O consumidor residencial terá papel mais relevante em um eventual racionamento de energia neste ano, na comparação com o realizado entre os anos de 2001 e 2002. A avaliação, segundo especialistas do setor ouvidos pelo Valor, é que a indústria não tem o mesmo fôlego do início da década passada para contribuir em um novo programa de redução de consumo, a não ser interrompendo a produção.

Para eles, o setor industrial já reduziu bastante o desperdício de energia nos últimos anos, devido ao custo pesado do insumo energético, sobretudo a partir da crise global de 2008. Por outro lado, o setor residencial experimentou expressivo aumento no consumo, influenciado pela compra de eletrodomésticos com isenção de IPI e pela redução tarifária proporcionada pelo pacote lançado pelo governo em setembro de 2012.

Além disso, de acordo com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a participação da indústria no consumo total de energia do país caiu de 45,8%, em 2007, para 37,6% em 2014. Na mesma comparação, a fatia do segmento residencial cresceu de 24,1% para 27,9%. O consumo do setor de comércio e serviços também avançou, de 15,6% para 19%. Parte dessa variação reflete a mudança do perfil da economia brasileira, menos intensiva no consumo de energia

Analisando os segmentos separadamente, o setor de comércio e serviços apresentou crescimento de 52,5% do consumo de energia, entre 2007 e 2014, totalizando 89.819 gigawatts-hora (GWh) no ano passado. Na mesma comparação, os domicílios registraram aumento de consumo de 45,2%, para 132 GWh. O consumo das indústrias cresceu apenas 3% nos últimos sete anos, para 178 GWh em 2014. Isso também reflete a perda de participação da indústria no PIB, que passou de 27,8% para cerca de 24% no mesmo período.

“Diferentes grupos consumidores têm diferentes capacidades de resposta [a um programa de redução de consumo]. A indústria já respondeu no passado. O potencial de resposta da indústria eletrointensiva já foi em grande parte explorado pela própria situação de preços altos. O potencial de resposta agora talvez tenha que ser buscado nos consumidores residenciais”, diz Joísa Dutra, ex-diretora da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV.

Leontina Pinto, diretora da consultoria Engenho, tem a mesma avaliação. “A indústria só consegue reduzir substancialmente o consumo parando a produção, porque já ocorreu um aumento de eficiência”, afirma. Para Leontina, apenas pequenas indústrias, atendidas por distribuidoras, têm alguma margem para reduzir o consumo sem afetar a produção.

Segundo ela, o segmento comercial tem potencial para reduzir o consumo, sobretudo em climatização, escadas rolantes e em parte da iluminação. Já o setor residencial realmente se “aparelhou” nos últimos anos, adquirindo muitos eletrodomésticos, como freezer, máquinas de lavar e aparelhos de ar-condicionado, e tem um espaço maior de corte.

A percepção do aumento da fatia dos setores residencial e comercial no consumo total de energia do país justifica as medidas em estudo pelo governo, de criar uma campanha de incentivo ao uso racional de energia e de estimular a utilização de grupos geradores em horários de pico por shopping centers e outros estabelecimentos comerciais. Essas ações estão previstas em um programa de eficiência energética que o governo pretende lançar até o fim de abril.

Para especialistas, o próprio efeito do “realismo tarifário”, que deve causar elevação entre 40% e 50% do preço da energia em 2015, fará com que o consumidor residencial adote ações de economia.

De acordo com a atual estrutura do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), o peso da energia nas despesas de uma família com renda até cinco salários mínimos é de aproximadamente 3,5% – conta que poderia subir e alcançar 5% do orçamento familiar, se o volume consumido de quilowatts permanecer constante. Assim, reduzir o consumo seria uma forma de amenizar o impacto do aumento de preços no conjunto das despesas familiares.

Pesquisa feita pela Boa Vista SCPC, junto com o programa Finanças Práticas, da Visa do Brasil, mostrou que 84% das pessoas da classe C (com rendimento familiar entre R$ 2.030 e R$ 8.700) estão dispostas a diminuir o consumo de energia e de água em favor de uma melhor situação das contas domésticas no fim do mês.

“Existem estudos que mostram que essa inelasticidade que as pessoas costumam dizer que existe no setor [elétrico] não se sustenta. Aumento de preços gera queda do consumo. Mas esse efeito pode ser ainda maior, se houver uma campanha de conscientização que consiga dar um sinal [para o consumidor]”, diz Joísa.

Outro fator positivo de uma ação voltada para o setor residencial, segundo a especialista, é que o impacto de eventual racionamento com essa configuração afetaria menos os indicadores de produção e emprego do país.

Para o diretor da consultoria PSR, Mario Veiga, uma proposta interessante seria aplicar uma tarifa mais alta a partir de determinado nível de consumo, para manter o abastecimento mínimo do consumidor e, ao mesmo tempo, estimular a redução do uso da energia. “A ideia de dar uma espécie de cota mínima de água e de energia, e acima disso precificar em função da escassez, acho razoável”, diz Veiga.

Também ganha força entre os especialistas a adoção de contratos de fornecimento de energia com cláusula de interrupção. Na prática, trata-se de um contrato firmado entre a distribuidora e o consumidor, que prevê corte no fornecimento de energia, quando necessário. Nesse caso a distribuidora informa previamente sobre o corte e há um desconto na conta de luz no fim do mês.

O modelo já é adotado em alguns países, inclusive em alguns Estados americanos. A prática é reconhecida também pelo GO 15, entidade que reúne os 17 operadores de grandes sistemas elétricos do mundo e que é atualmente presidido pelo diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Hermes Chipp.

Segundo Leontina, a medida é interessante, porém, devido à configuração do sistema brasileiro, não é possível negociar o contrato caso a caso com cada cliente. Isso seria possível apenas para os clientes que já possuem medidores eletrônicos de consumo. Na configuração atual da rede, não dá para cortar o fornecimento de um único consumidor, mas apenas de grupos de consumidores situados em determinado local.

Racionamento terá efeitos distintos sobre companhias de capital aberto

O setor de papel e celulose está entre aqueles que menos serão afetados por uma redução na oferta de energia, além de se beneficiar com a recente alta do dólar.

Bancos de investimentos consideram cada vez mais factível um cenário de racionamento de energia elétrica neste ano e já começam a mensurar os potenciais impactos da restrição sobre as empresas de capital aberto. Autossuficiente em eletricidade e potencial beneficiária de um real desvalorizado em relação ao dólar, a fabricante de celulose Fibria, por exemplo, está entre as empresas preferidas dos investidores. As siderúrgicas Usiminas e CSN, por outro lado, devem ser prejudicadas pela forte exposição ao mercado interno.

No setor de bens de capital, Mahle e Randon também devem ser negativamente impactadas pela destinação da maior parte da produção a indústrias consumidoras brasileiras, enquanto a WEG é vista como menos exposta. Em consumo, eletrodomésticos e vestuário tendem a ser prejudicados pelo racionamento, a exemplo do ocorrido em 2001. Enquanto no varejo, lojistas de rua devem ser mais afetados do que os shoppings numa restrição elétrica oficial.

O Citi avalia que o racionamento é o resultado mais provável diante do panorama de chuvas projetado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O banco espera corte oficial de 10% a 20% da demanda, a depender das chuvas de fevereiro a abril, o que deve trazer três efeitos ao setor de materiais básicos: impacto sobre a oferta e o custo da energia elétrica; demanda final mais fraca pelos produtos; e desvalorização cambial.

Para a Vale, o impacto de um racionamento seria neutro ou até mesmo positivo, se o dólar continuar valorizado

Os analistas liderados por Alexander Hacking avaliam que os fabricantes de aços planos podem ser significativamente impactados pela demanda mais fraca dos consumidores industriais. Já o segmento de aços longos deve ser menos afetado, pela menor volatilidade no setor de construção. “Usiminas e CSN enfrentam o maior risco dado sua dependência da demanda doméstica de aços planos (especialmente diante dos preços baixos do minério de ferro)”, alerta o Citi. A Gerdau estaria protegida por sua diversificação internacional.

O banco pondera, porém, que um aspecto positivo seria se o governo elevasse o preço-teto para revenda de eletricidade. Em 2014, a revenda de energia foi bastante lucrativa para a Usiminas, que passou inclusive a registrar a atividade em seu balanço. Nos nove primeiros meses do ano passado, a companhia somou R$ 288,3 milhões no resultado de venda de energia excedente, contribuindo para lucro de R$ 325,8 milhões no período.

Em sentido contrário, o Citi avalia que para o setor de papel e celulose deve haver mais pontos positivos do que negativos num eventual racionamento, pois muitos produtores são autossuficientes e vendedores líquidos de energia elétrica. Também o real desvalorizado beneficiaria as empresas exportadoras. O banco avalia que a Fibria está mais bem posicionada nas duas frentes, gerando 117% da energia de que precisa e tendo 98% de suas vendas baseadas em exportação.

Em teleconferência para comentar os resultados do quarto trimestre, realizada ao fim de janeiro, o presidente da Fibria, Marcelo Castelli, reafirmou que um potencial racionamento de energia não deve afetar a companhia, mas alertou para a possibilidade de fornecedores enfrentarem dificuldades. “Temos um plano de contingência para cada gargalo que possa aparecer, não parece haver um ponto crítico e sim possibilidades. Mas podemos compensá-los e uma das maneiras é elevar as importações de insumos”, disse o executivo.

Na perspectiva do Citi, Duratex e a Klabin são as empresas de produtos florestais mais vulneráveis a um racionamento elétrico por serem consumidoras líquidas de energia e estarem sujeitas à demanda interna mais fraca. Segundo o diretor financeiro e de relações com investidores da Duratex, Flávio Donatelli, a produção de painéis de madeira da companhia pode ser concentrada em menos unidades em caso de um eventual racionamento.

“Podemos concentrar as operações em algumas linhas e fazer paralisação temporária em outras”, disse Donatelli, em teleconferência de resultados. O remanejamento é possível porque a empresa opera hoje com o uso de 75% a 80% da capacidade das unidades de painéis de madeira.

Para a Vale, o impacto de um racionamento seria neutro ou até mesmo positivo, se o dólar continuar valorizado, avalia o Citi. A companhia não teria impacto significativo sobre a demanda, e o consumo de energia pode ser reduzido fora das operações de minério de ferro, se necessário, avalia o banco.

O Santander acredita que os setores que não são autossuficientes em energia e com demanda cíclica serão os mais afetados num cenário de racionamento. Siderúrgicas como Usiminas e Gerdau, indústrias de bens de capital e eletrodomésticos e vestuário estariam entre os prejudicados. “Durante o racionamento de energia em 2001, os eletrodomésticos apresentaram queda de 3,7% na média, ao passo que o vestuário mostrou aumento de apenas 0,5% em termos nominais”, lembra o banco espanhol.

Segundo os analistas Daniel Gewehr e João Noronha, o setor de bens de capital está largamente exposto a uma possível escassez de energia, pois a maioria das empresas realiza um alto percentual de sua produção domesticamente. “Além disso, vemos toda a cadeia industrial possivelmente sofrendo um impacto negativo, o que pode aumentar excessivamente a oferta de matéria-prima e reduzir a demanda de modo geral”, escreveram em relatório.

Desse modo, a fabricante de peças de motor Mahle Metal Leve, a produtora de implementos rodoviários Randon e a fabricante de materiais de fricção Fras-Le seriam as mais expostas à escassez de energia, pelo elevado percentual de produção voltada ao mercado doméstico. A Mahle e a Romi, de máquinas industriais, têm a maior exposição ao aumento dos preços de energia em 2015. A primeira teria necessidade de renovar contratos para 40% de suas necessidades de energia este ano, a preços maiores, enquanto a segundo precisaria recontratar 85% de sua demanda elétrica até 2017, com 15% de exposição ao mercado à vista.

A ação mais exposta ao risco de racionamento de água é a Iochpe-Maxion, segundo o Santander, com cerca de 33% de sua produção em estados com alto risco de escassez de água. A WEG deve ser a menos afetada nos dois cenários, “pois a eficiência energética e o aumento nos preços da energia elétrica são os principais motivadores da tese de investimento da empresa no médio prazo”, avalia o banco. Além disso, a produção da companhia é realizada fora da área de racionamento.

Setor financeiro está menos exposto; varejo sofrerá mais

Os segmentos relacionados a serviços com base leve de ativos, como bancos e outras instituições financeiras seriam menos afetados por um racionamento de energia. Segundo o Santander, isso se aplica ao Itaú, Bradesco, BB Seguridade e Cielo, por exemplo. Além de empresas ligadas ao agronegócio, como a São Martinho e Cosan, e áreas chamadas de defensivas, como as companhias de saúde (Qualicorp, por exemplo)

O Santander avalia que seria necessário um corte na demanda de energia elétrica próximo a 10% para aliviar os níveis baixos dos reservatórios e garantir o fornecimento para o segundo semestre de 2015 e o primeiro semestre de 2016. Reproduzindo o modelo do Banco Central para medir o efeito do racionamento de 2001 na expansão do produto interno bruto (PIB), o banco estima que um corte de 5% a 10% reduziria o crescimento do PIB em 0,6 a 2,0 pontos percentuais.

O HSBC vê um risco de racionamento de 55%, diante das precipitações de janeiro de apenas 58% da média histórica. Na perspectiva dos varejistas, os que estão localizados em shoppings sofrerão um impacto possivelmente maior em um cenário de “pré-racionamento”, diz o banco. Isso se o governo determinar o uso de geradores durante o horário de pico, trazendo pressão de alta sobre os custos. A redução de horas de funcionamento também pode prejudicar lojistas de shopping.

Num cenário de racionamento de fato, porém, as lojas de rua estarão mais expostas pois poucas têm geradores de reserva. As lojas de shoppings permaneceriam abertas, mesmo com horário reduzido, e também os supermercados têm geradores de reserva devido à necessidade de manter as unidades de refrigeração.

Os varejistas mais expostos a lojas de shopping são Renner (94% das lojas estão em shopping), Riachuelo (80%), Arezzo (75%), Hering (60%) e Marisa (55%). Enquanto aqueles com maioria de lojas de rua são Magazine Luiza (mais de 90% nas ruas), Viavarejo (74%) e Lojas Americanas (60%).