Entulhado de regras que alteram punições sem maior rigor técnico, o Código Penal ficou ainda mais desfigurado com a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto que institui o feminicídio - uma agravante do crime de homicídio praticado contra as mulheres por razões de gênero, envolvendo "violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher".

A pena prevista é de 12 a 30 anos de prisão. Ela será aumentada em um terço se a vítima estiver grávida ou nos três meses posteriores ao parto, se for menor de 14 anos ou maior de 60 anos, se tiver alguma deficiência e se o crime tiver sido praticado na presença de familiares. A pena do homicídio simples é de 6 a 20 anos. O projeto também classifica o feminicídio como crime hediondo, o que obriga o condenado a cumprir um período maior da pena em penitenciária de segurança máxima e aumenta as exigências para que possa passar para o regime semiaberto.

Defendido por movimentos feministas, o projeto teve origem na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, cujos trabalhos foram concluídos em 2013. Ao justificar a iniciativa, os integrantes da CPMI alegaram que, entre 2000 e 2010, foram assassinadas 43,7 mil mulheres, das quais 41% foram mortas em suas casas por maridos e ex-companheiros. O projeto será sancionado pela presidente Dilma Rousseff amanhã, Dia da Mulher. Ele "dá às mulheres instrumento de garantia de defesa de seus direitos", disse a chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci.

Suscitado por antropólogas e ativistas feministas, o feminicídio surgiu durante o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, realizado em Bruxelas em 1976. Posteriormente, foi objeto de longas discussões teóricas e terminológicas. Algumas antropólogas e ativistas passaram a defender a expressão "feminicídio" para descrever a morte de mulheres por razões de gênero em diferentes contextos sociais e políticos. Com o tempo, acabou prevalecendo a expressão "feminicídio", classificada como uma "categoria sociológica" mais abrangente por envolver agressões físicas e psicológicas, tortura, estupro, escravidão sexual, assédio sexual, heterossexualidade, mutilação genital, esterilização forçada e negação de alimentação. A expressão foi institucionalizada em 1994 pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da OEA.

A decisão do Congresso, no entanto, não era necessária, pois o homicídio qualificado está tipificado há mais de sete décadas na legislação criminal brasileira, com a previsão de cinco agravantes: motivo torpe, motivo fútil, meio cruel, recurso que impossibilite a defesa da vítima e morte para acobertar outro crime. Tais agravantes podem ser aplicadas nos crimes cometidos contra mulheres. Além disso, em resposta a pressões do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, em 2006 o Congresso aprovou a Lei Maria da Penha, com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Editadas a partir de pressões de movimentos sociais, de casos de grande repercussão e de modismos politicamente corretos, normas redundantes têm sido introduzidas na legislação criminal. Ao aumentar as sanções, desequilibram o sistema de penas. E, ao privilegiar certos tipos de tratamento penal, a pretexto de defender minorias, essas leis acabam comprometendo o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei.

É esse o caso do feminicídio como agravante. Ao tratar homens e mulheres de modo diferente, o projeto prestes a se tornar lei abre um precedente perigoso, distorcendo a tipificação do crime de homicídio qualificado - definido no Código Penal como um crime contra a vida. Homicídio não tem sexo e o problema da violência contra as mulheres não está na falta de severidade das punições, mas na falta de rigor na aplicação das normas penais existentes. Ou seja, o problema não está na legislação, mas no modo ineficiente como tem sido interpretada pelos tribunais.