior propensão ao consumo por parte das famílias e redução dos lucros das empresas, principalmente na indústria. No entanto, na maior parte desse período, o déficit fiscal se manteve em torno de 2,5% do PIB.

 

Essa relação mudou no último ano, comenta Silber. O déficit fiscal de 6,7% do PIB em 2014, bem superior ao resultado negativo de 4,2% da conta corrente, mostra que, no período, a poupança privada aumentou, enquanto o setor público pressionou fortemente as contas externas.

 

Para Paulo Gala, estrategista da Fator Corretora, a variável-chave para explicar a existência conjunta de déficits fiscais e em conta corrente é a taxa de câmbio valorizada observada nos últimos anos, "que detonou a balança comercial". No ano passado, o déficit foi de US$ 3,9 bilhões.

 

Para Gala, no caso brasileiro o forte aumento da demanda do Governo a partir de 2011 contribuiu para manter a inflação de serviços elevada. Para evitar maior alta de preços, o BC Central passou a intervir de forma intensa no mercado de câmbio, com o objetivo de impedir a desvalorização mais expressiva do real.

 

Para o estrategista, o ajuste fiscal é essencial para reverter esse quadro de piora das contas externas e fiscais, mas não suficiente. "Não adianta caminhar pela via do Sul da Europa, que acha que o ajuste fiscal vai resolver o déficit em conta corrente. O câmbio precisa se desvalorizar também," O economista afirma que "é a isso que o BC se refere quando diz que há um duplo realinhamento de preços relativos, com câmbio e administrados, que vai ajudar a reduzir os dois déficits".

 

Ramos, do Goldman Sachs, também avalia que a correção dos desequilíbrios macroeconômicos evidenciados por esses indicadores deve ocorrer gradualmente, à medida que o ajuste fiscal for implementado. "O que importa neste momento é a mudança de tendência, é trazer gradualmente essas variáveis para níveis mais sustentáveis". A taxa de câmbio, avalia, tem que ter desvalorização mais forte, "consistente com fundamentos e a evolução recente dos termos de troca". Algo entre R$ 3,10 e R$ 3,20, diz, estaria mais próximo do equilíbrio.

 

O risco de não fazer esses ajustes, afirma Ramos, é o País encontrar dificuldades crescentes para financiar o passivo externo, que não é desprezível. Além do déficit de mais de US$ 80 bilhões em conta corrente projetado para 2015, o País ainda tem um montante expressivo de dívida com vencimento neste ano, o que pode elevar bastante as obrigações externas.

 

"Se houver piora do cenário, turbulência mais acentuada nos emergentes, o risco é que o capital estrangeiro fique mais seletivo e exija prêmio de risco elevado para seguir financiado as necessidades externas do Brasil", diz Ramos.

 

Para Gala, do Fator, o pacote de compra de ativos anunciado há duas semanas pelo BCE pode ajudar a evitar um cenário mais adverso para o Brasil, mas não elimina o risco para o País de sustentar esses desequilíbrios macroeconômicos.

 

Silber, da FEA, avalia que a equipe econômica está preocupada com a trajetória dessas duas variáveis justamente porque sabe que "o mundo mudou" e não vai mais emprestar US$ 80 bilhões por ano ao Brasil nas condições anteriores. "Com Rússia e Grécia em risco de moratória e alta de juros nos EUA, o dinheiro não vai mais ser tão fácil."

 

Caso a "lição de casa" seja bem feita, Silber avalia que é possível que o déficit fiscal retorne para algo como 4,5% neste ano, enquanto o rombo nas contas externas pode caminhar para algo mais próximo a 3%. "Mas o custo é que provavelmente vamos ter pequena queda do PIB neste ano e crescimento ainda baixo em 2016", diz.

 

 

Mudança de tom na OMC deixa Brasil em alerta sobre fim da Rodada Doha

 

O governo brasileiro ficou em estado de alerta com a inesperada "pressa" da Organização Mundial do Comércio (OMC) em concluir a rodada de liberalização comercial que se arrasta desde 2001. A preocupação é com o risco de que, no esforço declarado para fechar a Rodada Doha em dezembro, haja uma tentativa dos países ricos de diminuir o grau de ambição das negociações justamente na área de maior interesse do Brasil: a agricultura.

A nova tônica da OMC foi dada em uma reunião paralela ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, onde ministros e vice-ministros de 21 países se comprometeram com a apresentação de um "programa de trabalho" até julho. Esse programa deverá conter as regras básicas de um acordo e indicações de como a barganha efetiva entre os países poderá ocorrer, no segundo semestre, em três áreas diferentes: agricultura, bens industriais e serviços.

O objetivo é alcançar um acordo global em dezembro, na conferência ministerial da OMC que deverá ocorrer em Nairóbi, no Quênia. Poderia ser motivo de comemoração para a diplomacia brasileira, empenhada em ressuscitar a Rodada Doha, que resiste em sair do estado de letargia nos últimos anos. No esforço para fazer a roda girar, o diretor-geral da organização, Roberto Azevêdo, sugeriu "realismo" nas negociações e a busca por um acordo "atingível" - algo que muitos diplomatas interpretam como uma senha sutil para tirar da frente temas mais espinhosos da rodada, notadamente questões agrícolas.

"Se cairmos em um nível muito reduzido de ambição, a Rodada Doha como um todo teria resultados apenas medíocres e nossos interesses em agricultura não serão atendidos", diz o subsecretário-geral de assuntos econômicos e financeiros do Itamaraty, embaixador Ênio Cordeiro.

Para o Brasil, a prioridade é negociar um acordo global que envolva três frentes na agricultura: acesso a mercados (com redução de tarifas e de cotas), subsídios à exportação e apoio doméstico nos países ricos. Sem avanços nisso, não há como discutir concessões em bens industriais e serviços, argumenta o governo brasileiro. O recado é claro: não haverá acordo parcial e nem a possibilidade de "colheita antecipada", jargão da diplomacia para aprovar resultados em algumas áreas de negociação, enquanto outros assuntos continuam em aberto.

"O Brasil está participando de maneira muito atenta das conversas e negociações em Genebra, mas não daremos o nosso aval a meras encenações", completa o embaixador, taxativamente, temendo uma manobra dos países ricos para forçar um impasse e decretar o fim da Rodada Doha.

Cordeiro lembrou que a posição brasileira já vinha sendo de defesa da adoção de um programa de trabalho para concluir a rodada. Esse compromisso foi fixado em dezembro de 2013, durante a última conferência da OMC, em Bali. "O prazo foi perdido nas discussões estéreis do ano passado", afirmou.

"O novo prazo para o programa de trabalho é julho deste ano, mas agora fala-se muito em redução de ambição e abandono das modalidades [regras básicas] negociadas em 2008. Nós certamente não aceitaremos um jogo de faz de conta na OMC em que, por falta de ambição ou ausência de vontade política, se abandone o objetivo de ampliar o acesso a mercados para a agricultura, eliminar os subsídios às exportações e reduzir substancialmente os volumes de apoio doméstico que tanto distorcem o comércio internacional de produtos agrícolas", ressaltou o subsecretário.

Além do Brasil, estiveram na reunião de Davos autoridades dos EUA, União Europeia, Japão, China, Índia, Austrália e África do Sul, entre outros países.