A Lei Anticorrupção brasileira - que dá efetividade interna aos tratados firmados pelo Brasil no plano da OCDE, das Nações Unidas e da OEA - comemora neste dia 29 de janeiro um ano de vigência, ou melhor, da virgingência. Tem, assim, a nossa lamentável República, além da viúva assaltada diariamente, uma donzela que foi prometida à comunidade internacional como o nosso compromisso de integração na luta mundial contra a corrupção.

Acontece que a presidente da República, em seu discurso oficial de diplomação no TSE, em 19 de dezembro, negou a vigência do Estado de Direito, declarando que não vai aplicar a Lei Anticorrupção às empreiteiras envolvidas na Operação Lava Jato, sob o pretexto de manutenção do nível de emprego (?). E reafirmou essa vontade prevaricadora expressamente na primeira reunião ministerial do segundo mandato, anteontem.

Além de cometer explicitamente crime de responsabilidade ao assim agir contra a aplicação de lei federal (artigo 85, VII, da Constituição), a presidente demonstra mais uma vez o desastre que é o seu governo, agora acrescentado pela total ignorância dos efeitos benéficos da aplicação da Lei Anticorrupção no caso da Petrobrás e das empreiteiras e fornecedoras nacionais e multinacionais que, em concurso criminoso, levaram à destruição de valor da estatal e agora, gradativamente, delas próprias.

Tivessem a Presidência da República e a Controladoria-Geral da União o mínimo discernimento sobre a aplicação extraterritorial das leis anticorrupção existentes no planeta, não teriam negado a aplicação da nossa lei a esse respeito. Ao não processar a Petrobrás - agente ativo de todo o esquema de corrupção, que envolve, no mínimo, US$ 80 bilhões - e as demais 23 empresas envolvidas, está o nosso governo (?) entregando todas elas à jurisdição dos demais países signatários, notadamente à drástica aplicação do Foreign Corrupt Practices Act, dos Estados Unidos, que, por sinal, já iniciaram as investigações, por intermédio do Departamento de Justiça, sobre a nossa antiga joia da coroa.

O caso é o seguinte: o Brasil, ao firmar os acordos internacionais, comprometeu-se a processar administrativamente todas as empresas - pessoas jurídicas - nacionais e multinacionais envolvidas em corrupção pública. A propósito, quatro multinacionais integram os cartéis do seleto clube.

Ao instaurar o processo administrativo conforme a Lei Anticorrupção, o governo brasileiro estaria colaborando com a apuração das condutas das multinacionais infratores nos países onde têm suas sedes e nos outros países onde também corrompem. Mas o mais importante é que a aplicação imediata da Lei Anticorrupção atende ao fundamental princípio das leis internacionais de que não pode uma empresa corrupta brasileira ser punida duas vezes pelos mesmos fatos. Ou seja, não pode ser condenada no Brasil e, ao mesmo tempo, em outros países pelos atos de corrupção aqui praticados, desde que tenham sido objeto do devido processo penal-administrativo estabelecido na Lei Anticorrupção.

Por isso a presidente da República, ao negar a aplicação de nossa lei, sob pretexto de salvar empregos (?), está abrindo as portas para que as leis e as sanções dos outros países se abatam pesadamente sobre elas. Nega-se o governo brasileiro a proteger a Petrobrás e as queridas e amadas empreiteiras da sanha, sobretudo, do governo norte-americano, que, por meio do seu Departamento de Justiça, da SEC, etc., vai atrair para sua jurisdição todas aquelas, mesmo que não tenham corruptamente operado nos Estado Unidos.

As multas que serão aplicadas à Petrobrás deverão chegar, provavelmente, a US$ 50 bilhões, tais as implicações da nossa estatal com o governo, os credores e os investidores daquele país. Quem vai embolsar as multas pela corrupção da Petrobrás e de suas comparsas será o governo norte-americano, não o brasileiro. Encheremos mais ainda os cofres já repletos daquele grande país, em face da nossa incapacidade de entender o que se passa no mundo. Somos um país absolutamente isolado da comunidade internacional até em matéria de corrupção.

Assim, a presidente da República, em vez de mandar autuar administrativamente todas as implicadas e, desse modo, fazer com cada uma delas um acordo de leniência, transforma as ditas-cujas em mortas-vivas, em fantasmas desacreditados, sujeitas a todas as sanções jurídicas e de mercado internacionais. A reputação de uma empresa é um ativo imaterial inestimável. Sem credibilidade ela afunda.

Com esse quadro, a Petrobrás, as empreiteiras e os fornecedores do esquema estão sangrando. Esse processo de sangramento vai continuar, a ponto de serem destruídos milhares de empregos e o próprio valor dessas companhias, que vão acabar sendo inabilitadas pelo Banco Mundial e pelos países subscritores dos tratados.

Isso por quê? Porque não foram devidamente processadas aqui e, por isso, não foram firmados os acordos de leniência que permitiriam à Petrobrás e às suas comparsas purgar as suas faltas no plano nacional e internacional, mediante o pagamento de pesadas multas e da submissão ao regime de conformidade (compliance) sob a vigilância direta e permanente das auditorias independentes.

Resultado: a "vontade" da presidente impõe-se à lei, mal sabendo ela que está cometendo, com isso, crime de responsabilidade. As empresas implicadas já estão sangrando e vão sangrar muito mais. Por outro lado, o próspero mercado internacional da aquisição de empresas corruptas, liderado pelos norte-americanos, já cogita de comprar ativos das empreiteiras brasileiras. Será que um dia as empresas vão convencer-se de que a corrupção se tornou um péssimo negócio no mundo juridicamente globalizado?