Multidão concentrada na Praça de Maio, diante da Casa Rosada, para exigir justiça no caso do promotor Nisman: governistas veem %u201Cinteresses políticos%u201D da oposição nas manifestações ( Juan Mabromata/AFP)

Multidão concentrada na Praça de Maio, diante da Casa Rosada, para exigir justiça no caso do promotor Nisman: governistas veem %u201Cinteresses políticos%u201D da oposição nas manifestações

 

Sandra Arroyo Salgado, ex-mulher do procurador Alberto Nisman (Enrique Marcarian/Reuters)

Sandra Arroyo Salgado, ex-mulher do procurador Alberto Nisman



O governo de Cristina Kirchner reagiu com mais críticas à marcha que levou milhares de pessoas às ruas de diferentes cidades da Argentina, anteontem, para cobrar investigações e justiça no caso da morte do promotor federal Alberto Nisman, encontrado em 18 de janeiro, em seu apartamento, com um tiro na cabeça. Cristina e aliados afirmaram que a Marcha do Silêncio teve interesses políticos e visava a afetar a imagem da presidente. Em meio à tormenta que a morte gerou no país, a convocação de um grupo de promotores e de familiares de Nisman ganhou rapidamente simpatizantes nas redes sociais e em partidos de oposição. O resultado foi uma das maiores marchas dos quase oito anos em que Cristina ocupa a Casa Rosada. A despeito da forte chuva, cerca de 400 mil pessoas se concentraram no centro de Buenos Aires, segundo estimativa da Polícia Metropolitana 350 mil de acordo com contagem do jornal La Nación. A polícia federal, no entanto, limitou a estimativa em 50 mil. 

Logo na manhã de ontem, o chefe de gabinete da presidente, Jorge Capitanich, declarou que por trás de cada uma dessas manifestações existe um interesse político. Capitanich defendeu o direito de manifestação, mas argumentou que foram vistos cartazes contra o governo e, por isso (a marcha), foi identificada como de oposição. O secretário de Cristina, Aníbal Fernández, reforçou a posição oficial, destacando que não se tratou de uma manifestação para prestar homenagem a ninguém. Segundo ele, há pessoas que entenderam que a melhor maneira de levar a uma desestabilização (do governo) era fazer esse tipo de coisa. Poucas horas antes da marcha, Cristina qualificara a manifestação de golpista e rebatera as acusações, feitas por Nisman, de que ela estaria encobrindo a participação do Irã no atentado contra uma associação judaica, em 1994. 

Os promotores que iniciaram a mobilização foram amplamente aclamados pela população. Diante da enorme repercussão, eles decidiram não se pronunciar, informou o promotor Ricardo Sáenz, em entrevista à rádio Vorteix. A demonstração popular dividiu personalidades e intelectuais locais. Como e por que morreu Nisman? Quem é o responsável?, questionou um grupo de escritores e acadêmicos, em um manifesto a favor da passeata. Por sua vez, um grupo de aliados de Cristina disse que os manifestantes usaram violência aparentemente sutil e subliminar para articular um golpe suave. A governista Hebe de Bonafini, líder do grupo Mães da Praça de Maio, também fez críticas. Parece ter sido uma marcha com muita agressividade contida, e que ficaram contentes quando gritavam coisas contra a presidente, porque são covardes. De silêncio, nada, disse à radio Del Plata. 

Investigações 
Um mês após a morte, muitas questões permanecem e a polícia ainda busca esclarecer se Nisman foi assassinado ou se cometeu suicídio. Ontem, a juíza federal Sandra Arroyo Salgado, ex-mulher do promotor, voltou a rejeitar a hipótese de que ele tenha tirado a própria vida. De nenhum modo admito a possibilidade de um suicídio, muito menos com arma (de fogo), disse. Salgado confirmou que pediu a intervenção de um observador da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) nas investigações, argumentando que nesta conjuntura judicial, política e midiática, não estão dadas as garantias para que se realize uma investigação imparcial. 

A testemunha que denunciou irregularidades no procedimento policial no dia da morte de Nisman prestou depoimento ontem ao Ministério Público. Natalia Fernández, 26 anos, foi convocada por policiais a ir ao apartamento quando saía do trabalho, na noite de 18 de janeiro. Ela contou que os agentes foram descuidados, pegaram em objetos sem luvas, ofereceram café preparado na máquina de Nisman e a deixaram usar um banheiro. Na quarta-feira, a promotora Viviana Fein, que investiga o caso, disse que as declarações de Natalia eram descabidas e que ela teria que dar base ao que disse. A jovem foi escoltada, ontem, após três horas e meia de depoimento. 


Análise da notícia

Sintomas de
desmanche
 

» Silvio Queiroz 

Para além das implicações mais imediatas, o caso do promotor Nisman expõe as fissuras no arcabouço político-institucional da Argentina, assim como os sintomas de esgarçamento da coesão social. Há três décadas, quando chegava ao fim o regime militar, o país exibia um quadro partidário sólido e resiliente, que sobrevivera à perseguição, além de uma estrutura sindical enraizada capaz de infernizar a vida de um governo, mas igualmente de canalizar as insatisfações para o campo da legalidade. 

A sucessão de crises na fase final de mandato de Cristina Kirchner aponta na direção de um cenário político-partidário ainda mais fragmentado. Seja quem for o sucessor eleito, em outubro, a estabilidade do futuro governo tende a ser ainda mais frágil. E ele não terá interlocutores visíveis para dialogar com as ruas: com o sindicalismo peronista na prática fora de cena, as penúrias econômicas tomam o rumo não da pressão organizada, mas dos estallidos, como são chamados os espasmos de violência social.