Cinquenta anos de idade separam o economista Humberto Laudares, um filiado tucano, do filósofo José Arthur Giannotti, que se define como um "tucanoide", já que sempre esteve próximo do partido, sobretudo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de quem é amigo. Aos 85 anos, Giannotti acredita que a presidente Dilma Rousseff perderá governabilidade caso não se abra para uma aliança com o PMDB. Sua aposta é que Dilma o fará. É um cético sobre o poder das ruas de se sobrepôr ao sistema representativo e afirma que o "impeachment só interessa ao PT". Aos 35 anos, Laudares, criador do movimento tucano Onda Azul, de mobilização popular, ataca frontalmente a bandeira do impeachment. A seguir, a entrevista com o filósofo, professor aposentado da USP.
Valor: Na crise, a institucionalidade prevalece sobre as ruas?
José Arthur Giannotti: Prevalece na medida em que seja capaz de absorver as pressões que venham da rua. Aí o sistema político se renova e persiste. Se se enclausurar, as ruas encontram outros sistemas representativos ou se esgotam. Caso isso aconteça, teremos um aprofundamento da crise do sistema, que não será mais representativo das forças que estão em choque.
Valor: O governo conseguiu incorporar algo das ruas de 2013?
Giannotti: Acho que não. O que veio das ruas em 2013 foi uma insatisfação com o funcionamento das instituições brasileiras - com o sistema de transporte, o sistema representativo e com a crise econômica que já começava a aparecer. Estes temas foram captados, tanto assim que a presidente soube que era preciso fazer uma reforma política, só que não funcionou.
Valor: Estamos em um caso de sistema representativo enclausurado em relação às ruas?
Giannotti: O sistema político está funcionando. Tanto é assim que na hora em que o PMDB percebeu que ia ser posto à margem, reagiu com os seus heróis [corruptos ou não] e fizeram o cerco do grupo do poder do Palácio. Tenho a impressão que a possibilidade de continuarmos a ter Dilma será na medida em que o PMDB, com os corruptos e os sobreviventes, a segurarem. Alguma coisa vai acontecer, porque não existe vácuo no poder e Dilma não está tendo condições de exercê-lo. Mas não acredito, por enquanto, em impeachment ou renúncia. Não vejo a situação neste abismo. O impeachment significaria encontrar uma desculpa jurídica muito forte para que o sistema fosse obrigado a aceitá-lo. Impeachment é um processo político e não vai acontecer, de jeito nenhum, a não ser que haja interesse de um grande grupo de se apropriar do poder. Por enquanto o impeachment fortalece o PT.
Valor: Por quê?
Giannotti: Lula está impávido ainda, com feridas muito grandes, mas é o candidato natural do PT. Então teríamos um impeachment com uma luta do PT contra o resto. Um PT que vai dizer que foi apeado do poder pelas forças reacionárias.
Valor: Por que, na sua opinião, Lula está ferido, mas inteiro?
Giannotti: Lula ainda representa a continuidade, a parte boa do sistema que acabou. Não há dúvida que ele colocou 40 milhões de pessoas no mercado. De uma maneira insustentável, porque se esqueceu que, para colocar este pessoal no mercado, é preciso gerar riqueza e riqueza se gera em sistema capitalista que precisa de infraestrutura e de tecnologia. O resultado é a inflação quase a 8% e uma situação econômica que não é capaz de sair do buraco.
Valor: Durante a campanha, Dilma e Lula insistiram que eram uma coisa só. O senhor está dizendo algo muito longe disso.
Giannotti: Bem, enquanto Lula teve um crescimento do PIB razoável, com Dilma tivemos um PIB mínimo e jogando o país para a recessão. Essa combinação entre governo e politização do governo penetrou toda a máquina e as nossas instituições. Chegou a um nível tal que as instituições brasileiras estão anêmicas.
Valor: Quais instituições?
Giannotti: Os ministérios, a Petrobras, as universidades, o Itamaraty, que tinha longa tradição burocrática e agora não tem dinheiro para pagar embaixadas.
Valor: Como sair da crise?
Giannotti: Não sei. Há o movimento de rua, o PSDB se aproximando destes movimentos [embora não queria o impeachment] e, o que acho muito interessante, o PMDB se aproximando do governo e dando a ele uma possibilidade de começar a atuar. De segurar Dilma até o fim do mandato, para que possamos ter eleições mais verdadeiras do que foram essas.
Valor: Há quem enxergue a crise dando papel protagonista à presidente. A crise é Dilma, como a crise de 1950 foi Getúlio?
Giannotti: Em 50 havia instituições democráticas sendo criadas e anseio da população por participação. Agora viramos uma sociedade de consumo absolutamente radical. As pessoas querem mais passear no shopping do que participar da política. Muitos dos que saem para a rua querem, essencialmente, uma sociedade que possa ter uma vida tranquila sem participação política.
Valor: É uma resposta apolítica?
Giannotti: Querem uma reforma política, para acabar com a corrupção, com a destruição das instituições, mas não querem ter participação.
Valor: Qual o paralelo com a crise do mensalão?
Giannotti: Aqui já há um décimo do Congresso sendo acusado. Um décimo do Congresso de pessoas que têm amigos e poder, que estão pressionando o governo para que as investigações sejam, se possível, orientadas. No caso do mensalão aconteceu algo extraordinário: os políticos já estão soltos, basicamente, mas os operadores estão na cadeia. Agora, os políticos vão ser apontados, mas as empreiteiras, como tais, serão salvas. De jeito nenhum se será capaz de botar todas essas empreiteiras fora do mercado. Por uma simples razão: o Brasil tem que desenvolver infraestrutura e portanto, algum acordo será feito. Tenho a impressão que, na Operação Lava-Jato, o resultado será muito mais acordado, politicamente, do que foi o mensalão.
Valor: Por ser mais amplo?
Giannotti: Mais amplo e por atacar diretamente o Congresso. Veja: é Renan [Calheiros, presidente do Senado], é Cunha [Eduardo Cunha, presidente do Congresso). Não é [José] Dirceu e [José] Genoino. Agora é a estrutura. Pega a filha de Sarney [Roseana Sarney]. Sarney não é leão domado. Sarney tem poder.
Valor: Como se chegou a este processo de deterioração atual?
Giannotti: Há o término de um ciclo econômico e político que começou com Collor, Fernando Henrique e Lula. Dilma errou violentamente em não começar um desenvolvimento capitalista sustentável, formando a infraestrutura necessária para a criação de riqueza. Destruíram as universidades, e portanto, destruíram a formação de quadros para o desenvolvimento de um capitalismo moderno. E as burocracias foram consumidas pela politização e pela corrupção. Então temos um processo em que Dilma não está conseguindo decidir e há um vácuo de poder. Ora, vácuo de poder não persiste, portanto, como seguir? Qual é o poder alternativo que se prenuncia? Nenhum. Acho que vai haver um acordo geral, para poder manter "renovado" o processo até uma próxima eleição quando as coisas poderão se definir mais.
Valor: Há diferenças entre o momento atual e o impeachment de Fernando Collor em 1992?
Giannotti: Enormes. Collor não tinha o apoio de massa que o PT ainda tem hoje.
Valor: O PT ou Lula?
Giannotti: Lula.
Valor: Como o PT sai da crise?
Giannotti: Muito arrebentado. Vai ter que se reformar, que sair dos grotões, voltar ao apoio dos sindicatos. Esses sindicatos terão que passar por um emagrecimento e ter propostas capitalistas mais modernas. O PT certamente renasce. Se não o PT, um partido mais à esquerda, dos trabalhadores, aparecerá.
Valor: E o outro lado? Fala-se que a direita está se fortalecendo.
Giannotti: Há uma direita que agora tem apoio no capitalismo moderno. Toda a agroindústria é importante no Brasil hoje, coisa que não era, resultado de uma revolução tecnológica. Este pessoal é de direita.
Valor: Está centrado no PMDB, em termos de representação.
Giannotti: Sim, às vezes no PSDB, algo no DEM. Hoje há ideólogos deste pessoal, com a ressonância que se vê nos jornais. Uma direita inteligente e mais moderna vai propiciar que se tenha representantes mais modernos das classes trabalhadoras.
Valor: Uma parte dos ideólogos da direita tenta uma interlocução no PSDB. O partido não está sendo empurrado para ir mais à direita?
Giannotti: Quando o PT veio para o centro, empurrou o PSDB para a direita. Só que o PSDB não é partido. Não tem a organicidade nem do PT nem do PMDB. É um clube de políticos influentes, mas não tem uma linha, um nervo capaz de dar articulação a todo o seu corpo. Nem no governo FHC, ou seja, nem quando estavam no poder.
Valor: Então, nunca vai existir um Tea Party dentro do PSDB.
Giannotti: Não, assim como nunca vai existir um grupo mais à esquerda. Vai se ter sempre no PSDB uma espécie de balé entre vários protagonistas. Eu diria que o PSDB nunca teve ideologia, não tem organicidade. FHC juntou todos, em uma situação muito particular e por ter uma habilidade especial. Ele é um grande mágico. Fernando tira coelho de cartola.
Valor: A saída para a crise seria uma grande concertação, então?
Giannotti: Uma saída para segurar o governo Dilma e ter eleição.
Valor: O PSDB deveria participar desta saída?
Giannotti: Vai depender. Se for muito PMDB-PT e muito concertada, não. O PSDB deve se preparar para a próxima eleição.
Valor: Como o senhor vê a organização militar hoje?
Giannotti: Não estava vendo até que li um artigo do general Rômulo Bini Pereira [general de Exército, foi chefe do Estado-Maior da Defesa] e fiquei assustado. Ele fala em ação regeneradora. Sabia que havia muita reunião entre eles, mas não sabia que havia uma articulação tão clara como o general manifestou. Já me disseram que eles estão preocupados.
Valor: Eles haviam se manifestado quando o ex-presidente Lula mencionou o "Exército de Stédile".
Giannotti: Foi a fagulha que deixou o pessoal assustado. Lula, nos últimos tempos, tem, de certa forma, pregado uma "guerra civil branda". Isso é perigoso.
Valor: Qual a marca do governo Dilma?
Giannotti: A indecisão e a incapacidade de fazer com que a decisão chegue às bases. Temos um ajuste fiscal que está sendo decidido, mas cada vez que se dá um passo, corta-se pela metade.
Valor: O impeachment, então, não interessa a ninguém.
Giannotti: Não interessa ao Brasil. Mas isso não significa que, se o vácuo de poder se aprofundar, tudo pode modificar e aparecer o impeachment.
Valor: Qual o potencial das ruas?
Giannotti: Quais são as reivindicações que as ruas vão apresentar? Se for simplesmente a manutenção da atual sociedade de consumo, a continuidade dessa distribuição de riqueza, sem gerar riqueza, não terão nenhuma representatividade. Não adianta os meninos do Passe Livre quererem que tenhamos condução como um direito de todos se não explicarmos aonde vamos financiar a renovação do transporte.
Valor: Como o senhor entende o "Fora Dilma"?
Giannotti: Quer dizer, "Dilma, vire-se", seja outra, seja efetiva. Acho que está havendo enorme decepção e raiva em relação à destruição de certos ideais. O fato de o PT ter destruído a Petrobras como destruiu, toca os nervos de boa parte da população brasileira. Mas isso não significa que seja contra um bom prefeito do PT que exista em algum lugar.
Valor: O que a presidente deveria fazer para governar?
Giannotti: Acho que ela vai fazer uma aliança com o PMDB.
Valor: Ela jantou esta semana para discutir a participação do PMDB no governo, mas sem o PMDB. Mais Dilma do que nunca.
Giannotti: Se ela continuar assim, cai. Porque o PMDB vai ser contra. Se ficarem acuados, com Renan e Cunha, não terão outra solução a não ser ir para o impeachment. Óbvio.
Valor: Mas o senhor crê que este cenário não vai se concretizar.
Giannotti: Este cenário, do jeito que está, não dura mais de seis meses. Vai ter que resolver.
Valor: O país estava em rota de futuro mas chegamos a esta crise.
Giannotti: Nem todos os países dão certo. Podemos ficar empacados aí durante anos.
"Derrubar Dilma agora é golpe"
Em uma semana eles organizaram a maior manifestação da campanha presidencial de Aécio Neves, que levou 10 mil em São Paulo. A mobilização, que assustou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, animou um dos organizadores, o economista Humberto Laudares, de 35 anos, a seguir com a formação do Onda Azul, movimento que arregimenta militância para renovar o PSDB. Laudares não apoia o impeachment da presidente Dilma Rousseff e diz que, se for à manifestação no domingo, o fará como observador. A seguir a entrevista com Laudares:
Valor: O senhor vai à Avenida Paulista no domingo?
Humberto Laudares: Apoiamos qualquer manifestação democrática, mas não participamos na convocação nem na organização nesse movimento. Não sei se vou. Se for, é por curiosidade antropológica. A radicalização é preocupante. É fácil se distrair com a coisa binária da política. Não deveria haver lugar para inimigos, mas para adversários. O PT tem culpa nessa radicalização por causa do discurso de pobres contra ricos de Lula, explorado pelo João Santana.
Valor: Não houve radicalização mútua na campanha?
Laudares : O marketing petista é inspirado em técnicas americanas que exploram o swing vote, o voto que migra do democrata para o republicano e vice-versa. O sistema aqui não é binário. Funciona com base em coalizão. Para formar coalizão é preciso compor. Se você bate demais não dá para compor. Foi isso que afastou Marina do PT.
Valor: Por que essa manifestação do dia 15 ganhou corpo?
Laudares: O germe da insatisfação estava aí, mas quando a crise bate no bolso com gente perdendo emprego e o consumo diminuindo isso ganha peso maior. A crise vai gerar uma massa de insatisfeitos do PT. É com eles que precisamos dialogar.
Valor: E como é que se dialoga com quem quer derrubar a presidente?
Laudares: É difícil buscar convergência. Precisamos convencer as pessoas que não adianta tirar Dilma. O Eduardo Jorge [ex-candidato do PV à Presidência] gravou uma mensagem com a qual concordo. Impeachment é fuga. Não adianta nada. Os problemas econômicos não vão mudar. Dilma está pondo em xeque a teoria do presidencialismo forte, mas temos que desejar que melhore.
Valor: Os grupos pró-impeachment e o Onda Azul não tiveram o mesmo candidato em 2014?
Laudares: Esses grupos não estavam formados na campanha. O Revoltados Online foi o primeiro a criar movimento com esse intuito. Prefiro gastar energia com ações propositivas. Não é nossa praia o que fazem. O PT postou no Facebook que somos golpistas. Não somos. Não temos vínculo nem financiamento do PSDB. Não queremos ser colocados na vala comum. Derrubá-la agora seria um golpe.
Valor: Como é que manifestações como a de domingo podem ser canalizadas para a política?
Laudares: O apartidarismo não canaliza. As ditaduras também são apartidárias. É preciso ter foco para lutar pela democracia. Não dá para achar que a saída é sempre criar um partido novo. As pesquisas dizem que 71% não querem saber de partidos. Nada garante que uma nova legenda não adquira os mesmos vícios das atuais. Temos que melhorar as que já existem.
Valor: O PSDB está aberto às propostas de renovação do Onda Azul?
Laudares: Levamos ao partido um manifesto com três compromissos: política social progressista, política econômica responsável e sustentabilidade como elemento central de políticas públicas. Nosso público alvo vai do vermelho claro até o azul claro. Tem gente até que colaborou como PSOL. Queremos propor mudanças que abram as portas do PSDB para a sociedade e que quebre essa imagem de partido de caciques. Para isso precisamos ter mais transparência e previsibilidade com voto direto para os diretórios municipal e estadual que incentive as pessoas a entrar.
Valor: Não teria que mudar o estatuto para isso? O movimento tem apoio das lideranças do partido?
Laudares: No dia 1º de dezembro levamos para o Fernando Henrique esta carta com 120 nomes de oito Estados que arrumamos em duas semanas. Tem de lideranças indígenas a professores universitários. O presidente se entusiasmou. Já estivemos com as principais lideranças, Aécio Neves, Geraldo Alckmin, José Serra, Antonio Anastasia e todos se mostram entusiasmados, mas ainda não temos sinalização do que pode vir a mudar.
Valor: O movimento não pode ser instrumentalizado pelos caciques?
Laudares: Não estamos fazendo um movimento para as próximas eleições, mas para as próximas gerações. Não queremos trabalhar com causas partidárias mas com causas do interesse publico. A política tem muita rejeição. Não é fácil juntar gente em torno de um projeto desses. Queremos trazer pessoas para discutir saídas e articular a busca de soluções.
Valor: Como definiria os governos Fernando Henrique, Lula e Dilma?
Laudares: O de Fernando Henrique foi um passo para mudanças estruturais. Foi até teimoso em perseguir reformas com desgaste político. Não se restringiu ao Plano Real. Avançou na área regulatória da educação e da saúde. Deixou a Presidência com uma postura democrática de não interferir no partido porque sabe que a palavra dele tem peso. O Lula acertou no Bolsa Família, em continuar a política econômica e numa política externa que engajou países do Atlântico Sul, numa conexão maior com os países em desenvolvimento, com maior participação do Brasil em organizações internacionais. O problema é que não fez reformas para melhorar a competitividade Essa omissão vai nos custar caro.
Valor: E Dilma?
Laudares: Não é política nem técnica. A escolha de Dilma foi o maior erro de Lula. É honesta, mas desaparelhada para a política. Pegou o receituário dos anos 70. Adotou a receita de governos da ditadura contra a qual lutou. É um desastre.